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A CIDADE E O HOMEM
A antiga e bela viagem de trem até Santos
Editor: Odon Pereira
Reportagem: Alfio Beccari, Camargo Barros, Emílio Braga, Sidinei Basile
Sábado, 7 horas e 30. No pátio da estação da Luz o chefe
de manobras faz soar longamente o apito. Um solavanco percorre seis velhos vagões de madeira. É o anúncio da hora da partida para cerca de 400
passageiros que, dali a alguns minutos, descerão os 800 metros da Serra do Mar em um trem sustentado apenas por um cabo de aço - um sistema hoje
único no mundo.
Serão duas horas para chegar a Santos pela Estrada de Ferro Santos a Jundiaí (EFSJ),
meia hora a mais do que gasta um ônibus, na mesma viagem.
Entre os passageiros, os turistas são minoria. Pessoas que não encontraram passagens
de ônibus. A maioria é composta de viajantes habituais: homens e mulheres habitantes de vilas servidas apenas pela estrada de ferro - no alto da
Serra -, em geral funcionários da própria estrada.
A primeira classe está quase inteiramente ocupada. Nos bancos estofados mas duros e
sem inclinação, moços e moças vestidos com calças de brim, sandálias de couro e carregando bolsas a tiracolo, formam grupinhos, conversam em voz
alta, riem.
Os que conhecem a viagem comentam os "perigos" que já enfrentaram na descida da Serra.
Os bancos de madeira da segunda classe não têm encosto para descansar a cabeça. Mas
Mário Nakaia, um japonês de 57 anos de idade, não está preocupado com o conforto. Espreguiça-se, tira os sapatos e antes de estirar-se no assento
cumprimenta os outros passageiros. O banco é a sua cama, a maleta o seu travesseiro.
No vagão onde está Nakaia ninguém ficou chocado com sua desinibição. Aos poucos,
outros o imitam: aproveitam os lugares vagos para cochilar, deitados ou sentados, as pernas apoiadas nos bancos fronteiriços.
Os freqüentadores habituais da estrada preferem
viajar de segunda classe: "Os bancos são duros do mesmo jeito. Não dá para dormir. E o barulho da meninada (turistas), nos fins de semana, estraga o
sossego".
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De São Paulo até Paranapiacaba, 45 minutos de
viagem, há várias paradas, onde sobem e descem os operários das cidades do ABC.
A Estação de Paranapiacaba assemelha-se à da Luz, com o mesmo tipo de construção em tamanho
reduzido: paredes vermelhas, tijolos aparentes, grades de ferro negras, dão-lhe uma feição sombria e triste, combinando com o denso nevoeiro que
envolve a localidade.
"Não estranhem, Paranapiacaba é assim. Trezentos dias de chuva por ano". É o fiscal do
trem falando aos passageiros entediados com a ausência do sol.
A torre da estação com um enorme relógio de quatro faces domina Paranapiacaba,
ocupando o lugar normalmente destinado à igreja em pequenas cidades do Interior: "Os homens daqui têm fé", explica um morador da cidade. "Mas o amor
é quase todo para a ferrovia".
Lá vivem 4.000 pessoas em casas de madeira, que é o
melhor material para isolar a umidade. O futebol e o jogo de malha, muito praticados, devem cessar antes de chegar o nevoeiro. Do contrário, só se
pode jogar por intuição, como se fosse uma partida de cegos. O nevoeiro paralisa tudo, menos a estrada de ferro.
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Quatro engenheiros dirigem o trecho da Serra, onde
trabalham pelo menos 3.500 dos 4.000 habitantes de Paranapiacaba. Durante 102 anos, a EFSJ (ex-"The São Paulo Railway Company Limited") realizou
cerca de quatro milhões de viagens entre São Paulo-Santos. Na Serra, onde funciona o sistema de cabo de aço, aconteceram apenas três acidentes - o
mais baixo índice em ferrovias brasileiras.
Isso porém não foi suficiente até hoje para dissipar a expectativa de perigo que assalta os
passageiros que pela primeira vez fazem a viagem. É um sentimento semelhante ao que a maioria das pessoas tem ao viajar de avião.
