Em
1962, foi publicado em Sorocaba/SP este livro de 200 páginas (exemplar no acervo do historiador santista Waldir Rueda), composto e impresso nas
Oficinas Gráficas da Editora Cupolo Ltda., da capital paulista (ortografia atualizada nesta transcrição):
Pequeno histórico da Mayrink-Santos
Meus serviços prestados a essa linha entre Mayrink e Samaritá
Antonio Francisco Gaspar
[...]
2ª PARTE - ESTUDOS E CONSTRUÇÃO
XXV - Mais detalhes do meu Diário
Chapéu - 1933 - Na quinta-feira, 7 de dezembro, estando eu em Itaquaciara,
segui no trem de lastro locomotiva nº 118 e fui pernoitar em M'Boy-Guassu, onde cheguei às 23 horas, pernoitando no vagão nº 245.
No dia seguinte, sexta-feira, 8, às 6 horas no mesmo trem de lastro, tendo como chefe
o sr. Manoel Simões, saí nele, chegando a rio dos Monos às 10 horas. Providenciei condução para o S.22, 5ª seção, chefe dr. Tomé Passos. Essa
condução foi um caminhão, pois a ponta dos trilhos finalizava em Rio dos Monos. Forte cerração durante o dia. Fiz instalação de mais um telefone e
uma chave comutadora de reversão, para o dr. Tomé Passos falar com a 7ª seção, dr. Orozimbo Soares Nogueira. Foi nessa ocasião que fiquei conhecendo
os distintos engenheiros Tomé Passos, Angelo di Vernieri, Gustavo Weckelmann, Argeu Pinto Dias, Osvaldo Tavolaro e outros, como Francisco de Barros
Ferraz e fiscais.
Às 17 horas ficaram prontas as instalações e arrumei condução para regressar a Rio dos
Monos, onde pernoitei no vagão nº 245.
A cerração que houve durante o dia, eu achei que era um nevoeiro seco. Não molhava as
vestes, porém não nos víamos uns aos outros, distinguiam-se somente vultos.
Domingo, 9, como estava-se de folga, fui com o pessoal do avançamento conhecer a
cachoeira do Capivari, distante uns 4 quilômetros. Das 13 às 17 horas, ida e volta, percorremos por dentro do leito do rio dos Campos, afluente do
rio Capivari, quase toda a distância entre a cachoeira e essa solidão. Era mais conveniente fazer esse trajeto com água até os joelhos, do que
transitar por sinuosas veredas íngremes.
Foi um passeio delicioso e agradável em meio da cerração seca. Em certo momento de
sol, apanhamos algumas fotografias com nossa Kodak. Quase saíram veladas.
Foi aí nesse setor que fiquei ao par dos espinhosos trabalhos obtidos em 1927-1928,
pelo esforço e dedicação de todo o pessoal da 5ª Divisão, notadamente do engenheiro ajudante dr. Sebastião Ferraz, com funções especiais na direção
dos trabalhos de campo; engenheiro dr. João Batista Carneiro, chefe de escritório; e os engenheiros José Alfredo Marcillac e Humberto Fonseca,
aquele a princípio e este depois, como chefe da seção de cálculos, no estudo e projetos das obras-tipo e das obras de arte especiais, dessa almejada
via férrea rumo ao mar.
Dr. Sebastião Ferraz, engenheiro ajudante da V Divisão
Imagem e legenda reproduzidas do livro
A estação Chapéu denominou-se Engenheiro Ferraz, e a estação de Dúvidas passou a
Engenheiro Marcillac. Foi uma honrosa homenagem que a Sorocabana prestou a esses dois ilustres engenheiros, que muito fizeram pela majestosa
Mayrink-Santos. Dr. Ferraz é falecido e dr. Marcillac, infelizmente está privado da vista e reside na cidade de Campinas.
Mário Marcillac foi engenheiro auxiliar de 1ª classe da 8ª seção e depois transferido
para o cargo de engenheiro ajudante da 2ª seção de construção, em 1929. Em fins de 1932 perdeu a vista.
A ponta dos trilhos avançava e esteve parada em Rio dos Campos, por motivo da
construção da Ponte 5, ponte essa a mais alta da Mayrink a Santos. A sua construção levou mais de 4 anos. Eu a vi construir desde os alicerces até o
tabuleiro. Fiscalizava o serviço de concretagem dessa ponte o dr. Argeu Pinto Dias. Muitas vezes fui até ali no trem misto MX1, para seguir de auto
aos diversos SSS. Esteve nessa estação por muito tempo, como telegrafista, o sr. Romeu de Melo. Passavam-se maus bocados, mas desfrutavam-se horas
deliciosas contemplando as construções e do alto do Bairro da Saudade, S.22, que não ficava muito distante de Rio dos Campos, avistava-se ao
longe o azul do oceano Atlântico.
