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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS
História da S. Paulo Railway: corrigindo erros

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Desfazendo a crença de que um acidente fatal marcou a inauguração da São Paulo Railway, entre outros enganos históricos - que ainda assim persistiram em textos publicados décadas depois por vários autores, foi publicado em 2 de novembro de 1941, no jornal santista A Tribuna, este artigo de Círo Carneiro (possivelmente o ex-prefeito santista de 14/7/1938 a 1/7/1941 ou seu homônimo). A ortografia foi atualizada nesta transcrição:
 


Imagem: reprodução parcial da matéria original

Coisas da história santista
A Estrada de Ferro

Círo Carneiro

Álvaro Lopes, o suave cronista cujo trato delicioso a A Tribuna nos propicia cotidianamente, deu-me a ver certos apontamentos históricos da cidade, destinados à divulgação oficial, inclusive algumas notas sobre os primórdios da estrada de ferro que nos liga à Capital.

Colhera ele essas notícias na estimada História de Santos, de Francisco Martins, a qual, nesse passo, é carecente de alguma retificação.

Prometi-lhe pôr a limpo as incertezas e, assim, aqui lhe trago a informação corretiva, recolhida em papéis velhos.

Não há outro jeito de escrever história, senão compulsando alfarrábios tediosos, carcomidos pela traça, e mergulhando em velhos códices descorados pelo tempo. É onde se catam as pequeninas pedras, cuja falta se faz notável em obras que se destinem a perpetuar para os vindouros as coisas do passado, com os fatos que lhe constituem a trama e o espírito que lhe dá vida. É campo em que não têm cabida as conjecturas ou os cálculos supositícios.

O plano de construir-se uma estrada de ferro, que prendesse o litoral ao interior paulista, foi pela primeira vez tratado em público pelo súdito prussiano Frederico Fomm, que era gerente da casa comissária Aguiar, Viúva e Filhos, da praça de Santos. Conduzidas com acerto as negociações, obtiveram os interessados a promulgação da lei provincial n. 51 (antiga 24), de 18 de março de 1836, que concedeu à "Companhia de Aguiar, Viúva e Filhos, Platt e Reidd", privilégio exclusivo para a feitura de um caminho de ferro desde Santos até a vila da Constituição, Itu ou Porto Feliz, passando pela Capital.

Era, na época, uma idéia avançada, pois esse processo de comunicação, hoje tão vulgarizado, estava ainda em fase inicial. Datava apenas de 1825 a inauguração da primeira estrada de ferro explorada na Inglaterra.

Mas, a empresa, pelo vulto do capital que reclamava, excedia muito à capacidade econômica do meio provinciano em que brotara a idéia. À míngua de recursos apagou-se o momentâneo entusiasmo, vindo a caducar, pelo decurso dos dois anos previstos na lei, a concessão a que se não deu começo de execução.

Passados quase 20 anos, o marquês de Monte Alegre (José da Costa Carvalho) e o conselheiro José Antônio Pimenta Bueno, depois marquês de S. Vicente, paulista este e aquele baiano aqui radicado, ambos orientadores da política da Província, comunicaram ao barão de Mauá o plano de Fomm, de que tinham conhecimento. Instaram, mesmo, contra a relutância de Mauá, que já se notabilizara pelo seu gênio industrioso, para que requeresse nova concessão.

Acedeu, finalmente, o banqueiro com a condição de ser o nome daqueles dois políticos associado à tentativa. Simples empréstimo do prestígio pessoal dos dois estadistas, ambos senadores do Império, com renome nacional, pois tinham passado várias vezes pelos bancos ministeriais. "Nenhum deles", diz Alberto de Faria, "quis mais que a honra do seu nome na concessão e a esperança da estrada de ferro para a sua província", deixando totalmente a Mauá a parte que poderiam reclamar nas possíveis vantagens econômicas.

