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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS
História da São Paulo Railway (8)

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Um passeio pela Serra do Mar, nos trens da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, a antiga São Paulo Railway (SPR), foi o tema desta matéria publicada no antigo jornal diário Cidade de Santos, em 22 de dezembro de 1969 (exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda):
 


Ilustração publicada com a matéria

A CIDADE E O HOMEM
A antiga e bela viagem de trem até Santos

Editor: Odon Pereira
Reportagem: Alfio Beccari, Camargo Barros, Emílio Braga, Sidinei Basile

Sábado, 7 horas e 30. No pátio da estação da Luz o chefe de manobras faz soar longamente o apito. Um solavanco percorre seis velhos vagões de madeira. É o anúncio da hora da partida para cerca de 400 passageiros que, dali a alguns minutos, descerão os 800 metros da Serra do Mar em um trem sustentado apenas por um cabo de aço - um sistema hoje único no mundo.

Serão duas horas para chegar a Santos pela Estrada de Ferro Santos a Jundiaí (EFSJ), meia hora a mais do que gasta um ônibus, na mesma viagem.

Entre os passageiros, os turistas são minoria. Pessoas que não encontraram passagens de ônibus. A maioria é composta de viajantes habituais: homens e mulheres habitantes de vilas servidas apenas pela estrada de ferro - no alto da Serra -, em geral funcionários da própria estrada.

A primeira classe está quase inteiramente ocupada. Nos bancos estofados mas duros e sem inclinação, moços e moças vestidos com calças de brim, sandálias de couro e carregando bolsas a tiracolo, formam grupinhos, conversam em voz alta, riem.

Os que conhecem a viagem comentam os "perigos" que já enfrentaram na descida da Serra.

Os bancos de madeira da segunda classe não têm encosto para descansar a cabeça. Mas Mário Nakaia, um japonês de 57 anos de idade, não está preocupado com o conforto. Espreguiça-se, tira os sapatos e antes de estirar-se no assento cumprimenta os outros passageiros. O banco é a sua cama, a maleta o seu travesseiro.

No vagão onde está Nakaia ninguém ficou chocado com sua desinibição. Aos poucos, outros o imitam: aproveitam os lugares vagos para cochilar, deitados ou sentados, as pernas apoiadas nos bancos fronteiriços.

Os freqüentadores habituais da estrada preferem viajar de segunda classe: "Os bancos são duros do mesmo jeito. Não dá para dormir. E o barulho da meninada (turistas), nos fins de semana, estraga o sossego".

***

De São Paulo até Paranapiacaba, 45 minutos de viagem, há várias paradas, onde sobem e descem os operários das cidades do ABC.

A Estação de Paranapiacaba assemelha-se à da Luz, com o mesmo tipo de construção em tamanho reduzido: paredes vermelhas, tijolos aparentes, grades de ferro negras, dão-lhe uma feição sombria e triste, combinando com o denso nevoeiro que envolve a localidade.

"Não estranhem, Paranapiacaba é assim. Trezentos dias de chuva por ano". É o fiscal do trem falando aos passageiros entediados com a ausência do sol.

A torre da estação com um enorme relógio de quatro faces domina Paranapiacaba, ocupando o lugar normalmente destinado à igreja em pequenas cidades do Interior: "Os homens daqui têm fé", explica um morador da cidade. "Mas o amor é quase todo para a ferrovia".

Lá vivem 4.000 pessoas em casas de madeira, que é o melhor material para isolar a umidade. O futebol e o jogo de malha, muito praticados, devem cessar antes de chegar o nevoeiro. Do contrário, só se pode jogar por intuição, como se fosse uma partida de cegos. O nevoeiro paralisa tudo, menos a estrada de ferro.

***

Quatro engenheiros dirigem o trecho da Serra, onde trabalham pelo menos 3.500 dos 4.000 habitantes de Paranapiacaba. Durante 102 anos, a EFSJ (ex-"The São Paulo Railway Company Limited") realizou cerca de quatro milhões de viagens entre São Paulo-Santos. Na Serra, onde funciona o sistema de cabo de aço, aconteceram apenas três acidentes - o mais baixo índice em ferrovias brasileiras.