O engenheiro João Antonio dos Reis Rocha, 30 anos de idade, já trabalhou na construção
de cinco barragens e há três anos é o chefe do trecho da Serra. Ele encara com tranqüilidade esta grande responsabilidade:
"O sistema de cabo de aço é muito seguro. Os poucos desastres aconteceram por falhas
humanas e não mecânicas. O trabalho é rotina, uma atenciosa fiscalização diária é suficiente para dar segurança".
Nos vagões da primeira classe, durante o trajeto da Serra, a movimentação entre
passageiros aumenta, devido à disputa pelas janelas do lado direito dos vagões, de onde avista-se melhor a paisagem. Do lado esquerdo há apenas o
quadro que oferece o paredão formado pelo corte dos morros.
Nos vagões da segunda classe, alguns passageiros acordam resmungando com o barulho dos
que procuram as janelas vazias.
O trem vence a Serra através de quatro etapas, separadas por patamares. Máquinas
fixas, acionadas a vapor, com enormes carretilhas, movimentam e sustentam o cabo de aço, em cada um dos patamares. O cabo dá voltas nas carretilhas
situadas nos patamares, continuamente, parecendo não ter fim. Cada lance funciona independentemente dos outros.
Em Paranapiacaba, quinto patamar (primeiro para quem desce), a locomotiva elétrica é
substituída por uma a vapor, equipada com "loco-breque" - aparelho especial para esse tipo de operação - espécie de gancho que prende o cabo de aço.
A locomotiva puxa os vagões até um fosso, onde um funcionário da estrada verifica se o cabo de aço se prendeu corretamente ao "loco-breque".
Quem fiscaliza o engate do cabo de aço ao "loco-breque" são maquinistas, que se
revezam entre dirigir as locomotivas e fiscalizar o engate. O revezamento aumenta a responsabilidade dos maquinistas - pois estes procuram
fiscalizar com cuidado para que o mesmo aconteça quando estiverem dirigindo as locomotivas - e a segurança da viagem.
O cabo tem pouco mais de quatro quilômetros - distância entre um patamar e outro - e
corre junto aos dormentes. Enquanto uma composição desce, outra sobe obrigatoriamente, ambas ligadas ao cabo, para não desequilibrar o peso que
força suas duas partes, evitando-se assim o seu rompimento.
A locomotiva, no trecho da serra, é usada apenas como auxiliar de segurança,
sustentando os vagões, que aqui não podem ultrapassar o número três. Na descida vai à frente dos vagões e na subida atrás.
Uma viagem em dia de sol pela Santos a Jundiaí é um passeio difícil de esquecer. Mas
os dias de sol na serra são raros. Dificilmente, os passageiros podem avistar os profundos abismos, atravessados por estreitas pontes de ferro.
O trecho que ofereceu maiores dificuldades aos construtores da estrada é também o mais
bonito. Está entre o terceiro e o quarto patamares. É a Grota Funda, onde a montanha se divide em duas, deixando um vazio de cem metros de extensão
por 60 de profundidade.
Em meio a uma brecha de nuvem o sol vez por outra ilumina o local.
No trem, uma jovem debruçada na janela. Lá em baixo, uma cerrada vegetação, uma imensa
extensão verde que deixa nos homens uma impressão de pequenez. O trem passa por uma ponte estreita. Dos lados, o vazio do espaço, abaixo o vão dos
dormentes, parecem maiores do que o normal. Nos passageiros, a impressão de que os vagões balançam soltos no espaço.
A descida da serra, até a localidade de Piaçagüera, já na Baixada Santista, demora 45
minutos. Mais trinta serão necessários para chegar até Santos. O sol novamente. O mormaço substituindo o vento frio. Os mangues e braços de mar são
a paisagem.
Os guindastes do porto anunciam aos passageiros o fim da viagem, a última estação. No
trem, apenas turistas. Os demais passageiros, como o japonês Nakaia, ficaram na Serra ou em Piaçagüera.