A lei geral n. 838, de 12 de setembro de 1855, autorizou o Governo Imperial a outorgar as mesmas vantagens, que haviam sido concedidas para a construção de uma estrada de ferro em projeto na província de Pernambuco, à empresa que se viesse a organizar no intervalo das sessões legislativas, para a construção de uma estrada de ferro entre a cidade de Santos e a vila de São João do Rio Claro.

Foi por força dessa lei que o governo do Império, pelo decreto nº 1.759, de 26 de abril de 1856, autorizou o Marquês de Monte Alegre, o conselheiro Pimenta Bueno e o barão de Mauá a incorporarem fora do pais uma companhia, que se encarregasse da construção de uma estrada de ferro que, partindo das vizinhanças de Santos, se aproximasse de S. Paulo e se dirigisse a Jundiaí, dando-lhes para esse fim uma concessão que duraria por 90 anos.

Continuou o tempo a deslizar imperceptivelmente na vida dos homens e sobre a face das coisas, imprimindo-lhes a mossa de sua ação e, quando já havia certa descrença da realização do melhoramento, a idéia tomou corpo no ano de 1859.

Com a intervenção do nosso ministro plenipotenciário em Londres, comendador Francisco Inácio de Carvalho Moreira (depois barão de Penedo), coadjuvado pelo santista Francisco Xavier da Costa Aguiar de Andrade, que servia como seu secretário de legação, organizou-se em Londres a "Companhia da Estrada de Ferro de S. Paulo" (São Paulo Railway Cy. Ltd.).

Os prospectos para a subscrição foram lançados por Rothschild & Sons, que Mauá tivera de associar ao negócio, e em poucas horas completava-se quase totalmente a subscrição do capital previsto – Libras 2.000.000 – salvo uma quinta parte, cujas ações, em obediência ao decreto n. 1759, teria que ser emitida no Brasil.

Chegou a Santos a notícia do acontecimento a 2 de fevereiro de 1860. Foi dia de alvoroçado júbilo na cidade. Naquele tempo, como ainda hoje, a alegria popu-...
[N.E.: trecho empastelado na composição do jornal, com uma linha repetida e outra faltante] ...me e muito rumor. Logo, por iniciativa do presidente da Câmara Municipal, José Justiniano Bitancourt, puseram-se anúncios convidando o povo para no dia seguinte iluminar a frente das casas em mostra de regozijo.

Assim se fez e na noite de 3 de fevereiro, quando surgiu no céu, o pálido planeta da saudade encontrou a cidade em luminárias. Duas bandas de música, uma das quais obedecia à batuta de Luiz Arlindo Trindade, percorreram as ruas pulverulentas da povoação acanhada que Santos era. Seguiam-nas magotes de populares, que levantaram muitos vivas aos concessionários e coadjuvadores da idéia e queimavam muitos foguetes e peças de estrondo.

Nem faltou, para que a festa ficasse completa, um estrepitoso encontro das bandas musicais no canto da Rua Antonina com a de Santo Antônio, o que lhes facilitou darem largas à rivalidade ferrenha num ligeiro arruído, em que mais foram as vozes exaltadas que as violências corporais.

Na sessão de 25 de fevereiro, a Câmara Municipal não faltou com um voto de agradecimento a Carvalho Moreira e Aguiar de Andrade "pelos esforços que fizeram para concluir a organização da companhia", voto que se estendeu a Monte Alegre, Pimenta Bueno a Mauá.

Já desde o dia 13 havia chegado em nosso porto o inglês Daniel Makensen, acreditado como agente oficial da companhia, que já havia empreitado com a firma Sharpe & Sons, também inglesa, a construção da via férrea.

E no mês seguinte estava em S. Paulo o primeiro superintendente da S.P.R., sr. J. J. Aubertin, que foi, por sinal, o introdutor e grande animador da cultura do algodão em S. Paulo.

Apressavam-se os preparativos para o início das obras. Era preciso que não esfriasse a confiança do povo.