Isso porém não foi suficiente até hoje para dissipar a expectativa de perigo que assalta os passageiros que pela primeira vez fazem a viagem. É um sentimento semelhante ao que a maioria das pessoas tem ao viajar de avião.

O engenheiro João Antonio dos Reis Rocha, 30 anos de idade, já trabalhou na construção de cinco barragens e há três anos é o chefe do trecho da Serra. Ele encara com tranqüilidade esta grande responsabilidade:

"O sistema de cabo de aço é muito seguro. Os poucos desastres aconteceram por falhas humanas e não mecânicas. O trabalho é rotina, uma atenciosa fiscalização diária é suficiente para dar segurança".

Nos vagões da primeira classe, durante o trajeto da Serra, a movimentação entre passageiros aumenta, devido à disputa pelas janelas do lado direito dos vagões, de onde avista-se melhor a paisagem. Do lado esquerdo há apenas o quadro que oferece o paredão formado pelo corte dos morros.

Nos vagões da segunda classe, alguns passageiros acordam resmungando com o barulho dos que procuram as janelas vazias.

O trem vence a Serra através de quatro etapas, separadas por patamares. Máquinas fixas, acionadas a vapor, com enormes carretilhas, movimentam e sustentam o cabo de aço, em cada um dos patamares. O cabo dá voltas nas carretilhas situadas nos patamares, continuamente, parecendo não ter fim. Cada lance funciona independentemente dos outros.

Em Paranapiacaba, quinto patamar (primeiro para quem desce), a locomotiva elétrica é substituída por uma a vapor, equipada com "loco-breque" - aparelho especial para esse tipo de operação - espécie de gancho que prende o cabo de aço. A locomotiva puxa os vagões até um fosso, onde um funcionário da estrada verifica se o cabo de aço se prendeu corretamente ao "loco-breque".

Quem fiscaliza o engate do cabo de aço ao "loco-breque" são maquinistas, que se revezam entre dirigir as locomotivas e fiscalizar o engate. O revezamento aumenta a responsabilidade dos maquinistas - pois estes procuram fiscalizar com cuidado para que o mesmo aconteça quando estiverem dirigindo as locomotivas - e a segurança da viagem.

O cabo tem pouco mais de quatro quilômetros - distância entre um patamar e outro - e corre junto aos dormentes. Enquanto uma composição desce, outra sobe obrigatoriamente, ambas ligadas ao cabo, para não desequilibrar o peso que força suas duas partes, evitando-se assim o seu rompimento.

A locomotiva, no trecho da serra, é usada apenas como auxiliar de segurança, sustentando os vagões, que aqui não podem ultrapassar o número três. Na descida vai à frente dos vagões e na subida atrás.

Uma viagem em dia de sol pela Santos a Jundiaí é um passeio difícil de esquecer. Mas os dias de sol na serra são raros. Dificilmente, os passageiros podem avistar os profundos abismos, atravessados por estreitas pontes de ferro.

O trecho que ofereceu maiores dificuldades aos construtores da estrada é também o mais bonito. Está entre o terceiro e o quarto patamares. É a Grota Funda, onde a montanha se divide em duas, deixando um vazio de cem metros de extensão por 60 de profundidade.

Em meio a uma brecha de nuvem o sol vez por outra ilumina o local.

No trem, uma jovem debruçada na janela. Lá em baixo, uma cerrada vegetação, uma imensa extensão verde que deixa nos homens uma impressão de pequenez. O trem passa por uma ponte estreita. Dos lados, o vazio do espaço, abaixo o vão dos dormentes, parecem maiores do que o normal. Nos passageiros, a impressão de que os vagões balançam soltos no espaço.

A descida da serra, até a localidade de Piaçagüera, já na Baixada Santista, demora 45 minutos. Mais trinta serão necessários para chegar até Santos. O sol novamente. O mormaço substituindo o vento frio. Os mangues e braços de mar são a paisagem.