Os jovens saem rápido da velha estação. Lá fora, a zona portuária santista. Ao lado da
estação, a antiqüíssima igreja do Valongo. Ruas estreitas, prédios sujos, homens e mulheres de
rosto sofrido e mal vestidos. Alguns moços, que vieram no trem, correm, atravessam a rua sem olhar para os lados, e conseguem tomar o ônibus. Faltam
ainda três quilômetros para chegar às praias.
Velhos trens da SPR ainda operam na Serra do Mar
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Melhorias para carga beneficiarão os passageiros
A superintendência da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí (EFSJ) acredita que com a
substituição do sistema de cabo de aço pelo de cremalheira, na Serra, a viagem até o litoral não demorará mais do que hora e meia.
Além da cremalheira, será eletrificado todo o trecho. As melhorias funcionarão em
1970, e permitirão mais conforto aos passageiros da estrada. Mas elas não vêm apenas por causa deles.
A preocupação dominante e quase única da EFSJ é o transporte de cargas. Setenta por
cento das mercadorias desembarcadas e embarcadas no porto de Santos são transportadas pela estrada, esgotando a sua capacidade atual.
Os ferroviários queixam-se da falta de verbas para
melhorar o serviço de passageiros. Enquanto elas não vêm, a solução é empregar o pouco dinheiro no transporte de cargas. É com um pouco de decepção
que justificam o quase abandono dos passageiros: "Carga não fala. Gente dá muito trabalho".
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O sistema de cremalheira será adotado para aumentar
a capacidade de transporte, diminuir o custo operacional e o tempo de viagem. O atual sistema de cabo de aço é seguro mas rende o necessário.
No sistema de cremalheira, uma roda dentada situada na locomotiva se ajusta a uma
engrenagem, também dentada, localizada no leito da ferrovia, entre os trilhos.
A eletrificação do trecho permitirá maior velocidade, não só pela potência das
locomotivas elétricas, mas também pela eliminação das paradas nos cinco patamares da estrada, onde atualmente se ajustam e prendem os cabos de aço.
A cremalheira está sendo instalada no trecho da
Serra Velha, construído no início do século passado (N.E.: século XIX) e colocado fora de
uso em 1891, quando foi construída a Serra Nova. Assim, a EFSJ passará a ter dois trechos em pleno uso. Mas o cabo de aço deixará de existir, pois
com a conclusão das obras na Serra Velha, a Nova ficará em desuso temporariamente, até que seja instalada, também em seu leito, a cremalheira.
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No dia oito deste mês, a EFSJ colocou em circulação
novos vagões, equipados com recirculadores de ar, exaustores, iluminação fluorescente e bancos estofados. Estes trens circularão normalmente mas não
são suficientes para fazer todas as viagens diárias da estrada.
Os ferroviários, porém, não acreditam que a EFSJ tenha condições, ainda assim, de competir
com os ônibus que ligam São Paulo a Santos. O tempo de viagem será menor do que o do ônibus, mas os passageiros continuarão a ficar longe da praia.
Só um serviço gratuito de ônibus ligando a estação, em Santos, com as praias, e o
equipamento dos vagões com as mesmas condições de conforto oferecidas pelos ônibus, daria condições à ferrovia de entrar na disputa pelo transporte
dos turistas.
Por enquanto, a viagem São Paulo-Santos, pela EFSJ. oferece em relação ao ônibus
apenas duas vantagens: a beleza da paisagem e uma passagem barata.
Novos vagões dão mais conforto às viagens na EFSJ
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Na história da EFSJ há prisões, falências e mortes
Uma estrada de ferro ligando São Paulo a Santos: era a idéia fixa de Frederico Fomm,
um jovem prussiano, industrial e comerciante estabelecido em Santos, durante a primeira metade do século passado (N.E.:
século XIX).
Sem uma ferrovia unindo as duas cidades seria difícil desenvolver a economia paulista.
No planalto, a produção de café começava a adquirir importância e o porto de Santos era o seu escoadouro natural. Além disso, os fazendeiros do
planalto necessitavam mercadorias importadas. No antigo Caminho do Mar - única via de ligação - o transporte era feito por tropas de burros: além de
pouca carga, demoravam muito.