A opinião pública estava já mui dividida. Se uns acolhiam com vivo entusiasmo a obra em projeto, pintando em cores exageradamente agradáveis o quadro do desenvolvimento comercial e industrial da cidade quando a estrada de ferro estivesse em função, outros havia, e não poucos, que lhe faziam cara, futurando a retrogradação da cidade e o aniquilamento do seu comércio, já em caminho de florescência. No ânimo destes tinha influência decisiva a notícia, já propalada, de que a construção da estrada exigiria a destruição do velho Convento de Santo Antonio.

Havia, ainda, os descrentes e os que propagavam a descrença unicamente com fito eleitoral. Aqueles viam no empreendimento uma astuciosa armadilha que se inventara para palmear o minguado dinheiro de alguns brasileiros de posses para os bolsos dos ingleses e davam conselhos em público pela abstinência na subscrição de ações da companhia. Estes pregavam que tudo não passava de engodo, com que os conservadores almejavam pescar votos nas eleições que vinham próximas.

Contudo, nas rodas oficiais havia confiança.

Na sessão da Câmara em 28 de abril seguinte, já o vereador José Antônio Pereira dos Santos (pai de d. Carolina Júlia Pereira dos Santos, que foi mãe do dr. Ulisses Paranhos), apresentava a seguinte proposta, aprovada sem discrepância:

"Achando-se próximo o dia em que têm de ser inaugurados nesta cidade os trabalhos da estrada de ferro e não devendo tão notável fato passar desapercebido entre os habitantes desta  mesma cidade, indico que a Câmara nomeie uma comissão composta de três de seus membros e de mais três cidadãos, pedindo-lhes que se dignem promover e dirigir os festejos que se hão de fazer por aquela ocasião".

Constituiu-se a comissão com os vereadores Teodoro de Menezes Forjaz, Alexandre Jeremias da Silva e José Maria Largacha e os cidadãos José Antônio Vieira Barbosa, Antônio Ferreira da Silva Júnior (depois visconde do Embaré) e Manoel Joaquim Ferreira Neto.

Fixado que o ato se realizaria a 15 de maio, deliberou a Câmara, ainda, que se pusesse editais, "convidando os habitantes da cidade a iluminarem as frentes de suas casas nas noites de 15, 16 e 17, em regozijo pela inauguração dos trabalhos da estrada de ferro".

No dia 14 já mostrava a cidade um ar festivo. As ruas tinham sido objeto de cuidado especial: com uma capinação e uma varridela tinham sido limpas do mato que usualmente as forrava e das imundícies de toda espécie que nelas se acumulavam de ordinário.

Por toda parte havia uma atividade desusada. O guarda-nacional dava uma escovadela no uniforme de gala, brunindo-lhe os metais dourados; os músicos afinavam carinhosamente os instrumentos com que se apresentariam na função do dia seguinte; nos quintais das casas mais abastadas, viam-se calças e sobrecasacas estendidas nas cordas de corar roupa, enquanto lá dentro as mucamas poliam com esmero colarinhos, punhos e peitilhos e a sinhá-moça dava os últimos retoques no vestido de seda lustrosa, com que pompearia no dia da festa.

Nesse dia desceu a Santos o presidente da Província, dr. Policarpo Lopes de Leão, que pousou no "Hotel Recreio Santista", à Rua da Praia, de propriedade de Francisco Xavier dos Santos, que ao ofício de estalajadeiro aliava o de leiloeiro oficial. Acompanhava-o o chefe de polícia e o cônego Ildefonso Xavier Ferreira, que representava o vigário geral de São Paulo. Chegaram também nesse dia, além de uma deputação da Câmara Municipal da Capital, o senador barão de Antonina (João da Silva Machado), os deputados gerais Joaquim Otávio Nébias e João da Silva Carrão e os deputados provinciais J. A. Pinto Júnior, Martim Francisco, barão do Rio Claro, Américo Brasiliense e Monteiro de Barros.

Raiou, afinal, o dia 15 de maio de 1860, do qual dizia um cronista da época:

"O dia 15 de maio ficará servindo de marco de légua na estrada do progresso que vamos encetar.

"Depois do grandioso fato da Independência do Brasil, em que os paulistas tiveram a iniciativa, é o fato de maior importância para a Província de São Paulo, de que temos notícia".