Os guindastes do porto anunciam aos passageiros o fim da viagem, a última estação. No trem, apenas turistas. Os demais passageiros, como o japonês Nakaia, ficaram na Serra ou em Piaçagüera.

Os jovens saem rápido da velha estação. Lá fora, a zona portuária santista. Ao lado da estação, a antiqüíssima igreja do Valongo. Ruas estreitas, prédios sujos, homens e mulheres de rosto sofrido e mal vestidos. Alguns moços, que vieram no trem, correm, atravessam a rua sem olhar para os lados, e conseguem tomar o ônibus. Faltam ainda três quilômetros para chegar às praias.


Velhos trens da SPR ainda operam na Serra do Mar
Foto publicada com a matéria

Melhorias para carga beneficiarão os passageiros

A superintendência da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí (EFSJ) acredita que com a substituição do sistema de cabo de aço pelo de cremalheira, na Serra, a viagem até o litoral não demorará mais do que hora e meia.

Além da cremalheira, será eletrificado todo o trecho. As melhorias funcionarão em 1970, e permitirão mais conforto aos passageiros da estrada. Mas elas não vêm apenas por causa deles.

A preocupação dominante e quase única da EFSJ é o transporte de cargas. Setenta por cento das mercadorias desembarcadas e embarcadas no porto de Santos são transportadas pela estrada, esgotando a sua capacidade atual.

Os ferroviários queixam-se da falta de verbas para melhorar o serviço de passageiros. Enquanto elas não vêm, a solução é empregar o pouco dinheiro no transporte de cargas. É com um pouco de decepção que justificam o quase abandono dos passageiros: "Carga não fala. Gente dá muito trabalho".

***

O sistema de cremalheira será adotado para aumentar a capacidade de transporte, diminuir o custo operacional e o tempo de viagem. O atual sistema de cabo de aço é seguro mas rende o necessário.

No sistema de cremalheira, uma roda dentada situada na locomotiva se ajusta a uma engrenagem, também dentada, localizada no leito da ferrovia, entre os trilhos.

A eletrificação do trecho permitirá maior velocidade, não só pela potência das locomotivas elétricas, mas também pela eliminação das paradas nos cinco patamares da estrada, onde atualmente se ajustam e prendem os cabos de aço.

A cremalheira está sendo instalada no trecho da Serra Velha, construído no início do século passado (N.E.: século XIX) e colocado fora de uso em 1891, quando foi construída a Serra Nova. Assim, a EFSJ passará a ter dois trechos em pleno uso. Mas o cabo de aço deixará de existir, pois com a conclusão das obras na Serra Velha, a Nova ficará em desuso temporariamente, até que seja instalada, também em seu leito, a cremalheira.

***

No dia oito deste mês, a EFSJ colocou em circulação novos vagões, equipados com recirculadores de ar, exaustores, iluminação fluorescente e bancos estofados. Estes trens circularão normalmente mas não são suficientes para fazer todas as viagens diárias da estrada.

Os ferroviários, porém, não acreditam que a EFSJ tenha condições, ainda assim, de competir com os ônibus que ligam São Paulo a Santos. O tempo de viagem será menor do que o do ônibus, mas os passageiros continuarão a ficar longe da praia.

Só um serviço gratuito de ônibus ligando a estação, em Santos, com as praias, e o equipamento dos vagões com as mesmas condições de conforto oferecidas pelos ônibus, daria condições à ferrovia de entrar na disputa pelo transporte dos turistas.

Por enquanto, a viagem São Paulo-Santos, pela EFSJ. oferece em relação ao ônibus apenas duas vantagens: a beleza da paisagem e uma passagem barata.


Novos vagões dão mais conforto às viagens na EFSJ
Foto publicada com a matéria

Na história da EFSJ há prisões, falências e mortes

Uma estrada de ferro ligando São Paulo a Santos: era a idéia fixa de Frederico Fomm, um jovem prussiano, industrial e comerciante estabelecido em Santos, durante a primeira metade do século passado (N.E.: século XIX).

