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Coisas da história santista
A Estrada de Ferro
Círo Carneiro
Álvaro Lopes, o suave cronista cujo trato delicioso a
A Tribuna nos propicia cotidianamente, deu-me a ver certos apontamentos históricos da cidade, destinados à divulgação oficial, inclusive algumas
notas sobre os primórdios da estrada de ferro que nos liga à Capital.
Colhera ele essas notícias na estimada História de Santos, de Francisco
Martins, a qual, nesse passo, é carecente de alguma retificação.
Prometi-lhe pôr a limpo as incertezas e, assim, aqui lhe trago a informação corretiva,
recolhida em papéis velhos.
Não há outro jeito de escrever história, senão compulsando alfarrábios tediosos,
carcomidos pela traça, e mergulhando em velhos códices descorados pelo tempo. É onde se catam as pequeninas pedras, cuja falta se faz notável em
obras que se destinem a perpetuar para os vindouros as coisas do passado, com os fatos que lhe constituem a trama e o espírito que lhe dá vida. É
campo em que não têm cabida as conjecturas ou os cálculos supositícios.
O plano de construir-se uma estrada de ferro, que prendesse o litoral ao interior
paulista, foi pela primeira vez tratado em público pelo súdito prussiano Frederico Fomm, que era gerente da casa comissária Aguiar, Viúva e Filhos,
da praça de Santos. Conduzidas com acerto as negociações, obtiveram os interessados a promulgação da lei provincial n. 51 (antiga 24), de 18 de
março de 1836, que concedeu à "Companhia de Aguiar, Viúva e Filhos, Platt e Reidd", privilégio exclusivo para a feitura de um caminho de ferro desde
Santos até a vila da Constituição, Itu ou Porto Feliz, passando pela Capital.
Era, na época, uma idéia avançada, pois esse processo de comunicação, hoje tão
vulgarizado, estava ainda em fase inicial. Datava apenas de 1825 a inauguração da primeira estrada de ferro explorada na Inglaterra.
Mas, a empresa, pelo vulto do capital que reclamava, excedia muito à capacidade
econômica do meio provinciano em que brotara a idéia. À míngua de recursos apagou-se o momentâneo entusiasmo, vindo a caducar, pelo decurso dos dois
anos previstos na lei, a concessão a que se não deu começo de execução.
Passados quase 20 anos, o marquês de Monte Alegre (José da Costa Carvalho) e o
conselheiro José Antônio Pimenta Bueno, depois marquês de S. Vicente, paulista este e aquele baiano aqui radicado, ambos orientadores da política da
Província, comunicaram ao barão de Mauá o plano de Fomm, de que tinham conhecimento. Instaram, mesmo, contra a relutância de Mauá, que já se
notabilizara pelo seu gênio industrioso, para que requeresse nova concessão.
Acedeu, finalmente, o banqueiro com a condição de ser o nome daqueles dois políticos
associado à tentativa. Simples empréstimo do prestígio pessoal dos dois estadistas, ambos senadores do Império, com renome nacional, pois tinham
passado várias vezes pelos bancos ministeriais. "Nenhum deles", diz Alberto de Faria, "quis mais que a honra do seu nome na concessão e a esperança
da estrada de ferro para a sua província", deixando totalmente a Mauá a parte que poderiam reclamar nas possíveis vantagens econômicas.
A lei geral n. 838, de 12 de setembro de 1855, autorizou o Governo Imperial a outorgar
as mesmas vantagens, que haviam sido concedidas para a construção de uma estrada de ferro em projeto na província de Pernambuco, à empresa que se
viesse a organizar no intervalo das sessões legislativas, para a construção de uma estrada de ferro entre a cidade de Santos e a vila de São João do
Rio Claro.
Foi por força dessa lei que o governo do Império, pelo decreto nº 1.759, de 26 de
abril de 1856, autorizou o Marquês de Monte Alegre, o conselheiro Pimenta Bueno e o barão de Mauá a incorporarem fora do pais uma companhia, que se
encarregasse da construção de uma estrada de ferro que, partindo das vizinhanças de Santos, se aproximasse de S. Paulo e se dirigisse a Jundiaí,
dando-lhes para esse fim uma concessão que duraria por 90 anos.