Realizou-se a cerimônia, por volta do meio-dia, depois de uma manhã de sol fervente, com a presença de todas aquelas mencionadas autoridades.

No quintal do Convento de Santo Antônio, uma dupla linha de bandeirolas multicores figurava os trilhos da futura estrada. Ao longo dela, formando alas, estacavam, imóveis como candelabros, os guardas-nacionais do batalhão local. O sol dava de chapa nos dourados da farda, pondo-lhes fulgores rápidos de relâmpagos.

De um e outro lado das alas, paravam as duas bandas musicais, que enchiam os ares com a pancadaria dos seus bombos e o estridor dos seus metais.

À roda, em certa distância, moleques já taludos estavam a postos para soltarem no espaço dúzias e dúzias de rojões, cujo estrondo havia de assinalar, no momento preciso, o início da "nova era" santista.

Ali estava presente, ao lado dos convidados de honra, tudo quanto havia de bom e melhor na sociedade santista: os vereadores, juízes de paz e mais autoridades locais, muito bem postos em suas sobrecasacas solenes; comerciantes ventrudos, ostentando pesadas e ricas cadeias de ouro sobre a proeminência abdominal; amanuenses escanifrados, com a palidez de pergaminhos; até os peralvilhos, que já os havia na época, com trajos de tal louçania que os faziam mais ridículos.

Não faltavam naquele numeroso concurso de povo as damas e donzelas, das quais dizia o noticiarista contemporâneo que se apresentaram "vestidas com a elegância e o bom gosto que sempre caracterizou as belas santistas". Com seus vestidos de seda e recobertas com seus mais ricos adereços, davam à festividade o tom de uma verdadeira parada de elegância. As moças, principalmente, afogueadas pelo sol ardente, que lhes fazia subir a cor ao rosto, punham no ato uma nota de alegria saudável, na exibição do contentamento que lhes ia dentro dos corações, pelo se lhes deparar tão propícia ocasião ao encontro com os namorados. Em roda do largo espaço reservado aos convidados ficava o povo miúdo: artífices, caixeiros, escravos, mucamas e todos os madraços, curiosos e basbaques da cidade.

O cônego Ildefonso preludiou a cerimônia, com uma prática mui adequada, em que se casavam a ciência da terra e a ciência do céu, recordando a primitiva penetração do Evangelho nas selvas do Cubatão, que iam ser rasgadas agora pelos trilhos da nova estrada.

Depois, ele próprio, com voz pausada e solene, deu a bênção à primeira terra, que foi cavada e conduzida pelo presidente da Província, num carrinho de mão, ao lugar em que assentaria a ponta dos trilhos.

Subiram então ao espaço aquelas imensas dúzias de ruidosos foguetões, ao mesmo tempo que as bandas rompiam com seus dobrados.

O carro de mão, que serviu para o presidente Policarpo conduzir a primeira terra, era obra de alto lavor, coisa muito para ver. Construído em jacarandá, era todo guarnecido com florões de prata, tendo uma pá do mesmo metal e um dístico em que os empreiteiros da estrada dele faziam oferecimento ao governo da Província.

Cessados os rumores dos fogos e das músicas, vieram os discursos.

Falaram os deputados Nébias e Martim Francisco, como que casando as vozes conservadora e liberal na celebração do acontecimento.

Exalçou-lhe a importância Martim Francisco em linguagem altíssona:

"Eis o dia! Eis a hora! Eis o momento solene em que a pátria dos heróis se enflora com o laurel que o progresso oferta e que a civilização prepara".

Não esqueceu louvores aos iniciadores da obra:

"Os que sem receber um ceitil tomaram a peito esta grande empresa merecem ser saudados por nós. Mauá, Monte Alegre, Pimenta Bueno são nomes que os santistas doravante trarão impressos nas páginas da gratidão".