Na 5ª seção, dr. Tomé Passos, para o engenheiro dr. Angelo di Vernieri, no S. 20,
instalei um telefone. Chovia muito nesse dia e o terreno estava escorregadiço.
Rio dos Campos foi aberta ao tráfego em 1º de abril de 1935. Corriam os trens MX.1 e
MX.2.
Voltemos dias atrás com a narrativa destes detalhes do meu Diário: às 16 horas
do dia 14 de março, segui a Mayrink, e no trem MX.1 fui pernoitar em Engenheiro Marcillac.
No dia seguinte, às 6 horas, saí na locomotiva do trem de lastro e fui a Rio dos
Campos, onde cheguei às 8 horas. Às 9 horas, no automóvel do sr. Manoel Rodrigues, fui à casa do dr. Tomé Passos, encontrar-me com od r. Probo
Falcão Lopes, com o fim de combinarmos serviços a serem feitos na Serra. Aproveitando a ocasião, inspecionei os telefones da 5ª seção. Às 10 horas,
no automóvel do sr. Manoel Rodrigues, segui com dr. Probo ao S.16, chefe da seção, dr. Nobre Mendes. Revistando a chapa de terra, encontrei-a
queimada devido faísca elétrica ocasionada por raio.
Esse aparelho eu o tinha instalado na sala de jantar da seção e a prateleira, com 80
pilhas Leclanche, estava num quartinho ao lado da cozinha. O telegrafista que para ali foi destacado era o sr. Aparecido de Freitas. A linha para
São Paulo funcionava bem. Para Santos estava interrompida. Eram 17 horas e a cerração dominava a Serra. De caminhão regressamos à 5ª seção, onde
pernoitamos.
No dia imediato, no automóvel do sr. Manoel Rodrigues, ao S.16. Para Santos o
telégrafo não funcionava. Continuamos. Dr. Probo ficou no S.11, com o engenheiro dr. Antônio Guedes Quintella. Eu continuei de auto até o S.7,
residência do dr. Antônio Duarte. Dali, o auto regressou ao S.22.
O dr. Duarte mandou arrear uma besta por nome Boneca e continuei a cavalo,
descer a Serra, inspecionando a linha telegráfica a ver se encontrava a interrupção. Ia sozinho por aqueles ermos, onde já havia algumas obras de
arte em construção, cortes, aterros, túneis e viadutos. Passei por dentro do túnel 4, S.4, túnel furado na rocha e sem revestimento, pois não
precisou ser gasto mão-de-obra para o revestir.
Logo adiante, a besta empacou. Não ia mais para a frente. Queria só voltar. Eu, como
estava sozinho naquele lugar e necessitava chegar até Estaleiro, onde se acampava a turma telegráfica do feitor sr. Alfredo Silva, tive a lembrança
de arrumar uma vara e na ponta dela amarrar um feixinho de capim. Cavalguei novamente a Boneca e empunhei a vara com o capim, à frente de seu
focinho. Qual o quê. A besta refugava e voltava para trás comigo na sela.
A besta Boneca que empacou com o guarda-fios Gaspar entre Acaraú e Estaleiro.
Túnel 4. Em 15-3-1935. Túnel em rocha viva
Imagem e legenda reproduzidas do livro
Então, como eu tinha que chegar até Estaleiro, voltei ao S.5, pedindo aos camaradas do
dr. Nahúl Benévolo me a guardar até o dia seguinte. Eram 16 horas. A pé, inspecionando o fio, caminhei meio apressado, pois queria chegar ainda de
dia a Estaleiro. Passei os túneis 3, 2 bis, 2 e às 19 horas e 15, riscando fósforos, estava percorrendo, com cuidado de não cair nalgum buraco, o
túnel 1.
Encontrava-me em Estaleiro às 20 horas. A linha continuava com defeito. Para Santos
estava boa. O defeito devia ser, então, no trecho que, escurecendo, eu não o pude ver.
O cozinheiro da turma fez uma sopa de macarrão com jabá; engoli-a com sofreguidão,
contamos anedotas e às 22 horas estávamos nos braços de Morfeu.
No dia seguinte era sábado, 16 de março. Levantamos às 6 horas, tomamos café e com o
feitor Alfredo Silva regressei com o fim de acharmos a interrupção.