Continuou o tempo a deslizar imperceptivelmente na vida dos homens e sobre a face das
coisas, imprimindo-lhes a mossa de sua ação e, quando já havia certa descrença da realização do melhoramento, a idéia tomou corpo no ano de 1859.
Com a intervenção do nosso ministro plenipotenciário em Londres, comendador Francisco
Inácio de Carvalho Moreira (depois barão de Penedo), coadjuvado pelo santista Francisco Xavier da Costa Aguiar de Andrade, que servia como seu
secretário de legação, organizou-se em Londres a "Companhia da Estrada de Ferro de S. Paulo" (São Paulo Railway Cy. Ltd.).
Os prospectos para a subscrição foram lançados por Rothschild & Sons, que Mauá tivera
de associar ao negócio, e em poucas horas completava-se quase totalmente a subscrição do capital previsto – Libras 2.000.000 – salvo uma quinta
parte, cujas ações, em obediência ao decreto n. 1759, teria que ser emitida no Brasil.
Chegou a Santos a notícia do acontecimento a 2 de fevereiro de 1860. Foi dia de
alvoroçado júbilo na cidade. Naquele tempo, como ainda hoje, a alegria popu-...
[N.E.: trecho empastelado na composição do jornal, com uma linha repetida e outra
faltante] ...me e muito rumor. Logo, por iniciativa do presidente da Câmara Municipal, José Justiniano Bitancourt,
puseram-se anúncios convidando o povo para no dia seguinte iluminar a frente das casas em mostra de regozijo.
Assim se fez e na noite de 3 de fevereiro, quando surgiu no céu, o pálido planeta da
saudade encontrou a cidade em luminárias. Duas bandas de música, uma das quais obedecia à batuta de Luiz Arlindo Trindade, percorreram as ruas
pulverulentas da povoação acanhada que Santos era. Seguiam-nas magotes de populares, que levantaram muitos vivas aos concessionários e
coadjuvadores da idéia e queimavam muitos foguetes e peças de estrondo.
Nem faltou, para que a festa ficasse completa, um estrepitoso encontro das bandas
musicais no canto da Rua Antonina com a de Santo Antônio, o que lhes facilitou darem largas à
rivalidade ferrenha num ligeiro arruído, em que mais foram as vozes exaltadas que as violências corporais.
Na sessão de 25 de fevereiro, a Câmara Municipal não faltou com um voto de
agradecimento a Carvalho Moreira e Aguiar de Andrade "pelos esforços que fizeram para concluir a organização da companhia", voto que se estendeu a
Monte Alegre, Pimenta Bueno a Mauá.
Já desde o dia 13 havia chegado em nosso porto o inglês Daniel Makensen, acreditado
como agente oficial da companhia, que já havia empreitado com a firma Sharpe & Sons, também inglesa, a construção da via férrea.
E no mês seguinte estava em S. Paulo o primeiro superintendente da S.P.R., sr. J. J.
Aubertin, que foi, por sinal, o introdutor e grande animador da cultura do algodão em S. Paulo.
Apressavam-se os preparativos para o início das obras. Era preciso que não esfriasse a
confiança do povo.
A opinião pública estava já mui dividida. Se uns acolhiam com vivo entusiasmo a obra
em projeto, pintando em cores exageradamente agradáveis o quadro do desenvolvimento comercial e industrial da cidade quando a estrada de ferro
estivesse em função, outros havia, e não poucos, que lhe faziam cara, futurando a retrogradação da cidade e o aniquilamento do seu comércio,
já em caminho de florescência. No ânimo destes tinha influência decisiva a notícia, já propalada, de que a construção da estrada exigiria a
destruição do velho Convento de Santo Antonio.