Mas, refletindo uma boa parte da opinião pública, não lhe faltou uma pitada de reserva, em que aludia aos sacrifícios dos pequenos proprietários a serem expropriados e à falada demolição do Convento de Santo Antônio:

"Possa esta festa pacífica da indústria não ser amarga à pobreza honesta, nem ao templo que a devoção dos fiéis levantou ao Autor do Mundo! Abandonar o lar que nos escutou o primeiro balbuciar da infância é bem amargo; não dormir o último sono onde se viu despontar a primeira aurora é um pensamento acerbo para os deserdados da fortuna. Ver o templo augusto, que escutou nossas preces, mutilado pelo martelo dói no fundo d'alma aos que mais de uma vez em seu sacrário elevaram orações fervorosas ao Supremo Ser.

"Confiemos, senhores, que os escrúpulos da população serão atendidos pelos distintos cidadãos que estão à testa desta grande empresa".

Com esse discurso de Martim Francisco encerrou-se a primeira parte da cerimônia, que os espectadores em multidão, cobertos de suor, sob o sol escaldante, devoravam com os olhos e com as orelhas.

Dirigiram-se, depois, os convidados a uma grande barraca, armada com paus grosseiramente aparelhados, onde foi servido um lauto almoço oferecido pelos empreiteiros. O presidente da Província fez um primeiro brinde à companhia, seguindo-se com a palavra o superintendente desta, J. Aubertin, que recitou um discurso em inglês, pouco ou nada entendido pelos mais dos circunstantes.

A essa hora, se o espírito dos convivas já havia sofrido alguma transformação pela obra dos vinhos com que eram fartamente regados os comestíveis, também o tempo já se havia transmudado. Fez-se carrancudo e exprimiu sua cólera desenfreada em fortes rajadas que abalaram a barraca, pondo-lhe em risco a segurança. Com isso, susteve-se um pouco a avidez com que alguns comensais se diluíam nos licores. Mas, a tormenta que ameaçava não teve forças para conter a fúria oratória.

O deputado Joaquim Antônio Pinto Júnior declamou, então, os seguintes versos de sua lavra:

Salve ó terra abençoada
Nobre pátria dos Andradas;
Ergue a fronte laureada,
De flores engrinaldada.

Rompeu-se, enfim, a barreira,
Que o teu futuro prendia;
Ergue hoje o colo altaneira;
Do teu porvir surge o dia.

Por mais tempo não pôde o acerbo fado
Teu destino prender;
Romperam-se as cadeias e, mudada,
Foi forçoso ceder.
Os frutos do teu solo abençoado
Não mais serão perdidos
E entre os povos do mundo confundidos
Farão tua riqueza.

A alterosa serra escabrosa
De densa mata eriçada
Ante o progresso curvada,
Breve humilde e respeitosa,
Se tornará majestosa.
Dos produtos franca estrada
Desta terra abençoada.
Salve! Ó terra feliz que a natureza
Dotou prodigamente,
Das terras de Cabral és a princesa
Rainha onipotente

Houve, ainda, outros discursos, até que as nuvens negras que sobrepairavam desfizeram-se em chuva grossa, o que determinou o encerramento do festim com os brindes à Sua Majestade o Imperador do Brasil e à Rainha da Inglaterra, levantados pelo presidente da Província.

À noite houve ainda um baile de gala, promovido pela comissão designada pela Câmara Municipal e nas noites subseqüentes, de 16 e 17, prosseguiram os festejos populares, posto que com menor intensidade.

Por aí se vê que a inauguração dos trabalhos da estrada de ferro realizou-se, não a 24 de novembro de 1860, como narra Francisco Martins, mas a 15 de maio desse ano, o que, aliás, foi perpetuado na seguinte ata, lavrada pelo então secretário da Câmara Municipal, Manoel Luiz Ferreira:

"Auto de inauguração dos trabalhos da primeira estrada de ferro da Província de São Paulo, entre esta cidade e a vila de Jundiaí.