Mas estes fatos não eram claros na época. Apenas o jovem prussiano percebia as enormes
vantagens de uma estrada de ferro.
Em 1835, favorecido por lei promulgada pelo regente Feijó, Fomm conseguiu finalmente a
concessão para construir e explorar um "caminho de ferro" entre o planalto e o litoral.
Alfred Mornay, engenheiro inglês que construíra ferrovias no Nordeste, foi contratado
para fazer os levantamentos e estudos da obra. Fomm fez muitas viagens ao exterior na tentativa de conseguir apoio técnico e financeiro. Sua
dedicação à realização do projeto foi tal que seus negócios de exportação, importação e refinação de açúcar começaram a andar mal. Por fim, não
conseguiu recursos necessários. Esta decepção apressaria sua morte, ocorrida em 1847.
A segunda falência - Anos depois, José da Costa Carvalho, marquês de Monte
Alegre e São Vicente, recebeu a concessão que fora de Fomm. Convidou Irineu Evangelista de Souza - o barão de Mauá - para dirigir o empreendimento.
No começo tudo correu bem. As obras da estrada caminhavam em bom ritmo. Mas alguns anos depois, os adversários políticos de Mauá conseguiram do
governo da Província o início da construção da rodovia Vergueiro, melhoria e complementação do Caminho
do Mar, mobilizando cinco mil trabalhadores.
São Paulo tinha então dez mil habitantes. A mão-de-obra encareceu. Mauá foi à
falência. A estrada ficou com as obras praticamente paralisadas.
Ingleses e dignidade - O caso da estrada foi para a justiça. Negociantes
ingleses ganharam a concessão e construíram a estrada. Mauá morreria em 1889, com a estrada já concluída e a "The São Paulo Railway Company Limited"
- construtora e exploradora da estrada - auferindo grandes lucros.
O juiz que julgou o caso afirma que as 700 mil libras que Mauá emprestara à empresa
construtora da estrada, enquanto esteve à frente das obras, nunca foram devolvidas. Em uma das sessões do julgamento, o Barão quis entregar seus
óculos de aros de ouro e as pequenas jóias da família para pagar as dívidas. Eram os únicos bens que lhe restavam e não foram aceitos.
Construiu e foi preso - O engenheiro que construiu a estrada foi o inglês
Daniel Makinson Fox, contratado por Mauá. Logo de início sugeriu a adoção dos planos inclinados e cabo funicular, para vencer os obstáculos da Serra
no menor tempo possível. Para se construir uma estrada com rampas suaves (sem o cabo funicular), os meandros seriam muitos, a estrada muito longa, a
viagem demorada e os lucros não compensadores.
A idéia revolucionou os meios governamentais, obtendo adversários e adeptos. Após a
inauguração, o rendimento apresentado era tão grande que as 4.300 toneladas de carga - capacidade de transporte da estrada - foi logo esgotada.
Em 1891 a estrada foi ampliada, construindo-se um novo trajeto na Serra - conhecido
como Serra Nova - utilizado até hoje. Aqui as máquinas fixas, que movimentavam os cabos de aço, têm o dobro de capacidade do que as existentes na
Serra Velha.
Mas, antes da ampliação, em 1871, o engenheiro Fox, então superintendente da estrada,
foi preso e processado como responsável pelo primeiro acidente no trecho da Serra, no qual faleceu uma pessoa. Defendido por
José Bonifácio, foi absolvido por unanimidade de votos. E voltou para a direção da estrada, paralisada durante a sua prisão.
Agora federal - Em 1946, expirou o prazo da concessão de cem anos da "The São
Paulo Railway Company Limited". O governo federal encampou a estrada, que se incorporou à Rede Ferroviária Federal e passou a ser a Estrada de Ferro
Santos a Jundiaí. Mas os fatos tristes sempre acompanharam os grandes momentos da estrada. Dois dias antes da posse dos administradores brasileiros,
um incêndio destruiu a estação da Luz. |