Havia, ainda, os descrentes e os que propagavam a descrença unicamente com fito
eleitoral. Aqueles viam no empreendimento uma astuciosa armadilha que se inventara para palmear o minguado dinheiro de alguns brasileiros de posses
para os bolsos dos ingleses e davam conselhos em público pela abstinência na subscrição de ações da companhia. Estes pregavam que tudo não passava
de engodo, com que os conservadores almejavam pescar votos nas eleições que vinham próximas.
Contudo, nas rodas oficiais havia confiança.
Na sessão da Câmara em 28 de abril seguinte, já o vereador José Antônio Pereira dos
Santos (pai de d. Carolina Júlia Pereira dos Santos, que foi mãe do dr. Ulisses Paranhos), apresentava a seguinte proposta, aprovada sem
discrepância:
"Achando-se próximo o dia em que têm de ser inaugurados
nesta cidade os trabalhos da estrada de ferro e não devendo tão notável fato passar desapercebido entre os habitantes desta mesma cidade,
indico que a Câmara nomeie uma comissão composta de três de seus membros e de mais três cidadãos, pedindo-lhes que se dignem promover e dirigir os
festejos que se hão de fazer por aquela ocasião".
Constituiu-se a comissão com os vereadores Teodoro de Menezes Forjaz, Alexandre
Jeremias da Silva e José Maria Largacha e os cidadãos José Antônio Vieira Barbosa, Antônio Ferreira da Silva Júnior (depois visconde do Embaré) e
Manoel Joaquim Ferreira Neto.
Fixado que o ato se realizaria a 15 de maio, deliberou a Câmara, ainda, que se pusesse
editais, "convidando os habitantes da cidade a iluminarem as frentes de suas casas nas noites de 15, 16 e 17, em regozijo pela inauguração dos
trabalhos da estrada de ferro".
No dia 14 já mostrava a cidade um ar festivo. As ruas tinham sido objeto de cuidado
especial: com uma capinação e uma varridela tinham sido limpas do mato que usualmente as forrava e das imundícies de toda espécie que nelas se
acumulavam de ordinário.
Por toda parte havia uma atividade desusada. O guarda-nacional dava uma escovadela no
uniforme de gala, brunindo-lhe os metais dourados; os músicos afinavam carinhosamente os instrumentos com que se apresentariam na função do dia
seguinte; nos quintais das casas mais abastadas, viam-se calças e sobrecasacas estendidas nas cordas de corar roupa, enquanto lá dentro as
mucamas poliam com esmero colarinhos, punhos e peitilhos e a sinhá-moça dava os últimos retoques no vestido de seda lustrosa, com que pompearia
no dia da festa.
Nesse dia desceu a Santos o presidente da Província, dr. Policarpo Lopes de Leão, que
pousou no "Hotel Recreio Santista", à Rua da Praia, de propriedade de Francisco Xavier dos Santos, que ao ofício de estalajadeiro aliava o de
leiloeiro oficial. Acompanhava-o o chefe de polícia e o cônego Ildefonso Xavier Ferreira, que representava o vigário geral de São Paulo. Chegaram
também nesse dia, além de uma deputação da Câmara Municipal da Capital, o senador barão de Antonina (João da Silva Machado), os deputados gerais
Joaquim Otávio Nébias e João da Silva Carrão e os deputados provinciais J. A. Pinto Júnior, Martim Francisco, barão do Rio Claro, Américo
Brasiliense e Monteiro de Barros.
Raiou, afinal, o dia 15 de maio de 1860, do qual dizia um cronista da época:
"O dia 15 de maio ficará servindo de marco de légua na
estrada do progresso que vamos encetar.
"Depois do grandioso fato da Independência do Brasil, em que os paulistas tiveram a
iniciativa, é o fato de maior importância para a Província de São Paulo, de que temos notícia".
Realizou-se a cerimônia, por volta do meio-dia, depois de uma manhã de sol fervente,
com a presença de todas aquelas mencionadas autoridades.