"Ano do nascimento de N. S. Jesus Cristo de 1860, 39º da Independência e do Império, aos 15 dias do mês de maio, nesta cidade de Santos, no quintal do convento de Santo Antonio, designado para estação e princípio da estrada de ferro entre Santos e Jundiaí, achando-se presentes o exmo. presidente da Província, dr. Policarpo Lopes de Leão, a Câmara Municipal, as autoridades eclesiásticas, militares e civis, o superintendente da companhia, J. J. Aubertin, e os empreiteiros da estrada, Sharpe & Sons, representados pelo sócio P. W. Sharpe, todos abaixo assinados e reunidos para o fim de dar-se começo aos trabalhos da mencionada estrada, aí, depois da cerimônia de bênção, lançada pelo muito rev. cônego dr. Ildefonso Xavier Ferreira, foi pelo exmo. presidente da Província revolvida a primeira terra, lançando-se assim os fundamentos da estrada que tem de ser construída em virtude da lei nº 838, de 12 de setembro de 1855, e decreto n. 1759, de 26 de abril de 1856, que autorizou os cidadãos exmos. marquês de Monte Alegre, conselheiro José Antônio Pimenta Bueno e barão de Mauá, para incorporarem fora do país uma companhia que empreendesse uma via férrea entre Santos e Jundiaí, a qual companhia foi organizada de conformidade com a citada lei e decreto, na cidade de Londres, contribuindo para isso o ministro plenipotenciário, comendador Francisco Inácio de Carvalho Moreira. E, para constar, lavrou-se o presente auto, em que assinam todos que presentes estavam. E eu, Manoel Luiz Ferreira, secretário da Câmara Municipal que o escrevi".

Não assistiram os santistas, nesse dia 15 de maio de 1860, o princípio da demolição do Convento de Santo Antônio. Mas, já estava ela iminente, como transparecia do discurso de Martim Francisco. E, na verdade, logo nos dias imediatos entraram as picaretas em ação, tanto que, ante a revolta da população, a 1 de junho já se anunciava que o delegado de polícia fizera sustar a demolição do convento.

Esse atentado contra o velho templo do Valongo levantou tumulto na cidade, como é sobejamente conhecido, em memória do que Santo Antônio, nessa igreja, é ainda hoje portador de uma bengala, que lhe puseram à mão, como que para própria defesa.

Esse espírito de revolta espelhou-se nuns versos anônimos, que então correram impressos.

Parodiavam os versos do deputado Pinto Júnior, atrás mencionados, opondo-lhes contradita.

Já Platão sentenciaria os poetas a banimento, como inimigos da verdade.

Confrontando essas duas produções poéticas contraditórias, os leitores melhor julgarão se foi justo e razoável o filósofo.

Eis aqui a versalhada de autor desconhecido:

Chora, terra amaldiçoada
Infeliz pátria dos Andradas;
Abaixa a fronte envergonhada
De dores nunca esperadas.

Rompeu-se, alfim, o bom senso,
Que te guardava outrora;
Abaixa hoje o colo amedrontada;
Da tua desgraça nasce a aurora.

Por mais tempo não quis o acerbo fado
Teu destino respeitar;
chegou-te o louco entusiasmo, e, mudado,
Forçoso te foi aceitar.
Os frutos do teu solo amaldiçoado
Não mais serão aproveitados.
Ao "progresso" e à irreligião condenados
Farão tua pobreza.

A serra altiva e honrosa,
De linda mata ornada
Ante o "progresso" curvada,
Breve, humilde e medrosa,
Se tornará espantosa,
A miséria abrindo a estrada
Nessa terra amaldiçoada.

Chora terra infeliz, que a natureza
Dotou prodigamente:
Das terras de Cabral eras a princesa
Rainha onipotente.

* * *

Acrescenta Francisco Martins que "somente a 16 de fevereiro de 1867 puderam os santistas ver chegar ao Valongo a primeira locomotiva a vapor" e que a nota mais interessante dessa viagem inaugural foi um desastre havido entre Ipiranga e São Paulo, no qual teriam saído feridos o presidente da Província e outras autoridades.

Também aqui uma verificação se impõe.

