Os homens contam histórias, entre uma partida e outra de dominó
As surpresas de um bairro bem peculiar
Um bairro bem diferente, esse Saboó. Além de ter um
cemitério, que lhe reserva um traço bem particular, os núcleos de casas estão divididos pelo imenso terreno da Prefeitura. Em cada ponto do bairro
se descobre um modo de vida peculiar, próprio, como se tudo não fosse parte de um mesmo todo.
Na Rua Pio XII, predominam os chalés de madeira, reduto de antigos moradores. Basta seguir um pouquinho e se
chega aos fundos do cemitério, onde o Saboó mais parece uma pequena vila, com casas pequenas, agrupadas ao longo de estreitas travessas. Final de
tarde, as mulheres conversam no portão e os homens se juntam nos botecos para prosear, jogar dama ou dominó.
Época de Natal ou São João, se unem e enfeitam as ruas, como se elas, os quintais e os cômodos das casas fossem
tudo uma coisa só. Todos se conhecem, as notícias correm depressa e os estranhos podem ficar certos que, se andam por aqueles lados, são logo
notados. Quem não sabe que é gente de fora?
Quem segue pela Rua Maria Mercedes Féa, bairro adentro, de repente começa a duvidar que esteja em Santos.
Árvores emolduram o caminho, pássaros cantam, os sapos e grilos ajudam a dar vida ao ambiente. O silêncio característico das matas só é quebrado
quando algum cachorro late, uma criança chora no quintal ou uma mulher grita na porta da cozinha, anunciando que a comida está na mesa. Em cada
uma das pequenas chácaras ou quintais, as plantações estão viçosas, explodindo da boa terra que tudo dá.
Ronco de motores, um outro Saboó - Segue que segue pelo mesmo caminho e já se começa a ouvir o ronco de
motores. Bem perto fica um outro Saboó, a chamada zona rica. A ocupação é mais recente, o sistema viário bem definido, predominam boas casas de
alvenaria, só uma rua não tem asfalto.
Em compensação, moradores da mesma rua nem se conhecem, quase ninguém conversa pelas esquinas, as crianças ficam
recolhidas diante das cores e do brilho da televisão. Outro tipo de vida, outra realidade. Muitos nem sabem que moram no Saboó, continuam se
dizendo moradores do Chico de Paula, como era conhecido o lugar antes da definição do novo abairramento, em 1968.
Esses Saboós tão diferentes subsistem no trecho entre as encostas dos morros, até o Largo da Saudade, Avenida
Martins Fontes, Avenida Nossa Senhora de Fátima e Rua Particular Ana Santos. A população não chega a três mil moradores.
Há poucos lotes vagos, e as perspectivas de mudanças correm por conta dos planos de ocupação do terreno da
Prefeitura. Só a construção do Conjunto Habitacional dos Estivadores, no mínimo, triplicará a população. E se ali for instalado um terminal de
cargas ou o Ceasa Regional, conforme anunciou o prefeito, o destino desse bairro tranqüilo e residencial estará definitivamente comprometido.
Fugindo das enchentes pelo cemitério - Uma verdade incontestável: só se pensa no Saboó na hora de
aproveitar o terreno, que é uma das poucas grandes áreas livres de Santos. Há todo um interesse em torno dele. No mais, a população se sente
abandonada, desamparada, porque há anos enfrenta problemas que os administradores não se preocupam em resolver.
Basta uma chuvinha de nada e o pessoal que reside nos fundos do cemitério fica ilhado. A Rua Pio XII enche de
tal jeito que a única saída é pular o muro do cemitério e atravessá-lo para chegar à Avenida Martins Fontes. É nessa avenida que os moradores
pegam condução, porque não há nenhuma linha de ônibus para servir esse trecho.
Sem condução e vítimas dos problemas crônicos da Pio XII, a população reivindica uma passagem de pedestres por
trás do cemitério, que permita o acesso à Rua Francisco Pedro dos Reis e ao Largo da Saudade. Mas, parece bem mais razoável melhorar o escoamento
das águas para evitar inundações, ao menos de imediato, porque essa passagem envolveria a desapropriação de áreas particulares.
"O abandono tá danado", diz um comerciante, olhando a água fétida e o limo acumulado nos cantos da Pio XII. A
Rua Maria Mercedes Féa? Não passa de um caminho estreito e esburacado, intransitável em dias de chuva.