Sem uma ferrovia unindo as duas cidades seria difícil desenvolver a economia paulista. No planalto, a produção de café começava a adquirir importância e o porto de Santos era o seu escoadouro natural. Além disso, os fazendeiros do planalto necessitavam mercadorias importadas. No antigo Caminho do Mar - única via de ligação - o transporte era feito por tropas de burros: além de pouca carga, demoravam muito.

Mas estes fatos não eram claros na época. Apenas o jovem prussiano percebia as enormes vantagens de uma estrada de ferro.

Em 1835, favorecido por lei promulgada pelo regente Feijó, Fomm conseguiu finalmente a concessão para construir e explorar um "caminho de ferro" entre o planalto e o litoral.

Alfred Mornay, engenheiro inglês que construíra ferrovias no Nordeste, foi contratado para fazer os levantamentos e estudos da obra. Fomm fez muitas viagens ao exterior na tentativa de conseguir apoio técnico e financeiro. Sua dedicação à realização do projeto foi tal que seus negócios de exportação, importação e refinação de açúcar começaram a andar mal. Por fim, não conseguiu recursos necessários. Esta decepção apressaria sua morte, ocorrida em 1847.

A segunda falência - Anos depois, José da Costa Carvalho, marquês de Monte Alegre e São Vicente, recebeu a concessão que fora de Fomm. Convidou Irineu Evangelista de Souza - o barão de Mauá - para dirigir o empreendimento. No começo tudo correu bem. As obras da estrada caminhavam em bom ritmo. Mas alguns anos depois, os adversários políticos de Mauá conseguiram do governo da Província o início da construção da rodovia Vergueiro, melhoria e complementação do Caminho do Mar, mobilizando cinco mil trabalhadores.

São Paulo tinha então dez mil habitantes. A mão-de-obra encareceu. Mauá foi à falência. A estrada ficou com as obras praticamente paralisadas.

Ingleses e dignidade - O caso da estrada foi para a justiça. Negociantes ingleses ganharam a concessão e construíram a estrada. Mauá morreria em 1889, com a estrada já concluída e a "The São Paulo Railway Company Limited" - construtora e exploradora da estrada - auferindo grandes lucros.

O juiz que julgou o caso afirma que as 700 mil libras que Mauá emprestara à empresa construtora da estrada, enquanto esteve à frente das obras, nunca foram devolvidas. Em uma das sessões do julgamento, o Barão quis entregar seus óculos de aros de ouro e as pequenas jóias da família para pagar as dívidas. Eram os únicos bens que lhe restavam e não foram aceitos.

Construiu e foi preso - O engenheiro que construiu a estrada foi o inglês Daniel Makinson Fox, contratado por Mauá. Logo de início sugeriu a adoção dos planos inclinados e cabo funicular, para vencer os obstáculos da Serra no menor tempo possível. Para se construir uma estrada com rampas suaves (sem o cabo funicular), os meandros seriam muitos, a estrada muito longa, a viagem demorada e os lucros não compensadores.

A idéia revolucionou os meios governamentais, obtendo adversários e adeptos. Após a inauguração, o rendimento apresentado era tão grande que as 4.300 toneladas de carga - capacidade de transporte da estrada - foi logo esgotada.

Em 1891 a estrada foi ampliada, construindo-se um novo trajeto na Serra - conhecido como Serra Nova - utilizado até hoje. Aqui as máquinas fixas, que movimentavam os cabos de aço, têm o dobro de capacidade do que as existentes na Serra Velha.

Mas, antes da ampliação, em 1871, o engenheiro Fox, então superintendente da estrada, foi preso e processado como responsável pelo primeiro acidente no trecho da Serra, no qual faleceu uma pessoa. Defendido por José Bonifácio, foi absolvido por unanimidade de votos. E voltou para a direção da estrada, paralisada durante a sua prisão.

Agora federal - Em 1946, expirou o prazo da concessão de cem anos da "The São Paulo Railway Company Limited". O governo federal encampou a estrada, que se incorporou à Rede Ferroviária Federal e passou a ser a Estrada de Ferro Santos a Jundiaí. Mas os fatos tristes sempre acompanharam os grandes momentos da estrada. Dois dias antes da posse dos administradores brasileiros, um incêndio destruiu a estação da Luz.

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