A maior parte das moradias está concentrada entre a Rangel Pestana e o túnel
e nas encostas do morro
"Seu" João já sabia: o morro ia cair
Ele previu que o morro ia cair e pressentiu, a quilômetros de distância, que o filho estava nascendo. É o
amigo de todos e conselheiro do morro. Simples como ele só, não queria saber de reportagem, mas aos poucos revelou uma história que vale a pena
conhecer
"Seu" João é dessas pessoas que a gente vê pela primeira vez
e acha que conhece há muito tempo. A princípio parece não ser de muita conversa, mas depois começa a contar "causos" e mais "causos", mesclando a
fala mansa com um sorriso franco, gestos calmos e um jeito todo especial de olhar.
Logo dá para perceber que se trata de uma pessoa muito carinhosa e boa, pois ele surpreende o ouvinte ao dizer
que abrigou em sua casa 15 crianças e sete velhinhos, um deles com nada menos que 117 anos de idade.
Vejam o raciocínio dele: ao invés de comprar um Fusca para ficar enferrujando no fundo da escadaria,
resolveu aproveitar as economias para cuidar de alguns velhinhos que viviam em uma entidade no Interior. "Seu" João costumava mandar dinheiro para
eles, mas como sumia e nunca parava na mão certa, decidiu agir de outra forma. Não enviaria mais auxílio: cuidaria ele próprio dos idosos. E assim
fez, como prova uma velhinha de 79 anos que ele acolhe até hoje.
"Seu" João relata esses fatos sem contar vantagens. Mas isso é pouco, muito pouco da vida desse homem. Não houve
quem não o chamasse de ignorante naquele dia em que chegou ao serviço, bateu o ponto e pediu para ir embora porque o morro iria cair.
O sol brilhava bonito como ele só e, apesar de a idéia soar como um grande absurdo, conseguiu licença do
trabalho. Foi para casa e levou tudo o que tinha para um lugar seguro, na Rua São Paulo. Só faltou o cachorrinho. Quando voltou para pegá-lo, o
morro estava desabando sob o impacto de uma forte chuva. Dezenas de casas despencaram no Morro do Jabaquara, repetindo a tragédia que ocorreu em
vários outros morros de Santos naquele março de 1956.
Como ele previu o acontecimento? "Fazendo o bem para os outros. Tem alguma coisa de presente da natureza. O
resto é coisa de caridade". Desse jeito, sem maiores esnobismos, explica seu poder.
Seu João, amigo e conselheiro
E
esses pressentimentos que se tornam realidade não são recentes. Quando tinha oito anos de idade e trabalhava na roça, em São João da Boa Vista,
disse para o sobrinho mais novo: "Eu vou viver na cidade e você vai ser doutor". Um adulto que ouviu a conversa comentou: "Você, olhando o pé de
mato e falando assim..."
Quem levaria em conta esse tipo de conversa de criança? Pois não demorou muito e ele, bom jogador de futebol que
era, acabou saindo de sua cidade. Veio para Santos e foi convidado para trabalhar na antiga Docas, onde se aposentou como feitor. O tal sobrinho
companheiro da infância tem escritório na Rua Amador Bueno: é advogado e confirma a história para quem duvidar.
Conversa vai, conversa vem, "seu" João revela outro caso igualmente interessante. Certa vez viajou para Bauru,
onde seria testemunha de um casamento, e deixou a mulher grávida de sete meses em casa. Lá na festa, violão na mão, quis ir embora de repente e
explicou: "Minha patroa tá dando a luz. E é um homem". Ninguém ligou para o comentário e o convenceram a ficar porque não teria mais
condução para Santos aquela noite.
Mas ele não deixou por menos e pediu que cada um dos presentes memorizasse um pedaço do que ia falar. Frisou:
"Meu filho nasceu às 22h30. Quando a gente chegar lá, vai ter um lençol branco na janela, minha sogra que pôs para não entrar vento". Virou-se
para o sobrinho e afirmou que ele desmaiaria quando chegassem.
No dia seguinte voltaram todos para Santos. Há alguns metros da casa, alguém notou que tinha realmente um pano
branco na janela. E a surpresa foi ainda maior quando a sogra contou que nascera um menino. "A que horas?", tratou de perguntar "seu" João. E
quando ela respondeu fora às 22h30, o sobrinho caiu na hora. Tudo ocorreu exatamente como previsto.
Aquele homem forte, braços apoiados no muro, segue relatando vários outros casos e seu vizinho, José Ramos, é
testemunha de muitos deles. "Eu mato a cobra e mostro o pau", acrescenta. Sobre as suas previsões, volta a dizer com a tranqüilidade de sempre:
"São coisas que a pessoa nasce com ela. De resto vai do capricho, a pessoa tem que ser boa".
Não é à toa que a vizinhança o procura tanto para conversar. E ele volta a sorrir ao declarar: "São todos meus
fregueses de pensamento". |