Com cuidado, íamos verificando poste por poste, a causa da interrupção. Passamos o
túnel 1 e logo adiante vi um isolador quebrado. Ali estava o defeito. Como passei à noite, não podia enxergar essa anomalia. Subi no poste e troquei
o isolador. Continuamos até o S. 5. A besta Boneca, pedi ao feitor, sr. Juvenal Vicente, ir entregá-la ao dr. Antônio Duarte, no S. 7, e
avisar por telefone o dr. Probo, que eu o esperava na residência do dr. Nahúl Benévolo.
Às 17 horas, chegou o dr. Probo no auto do sr. Manoel Rodrigues. O dr. Nahúl contou-me
que a besta empacou por motivo que, talvez, ela sentisse faro de uma onça pintada que, de vez em quando, vinha beber água no córrego da ponte 3. O
Gaspar não carrega revólver? perguntou ao dr. Probo. Não carrego, disse-lhe. Possuo só o canivete de raspar fios. Despedimos do dr. Nahúl e
retomando o automóvel, partimos para Santos, via Cubatão. No Saboó o auto regressou à Serra.
Tomamos o bonde e fomos pernoitar no vagão da turma telegráfica do Alfredo Silva, que
de Estaleiro mudara-se para Ana Costa. No domingo, como estávamos de folga, fomos à praia do Gonzaga, tomar banho de mar, e às 13 horas almoçar no
Restaurante Luzitano de Laureano, português. Pernoitamos novamente no vagão e segunda-feira, pela S.P.R. embarquei com dr. Probo para São Paulo.
Tinha muita coisa para narrar, mas ficamos por aqui. Meu Diário é composto de 33 livros formato 32x22, iniciados em 1928 e terminados em
1947.
Sinto saudosas recordações, quando me ponho a folhear as amareladas páginas desses
livros, em que eu fui escrevendo neles os serviços por mim feitos; as agruras por que passei, nessa gloriosa arrancada: a Mayrink-Santos!
Dr. Gaspar Ricardo Júnior
3 de maio de 1937.
Eu estava já acomodado, quando pressuroso meu filho Sílvio Gaspar acordou-me.
Pesarosamente comunicou-me que o dr. Gaspar Ricardo Júnior havia falecido repentinamente em sua residência, à Rua Turmalina nº 3, Aclimação, São
Paulo.
Eu, como me dava muito com ele e sua exma. família, senti deveras sua morte prematura.
Quem como eu labutou na Mayrink-Santos desde sua construção, instalando os primeiros
telefones para as comunicações entre engenheiros; instalando os primeiros aparelhos telegráficos para os pedidos de licença de trem e telegramas de
serviço; instalando luz elétrica quando começou a funcionar a Usina Elétrica do Capivari em Rio dos Campos, e outros serviços justificáveis nessa
luta de acesso ao mar, não sentiria seu passamento?
Quantas vezes em que estive a serviço na Mayrink-Santos eu vi Gaspar Ricardo
percorrendo os diversos trechos em construção, dando ordens, inspecionando túneis, viadutos, não queria que faltasse nada: materiais, conduções,
alimentos de boca etc.?
Seu lema: "A Sorocabana melhor e maior" e... a Mayrink-Santos, pela qual tudo
sacrificava no desejo de vê-la concluída e incorporada à grande ferrovia paulista, ele diretor ininterruptamente ia visitá-la, como se fosse sua
namorada. Assim se exprimiu certa vez um jornal paulista.
E, uma campanha anti-patriota, contra a construção desse ramal, sempre o aborrecia.
Mas, Gaspar Ricardo era de rija fibra e não esmorecia com as pesadas críticas que a ele eram dirigidas constantemente pela imprensa.
Gaspar Ricardo Júnior faleceu. A Mayrink-Santos jamais parou. Os críticos
desapareceram do cenário ferroviário.
"Não importa que o destino, caprichoso e inexorável, o
tivesse tão cruel e prematuramente arrebatado do nosso meio. A obra, todavia, aí está para perpetuar-lhe indefinidamente o nome e consagrar-lhe
respeitosamente a memória". Estas palavras são de um seu amigo, o engenheiro dr. Ramiro R. Miranda.
A admirável administração de Gaspar Ricardo Júnior foi fecunda e proveitosa.
Que pena ele não poder ver a sua Mayrink-Santos ligada. Mas, o seu nome está lá, bem
legível na plataforma e estação Estaleiro, que passou a chamar-se Gaspar Ricardo em homenagem póstuma e pelo que ele tanto fez por essa linha.