No quintal do Convento de Santo Antônio, uma dupla linha de bandeirolas multicores
figurava os trilhos da futura estrada. Ao longo dela, formando alas, estacavam, imóveis como candelabros, os guardas-nacionais do batalhão local. O
sol dava de chapa nos dourados da farda, pondo-lhes fulgores rápidos de relâmpagos.
De um e outro lado das alas, paravam as duas bandas musicais, que enchiam os ares com
a pancadaria dos seus bombos e o estridor dos seus metais.
À roda, em certa distância, moleques já taludos estavam a postos para soltarem no
espaço dúzias e dúzias de rojões, cujo estrondo havia de assinalar, no momento preciso, o início da "nova era" santista.
Ali estava presente, ao lado dos convidados de honra, tudo quanto havia de bom e
melhor na sociedade santista: os vereadores, juízes de paz e mais autoridades locais, muito bem postos em suas sobrecasacas solenes; comerciantes
ventrudos, ostentando pesadas e ricas cadeias de ouro sobre a proeminência abdominal; amanuenses escanifrados, com a palidez de pergaminhos; até os
peralvilhos, que já os havia na época, com trajos de tal louçania que os faziam mais ridículos.
Não faltavam naquele numeroso concurso de povo as damas e donzelas, das quais dizia o
noticiarista contemporâneo que se apresentaram "vestidas com a elegância e o bom gosto que sempre caracterizou as belas santistas". Com seus
vestidos de seda e recobertas com seus mais ricos adereços, davam à festividade o tom de uma verdadeira parada de elegância. As moças,
principalmente, afogueadas pelo sol ardente, que lhes fazia subir a cor ao rosto, punham no ato uma nota de alegria saudável, na exibição do
contentamento que lhes ia dentro dos corações, pelo se lhes deparar tão propícia ocasião ao encontro com os namorados. Em roda do largo espaço
reservado aos convidados ficava o povo miúdo: artífices, caixeiros, escravos, mucamas e todos os madraços, curiosos e basbaques da cidade.
O cônego Ildefonso preludiou a cerimônia, com uma prática mui adequada, em que se
casavam a ciência da terra e a ciência do céu, recordando a primitiva penetração do Evangelho nas selvas do Cubatão,
que iam ser rasgadas agora pelos trilhos da nova estrada.
Depois, ele próprio, com voz pausada e solene, deu a bênção à primeira terra, que foi
cavada e conduzida pelo presidente da Província, num carrinho de mão, ao lugar em que assentaria a ponta dos trilhos.
Subiram então ao espaço aquelas imensas dúzias de ruidosos foguetões, ao mesmo tempo
que as bandas rompiam com seus dobrados.
O carro de mão, que serviu para o presidente Policarpo conduzir a primeira terra, era
obra de alto lavor, coisa muito para ver. Construído em jacarandá, era todo guarnecido com florões de prata, tendo uma pá do mesmo metal e um
dístico em que os empreiteiros da estrada dele faziam oferecimento ao governo da Província.
Cessados os rumores dos fogos e das músicas, vieram os discursos.
Falaram os deputados Nébias e Martim Francisco, como que casando as vozes conservadora
e liberal na celebração do acontecimento.
Exalçou-lhe a importância Martim Francisco em linguagem altíssona:
"Eis o dia! Eis a hora! Eis o momento solene em que a
pátria dos heróis se enflora com o laurel que o progresso oferta e que a civilização prepara".
Não esqueceu louvores aos iniciadores da obra:
"Os que sem receber um ceitil tomaram a peito esta grande
empresa merecem ser saudados por nós. Mauá, Monte Alegre, Pimenta Bueno são nomes que os santistas doravante trarão impressos nas páginas da
gratidão".