Enquanto alguns cruzam o cemitério para escapar das enchentes, os que moram no trecho até hoje conhecido como
Chico de Paula não têm outra saída a não ser enfrentar a água. Dependendo da intensidade da chuva, até os quintais ficam inundados, nas ruas São
Vicente, Manoel Barbosa da Silveira, São Sebastião e Caraguatatuba. Quem mora na São Vicente não consegue esquecer que a rua já ficou cheia uma
semana...
"Antigamente, a Prodesan ainda limpava as galerias, agora nem isso", reclamam Manoel Quintiniano e Enock Alves,
ambos há mais de 20 anos no bairro. Isso sem contar que a Prefeitura nunca resolve o problema da Rua Itanhaém: os moradores querem o asfalto, mas
o dono do terreno e da encosta do morro que acompanham o lado esquerdo da via, no sentido Avenida Nossa Senhora de Fátima, não quer pagar a sua
parte. Dizem que é rico, cheio do dinheiro, mas não mora ali e está pouco se importando com o drama dos demais.
O estado da rua é de causar vergonha e, apesar de ser a única não asfaltada, caminhões e carros acabam levando a
lama para as demais vias, que ficam igualmente em péssimo estado. Em tempo: na Rua Itanhaém está a escola do bairro.
Pequenos serviços garantem os votos - Os diretores da Sociedade de Melhoramentos vivem na Prefeitura,
pedindo melhorias. Não pedem nada absurdo ou impossível, só o indispensável. Os moradores testemunham que há uns cinco meses as valas que escoam a
água que desce do morro não eram limpas. Agora o serviço está saindo, mas tudo indica que há algo por trás disso: a nova diretoria da SM tomou
posse, recentemente, ótima oportunidade para o prefeito ir ao bairro. Mas não poderia fechar os ouvidos aos apelos. Num ano eleitoral, é uma
questão de voto na urna.
A tranqüilidade é grande: as mulheres se reúnem no final da tarde para conversar
Bandeirantes, um orgulho
Falar no Saboó e não citar o Bandeirantes é comprar briga
com muitos torcedores do clube tricolor. Fundado em 1950, é o grande orgulho do bairro, apesar de lá só ter saído um grande atleta, Enéas
Veríssimo, o Ciciá, que jogou no Coríntians.
Olímpio Alonso, Agnaldo, Cândido, estão por aí para testemunhar as dificuldades que o clube enfrentou para
sobreviver por tantos anos. Agora, vive uma nova fase de incerteza: também ocupa o antigo terreno do IBC, e não sabe até quando poderá manter a
sede. Sem campo para treinar, como pode um time sobreviver?
De uma coisa todos estão certos: o clube tem seus direitos, afinal aterrou a área, fez benfeitorias e é um dos
poucos imóveis com planta legalizada na Prefeitura. Nas conversas de bar, os moradores temem que aconteça o pior e chegam a sentir pena do
Barreiros - time adversário que não é do bairro, como fazem questão de frisar - que tinha um campo de futebol no terreno: há uns quatro meses, a
Prefeitura foi lá, arrancou até as traves a pretexto de que iria realizar obras, mas não fez nada além do que jogar uns caminhões de aterro.
Os torcedores só se animam quando começam a falar sobre as disputas de dominó ou Ciciá, atleta
inesquecível. Começou a jogar no Bandeirantes ainda moleque, foi contratado pela Portuguesa e, mais tarde, pelo Coríntians. O interessante é que,
quando o Coríntians quis levar o Ciciá, a Portuguesa praticamente impôs a compra de Gilmar. "O outro foi como contrapeso, porque o bom
mesmo era o Ciciá", lembra José Alonso, revelando a grande mágoa da população: o goleiro Gilmar chegou a campeão do mundo, hoje está bem de
vida, e Ciciá, no entanto, morreu sozinho, na miséria.
Mas o Saboó tem também o Grêmio Recreativo São José, fundado em 1974 por aposentados que passam as tardes
jogando dominó e conversando. O bar-quitanda do Waldemar, um dos principais pontos de encontro do bairro, serve de sede.
Dizem também que o bar é sede do Clube dos Mentirosos. Mas, quando se toca no assunto, os freqüentadores
desconversam, dizem que tudo não passa de brincadeira. Quando alguém insiste e pergunta qual a maior mentira que já se contou ali, saem de lado,
balançam a cabeça e conservam o assunto em segredo. |