Foi um grande diretor!
Sua vida de ferroviário iniciou-se na Sorocabana, a 1º de fevereiro de 1913, como
ajudante da Comissão Fiscal da linha Salto Grande a Porto Tibiriçá. Depois, foi sucessivamente chefe do tráfego, em 1916; chefe da linha, em 1918;
chefe da locomoção, em 1924; e diretor, pela primeira vez, de 1927 a 1930. Em 7 de março de 1931, nomeado novamente diretor e aí se manteve até
meados de 1932. Terminado o Movimento Constitucionalista, voltou novamente a diretor da Sorocabana, onde esteve
até março de 1934, quando foi indicado para chefe da comissão de padronização do material ferroviário, deixando aquele posto.
Em 1933, por ter visto diversas vezes o dr. Gaspar Ricardo percorrendo a serra da
Mayrink-Santos, em inspeção, compus um poemeto que transcrevo para este capítulo:
Mayrink a Santos
Poemeto dedicado ao incansável e preclaro engenheiro
Dr. Gaspar Ricardo Júnior
Diretor da E. F. Sorocabana - 1927-1934.
I
Por montes e vales, subindo e descendo,
na estrada de ferro Mayrink a Santos
eu vi-o, um dia, sozinho, fazendo
o longo trajeto, tão cheio de encantos...
Saiu de uma abrupta encosta ondulantes,
e foi encontrando mil dificuldades...
porém, sempre invicto, na idéia brilhante
"Vencer empecilhos e escabrosidades"...
Cumeadas de serras rasgando o infinito,
longínquas paragens no seio das matas,
enormes pedreiras de duro granito,
transpôs, sorridente, também cataratas.
Dezenas de túneis que as trevas domina,
os mais esquisitos e estranhos lugares,
e fontes de água, fresca, cristalina,
que corre e modula em tons singulares...
Em curvas suaves, de manso declívio
prossegue a sua rota por entre montanhas,
e, vai, procurando, sem ter um alívio...
o porto de Santos, vencendo "campanhas"...
Além, sobre o dorso da serra do mar,
depois de vencer desiguais altitudes,
foi quando, vibrante sem se impressionar,
galgou essas grotas de enormes taludes.
Por ínvios caminhos se aventurou...
descendo essa serra de ignotos recantos...
no firme propósito que o exitou,
idéia sublime: Mayrink a Santos!
Assim, obras de arte, pausadas, surgiram...
viadutos e túneis extensos de mais...
e, sem ter cansaço, nem dor que cruciam,
cantou sua vitória em tons triunfais!
Pesados artigos da imprensa, afrontados,
não o demoveram... e embora em perigo...
na árdua tarefa: ideais tão sagrados...
os que o atacaram, quiseram-no amigo...
II
Salve, estrada grandiosa
que, ufana, graciosa,
vagarosa atinge a serra!...
Da rica "Sorocabana",
vais, tu, ser a soberana
de São Paulo, a invicta terra!
Entre densos nevoeiros,
centenas de cabouqueiros,
tarefeiros respeitáveis,
vão brocando a serra inteira
- do abismo estando à beira -
sempre avantes e incansáveis.
Soltando nuvens de fumo,
do mar, procurando o rumo,
no seio da mata virgem,
o comboio, lento, avança...
com firmeza e confiança
de passar breve a vertigem!...
"Quero ver, ainda altiva,
a nossa locomotiva
que silva pelo sertão,
transpondo a serra do mar,
esbelta, sempre a silvar,
numa vibrante canção!...
Mostrando seu poderio...
porém, um tanto tardio,
não estão longe esses dias
em que as exultações,
de "amistosas saudações",
não serão mais fantasias...
III
Que construção formidável,
empreendimento arrojado,
que obra indispensável
e que plano arriscado!
o nosso ponto de vista,
é ter, no porto de Santos,
a linha que foi prevista
outrora, por outros tantos
engenheiros mui notáveis
que não puderam levar
avante seus planos hábeis,
que fazem, hoje, exultar!
IV
Temos, assim, desta feita,
porém, vagarosamente,
levado a bitola estreita,
em condição excelente
até ao alto da serra
- isto é bem animador -
aonde o mar se descerra,
com todo o seu esplendor!
V
Nessa importante estrada paulista,
esses trabalhos vos apresentamos,
"Melhor e Maior", e a nossa conquista
sob esse lema, hosanas cantamos!
Sorocaba, dezembro de 1933.
Ponte 5 - Rio dos Campos
Imagem e legenda reproduzidas do livro
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