Mas, refletindo uma boa parte da opinião pública, não lhe faltou uma pitada de
reserva, em que aludia aos sacrifícios dos pequenos proprietários a serem expropriados e à falada demolição do Convento de Santo Antônio:
"Possa esta festa pacífica da indústria não ser amarga à
pobreza honesta, nem ao templo que a devoção dos fiéis levantou ao Autor do Mundo! Abandonar o lar que nos escutou o primeiro balbuciar da infância
é bem amargo; não dormir o último sono onde se viu despontar a primeira aurora é um pensamento acerbo para os deserdados da fortuna. Ver o templo
augusto, que escutou nossas preces, mutilado pelo martelo dói no fundo d'alma aos que mais de uma vez em seu sacrário elevaram orações fervorosas ao
Supremo Ser.
"Confiemos, senhores, que os escrúpulos da população serão atendidos pelos distintos
cidadãos que estão à testa desta grande empresa".
Com esse discurso de Martim Francisco encerrou-se a primeira parte da cerimônia, que
os espectadores em multidão, cobertos de suor, sob o sol escaldante, devoravam com os olhos e com as orelhas.
Dirigiram-se, depois, os convidados a uma grande barraca, armada com paus
grosseiramente aparelhados, onde foi servido um lauto almoço oferecido pelos empreiteiros. O presidente da Província fez um primeiro brinde à
companhia, seguindo-se com a palavra o superintendente desta, J. Aubertin, que recitou um discurso em inglês, pouco ou nada entendido pelos mais dos
circunstantes.
A essa hora, se o espírito dos convivas já havia sofrido alguma transformação pela
obra dos vinhos com que eram fartamente regados os comestíveis, também o tempo já se havia transmudado. Fez-se carrancudo e exprimiu sua cólera
desenfreada em fortes rajadas que abalaram a barraca, pondo-lhe em risco a segurança. Com isso, susteve-se um pouco a avidez com que alguns
comensais se diluíam nos licores. Mas, a tormenta que ameaçava não teve forças para conter a fúria oratória.
O deputado Joaquim Antônio Pinto Júnior declamou, então, os seguintes versos de sua
lavra:
Salve ó terra abençoada
Nobre pátria dos Andradas;
Ergue a fronte laureada,
De flores engrinaldada.
Rompeu-se, enfim, a barreira,
Que o teu futuro prendia;
Ergue hoje o colo altaneira;
Do teu porvir surge o dia.
Por mais tempo não pôde o acerbo fado
Teu destino prender;
Romperam-se as cadeias e, mudada,
Foi forçoso ceder.
Os frutos do teu solo abençoado
Não mais serão perdidos
E entre os povos do mundo confundidos
Farão tua riqueza.
A alterosa serra escabrosa
De densa mata eriçada
Ante o progresso curvada,
Breve humilde e respeitosa,
Se tornará majestosa.
Dos produtos franca estrada
Desta terra abençoada.
Salve! Ó terra feliz que a natureza
Dotou prodigamente,
Das terras de Cabral és a princesa
Rainha onipotente
Houve, ainda, outros discursos, até que as nuvens negras que sobrepairavam
desfizeram-se em chuva grossa, o que determinou o encerramento do festim com os brindes à Sua Majestade o Imperador do Brasil e à Rainha da
Inglaterra, levantados pelo presidente da Província.
À noite houve ainda um baile de gala, promovido pela comissão designada pela Câmara
Municipal e nas noites subseqüentes, de 16 e 17, prosseguiram os festejos populares, posto que com menor intensidade.
Por aí se vê que a inauguração dos trabalhos da estrada de ferro realizou-se, não a 24
de novembro de 1860, como narra Francisco Martins, mas a 15 de maio desse ano, o que, aliás, foi perpetuado na seguinte ata, lavrada pelo então
secretário da Câmara Municipal, Manoel Luiz Ferreira:
"Auto de inauguração dos trabalhos da primeira estrada de
ferro da Província de São Paulo, entre esta cidade e a vila de Jundiaí.