Já no dia 21 de fevereiro de 1866, pelas 10 horas da manhã, tinha chegado a Santos o primeiro comboio da nova estrada, o qual saíra de São Paulo às 7 horas da manhã. Desde esse dia, segundo noticiaram os jornais da época, embora não oficialmente inaugurada, a estrada ficou em tráfego diário, por conta dos empreiteiros.

Havia um trem diário de São Paulo para Santos, partindo da Capital às 8 e meia e chegando a Santos às 12 horas; retornava de Santos à 1 hora da tarde para chegar na Capital às 4 e meia. Custava a passagem de 1ª classe 10$000, o que na ocasião representava soma avultada, e, segundo li, logo nos primeiros dias tornou-se intenso o movimento de passageiros.

Nessas condições funcionou a estrada durante um ano, mais ou menos.

O que se realizou a 15 de fevereiro de 1867 foi a inauguração oficial da Estrada, já em tráfego por conta dos empreiteiros construtores. Nesse dia, o presidente da Província, José Tavares Bastos, que na véspera havia percorrido o trecho de São Paulo a Jundiaí, desceu a Santos em viagem inaugural. Não se promoveu nenhuma solenidade ou festividade.

Estava, com essa viagem presidencial, inaugurada e recebida oficialmente a estrada, que no dia 16 ficou definitivamente franqueada ao trânsito público, com o mesmo horário e a mesma tarifa anteriores.

Não houve, ao que consta, qualquer acidente nessa viagem de Tavares Bastos.

O grave desastre, ocorrido entre o Ipiranga e São Paulo, foi fato anterior. Deu-se a 6 de setembro de 1865, quando a estrada estava em construção e era presidente da Província o conselheiro Carrão.

Por iniciativa da Câmara Municipal da capital promovera-se uma viagem de experiência no trecho, já construído, do planalto. Segundo o programa estabelecido, a Câmara Municipal ofereceria um copo de água (N.E.: expressão da época, para ser entendida não literalmente, referia-se ao oferecimento de um coquetel) aos empreiteiros, na estação do Largo da Luz, ao cabo dessa viagem.

O presidente da Província e sua comitiva tomaram lugar no comboio, ao meio-dia, na estação da Moóca. A composição vinha puxada por duas locomotivas e o presidente instalou-se, com mais algumas pessoas, na primeira delas, enquanto os restantes convidados se alojaram nos três carros, que formavam o conjunto.

Ao aproximar-se o trem da ponte do Tamanduateí, onde havia um grande aterro, sentiu-se um estalo, ocasionado pela ruptura de dormentes; ao mesmo tempo, rompeu-se a corrente que prendia uma à outra as duas locomotivas. A primeira, em que ia o presidente, continuou sua marcha sem novidade. Mas a segunda saltou dos trilhos e, arrastando os três carros que puxava, despenhou-se pela borda do aterrado. Teve morte instantânea o maquinista e saíram feridas algumas pessoas importantes da capital: dr. Joaquim Justo da Silva, barão de Itapetininga, dr. João Ribeiro da Silva, conselheiros Ramalho e Pires da Mota, coronel Joaquim Floriano de Toledo e outros mais.

Foi uma sinistra viagem de experiência, evento no qual "pagou o pato" quem menos culpa tinha, o engenheiro fiscal do governo, dr. Ernesto Street, que logo depois era demitido.

O fato, porém, nenhuma ligação teve com a inauguração oficial da estrada, realizada ano e meio depois.

O início dos trabalhos e a inauguração da estrada de ferro de S. Paulo foram, segundo os contemporâneos, os fatos de maior importância na vida da Província, depois da Independência. Era justo, portanto, que ficassem escoimados de dúvidas sobre as datas e as circunstâncias.

Nesse propósito é que me pus à colheita das informações, que aqui reuni, reproduzindo-as com absoluta fidelidade.

Se tiverem algum valor, o mérito não será meu, que minha foi simplesmente a paciência nas pesquisas.

Santos, outubro de 1941.


Imagem: reprodução parcial da matéria original

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