"Ano do nascimento de N. S. Jesus Cristo de 1860, 39º da Independência e do Império,
aos 15 dias do mês de maio, nesta cidade de Santos, no quintal do convento de Santo Antonio, designado para estação e princípio da estrada de ferro
entre Santos e Jundiaí, achando-se presentes o exmo. presidente da Província, dr. Policarpo Lopes de Leão, a Câmara Municipal, as autoridades
eclesiásticas, militares e civis, o superintendente da companhia, J. J. Aubertin, e os empreiteiros da estrada, Sharpe & Sons, representados pelo
sócio P. W. Sharpe, todos abaixo assinados e reunidos para o fim de dar-se começo aos trabalhos da mencionada estrada, aí, depois da cerimônia de
bênção, lançada pelo muito rev. cônego dr. Ildefonso Xavier Ferreira, foi pelo exmo. presidente da Província revolvida a primeira terra, lançando-se
assim os fundamentos da estrada que tem de ser construída em virtude da lei nº 838, de 12 de setembro de 1855, e decreto n. 1759, de 26 de abril de
1856, que autorizou os cidadãos exmos. marquês de Monte Alegre, conselheiro José Antônio Pimenta Bueno e barão de Mauá, para incorporarem fora do
país uma companhia que empreendesse uma via férrea entre Santos e Jundiaí, a qual companhia foi organizada de conformidade com a citada lei e
decreto, na cidade de Londres, contribuindo para isso o ministro plenipotenciário, comendador Francisco Inácio de Carvalho Moreira. E, para constar,
lavrou-se o presente auto, em que assinam todos que presentes estavam. E eu, Manoel Luiz Ferreira, secretário da Câmara Municipal que o escrevi".
Não assistiram os santistas, nesse dia 15 de maio de 1860, o princípio da demolição do
Convento de Santo Antônio. Mas, já estava ela iminente, como transparecia do discurso de Martim Francisco. E, na verdade, logo nos dias imediatos
entraram as picaretas em ação, tanto que, ante a revolta da população, a 1 de junho já se anunciava que o delegado de
polícia fizera sustar a demolição do convento.
Esse atentado contra o velho templo do Valongo levantou tumulto na cidade, como é
sobejamente conhecido, em memória do que Santo Antônio, nessa igreja, é ainda hoje portador de uma bengala, que lhe puseram à mão, como que para
própria defesa.
Esse espírito de revolta espelhou-se nuns versos anônimos, que então correram
impressos.
Parodiavam os versos do deputado Pinto Júnior, atrás mencionados, opondo-lhes
contradita.
Já Platão sentenciaria os poetas a banimento, como inimigos da verdade.
Confrontando essas duas produções poéticas contraditórias, os leitores melhor julgarão
se foi justo e razoável o filósofo.
Eis aqui a versalhada de autor desconhecido:
Chora, terra amaldiçoada
Infeliz pátria dos Andradas;
Abaixa a fronte envergonhada
De dores nunca esperadas.
Rompeu-se, alfim, o bom senso,
Que te guardava outrora;
Abaixa hoje o colo amedrontada;
Da tua desgraça nasce a aurora.
Por mais tempo não quis o acerbo fado
Teu destino respeitar;
chegou-te o louco entusiasmo, e, mudado,
Forçoso te foi aceitar.
Os frutos do teu solo amaldiçoado
Não mais serão aproveitados.
Ao "progresso" e à irreligião condenados
Farão tua pobreza.
A serra altiva e honrosa,
De linda mata ornada
Ante o "progresso" curvada,
Breve, humilde e medrosa,
Se tornará espantosa,
A miséria abrindo a estrada
Nessa terra amaldiçoada.
Chora terra infeliz, que a natureza
Dotou prodigamente:
Das terras de Cabral eras a princesa
Rainha onipotente.
* * *
Acrescenta Francisco Martins que "somente a 16 de fevereiro de 1867
puderam os santistas ver chegar ao Valongo a primeira locomotiva a vapor" e que a nota mais interessante dessa viagem inaugural foi um desastre
havido entre Ipiranga e São Paulo, no qual teriam saído feridos o presidente da Província e outras autoridades.
Também aqui uma verificação se impõe.
Já no dia 21 de fevereiro de 1866, pelas 10 horas da manhã, tinha chegado a Santos o
primeiro comboio da nova estrada, o qual saíra de São Paulo às 7 horas da manhã. Desde esse dia, segundo noticiaram os jornais da época, embora não
oficialmente inaugurada, a estrada ficou em tráfego diário, por conta dos empreiteiros.
Havia um trem diário de São Paulo para Santos, partindo da Capital às 8 e meia e
chegando a Santos às 12 horas; retornava de Santos à 1 hora da tarde para chegar na Capital às 4 e meia. Custava a passagem de 1ª classe 10$000, o
que na ocasião representava soma avultada, e, segundo li, logo nos primeiros dias tornou-se intenso o movimento de passageiros.
Nessas condições funcionou a estrada durante um ano, mais ou menos.
O que se realizou a 15 de fevereiro de 1867 foi a inauguração oficial da Estrada, já
em tráfego por conta dos empreiteiros construtores. Nesse dia, o presidente da Província, José Tavares Bastos, que na véspera havia percorrido o
trecho de São Paulo a Jundiaí, desceu a Santos em viagem inaugural. Não se promoveu nenhuma solenidade ou festividade.
Estava, com essa viagem presidencial, inaugurada e recebida oficialmente a estrada,
que no dia 16 ficou definitivamente franqueada ao trânsito público, com o mesmo horário e a mesma tarifa anteriores.
Não houve, ao que consta, qualquer acidente nessa viagem de Tavares Bastos.
O grave desastre, ocorrido entre o Ipiranga e São Paulo, foi fato anterior. Deu-se a 6
de setembro de 1865, quando a estrada estava em construção e era presidente da Província o conselheiro Carrão.
Por iniciativa da Câmara Municipal da capital promovera-se uma viagem de experiência
no trecho, já construído, do planalto. Segundo o programa estabelecido, a Câmara Municipal ofereceria um copo de água (N.E.:
expressão da época, para ser entendida não literalmente, referia-se ao oferecimento de um coquetel) aos empreiteiros,
na estação do Largo da Luz, ao cabo dessa viagem.
O presidente da Província e sua comitiva tomaram lugar no comboio, ao meio-dia, na
estação da Moóca. A composição vinha puxada por duas locomotivas e o presidente instalou-se, com mais algumas pessoas, na primeira delas, enquanto
os restantes convidados se alojaram nos três carros, que formavam o conjunto.
Ao aproximar-se o trem da ponte do Tamanduateí, onde havia um grande aterro, sentiu-se
um estalo, ocasionado pela ruptura de dormentes; ao mesmo tempo, rompeu-se a corrente que prendia uma à outra as duas locomotivas. A primeira, em
que ia o presidente, continuou sua marcha sem novidade. Mas a segunda saltou dos trilhos e, arrastando os três carros que puxava, despenhou-se pela
borda do aterrado. Teve morte instantânea o maquinista e saíram feridas algumas pessoas importantes da capital: dr. Joaquim Justo da Silva, barão de
Itapetininga, dr. João Ribeiro da Silva, conselheiros Ramalho e Pires da Mota, coronel Joaquim Floriano de Toledo e outros mais.
Foi uma sinistra viagem de experiência, evento no qual "pagou o pato" quem
menos culpa tinha, o engenheiro fiscal do governo, dr. Ernesto Street, que logo depois era demitido.
O fato, porém, nenhuma ligação teve com a inauguração oficial da estrada, realizada
ano e meio depois.
O início dos trabalhos e a inauguração da estrada de ferro de S. Paulo foram, segundo
os contemporâneos, os fatos de maior importância na vida da Província, depois da Independência. Era justo, portanto, que ficassem escoimados de
dúvidas sobre as datas e as circunstâncias.
Nesse propósito é que me pus à colheita das informações, que aqui reuni,
reproduzindo-as com absoluta fidelidade.
Se tiverem algum valor, o mérito não será meu, que minha foi simplesmente a paciência
nas pesquisas.
Santos, outubro de 1941.
Imagem: reprodução parcial da matéria original
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