Sobre os muros do cemitério, as crianças fazem estripulias
e nem precisam de televisão para viver grandes emoções
Essas crianças e suas travessuras
É impossível não achar graça das travessuras que as crianças
que moram nos fundos do Saboó fazem. O cemitério, tão cheio de mistérios e enigma para alguns, não passa de um prolongamento dos quintais dos
meninos Jairo, Marcos, Edgard, Jorge, Flávio e Eduardo, que fazem parte da turminha mais danada do bairro.
Sentados na rua, pés no chão e sem camisa, se empolgam ao contar as façanhas. Os rostinhos se iluminam e a
expressão é a mais marota do mundo quando confessam: "Um dia nós pegamos Cr$ 500,00 da Maria Féa". Está lá, dando moleza, não vai fazer falta pra
ninguém, por que não aproveitar melhor?
É pensando desse jeito que comem os doces deixados para a menina Jandaia. E, entre risinhos, um deles lembra:
"Quando chega a Páscoa, é cada ovo desse tamanho!". Outro lambe os lábios ao pensar na quantidade de balas que Jandaia (e, conseqüentemente, eles)
ganha no Dia de São Cosme e Damião.
O orgulho não poderia ser maior quando contam que já entraram no cemitério à meia-noite, ou que fazem vistorias
com lanternas, para ver se descobrem algo diferente. Já viram muito osso dentro de urna e até uma cabeça em cima de um caminhão...
Se são pegos em flagrante por algum funcionário, buscam outras alternativas, como fazer piqueniques nos galhos
de árvores, escorregar na encosta do morro ou pegar caronas em caminhões. Mas parece não haver maior fonte de diversões que o cemitério.
Os vidros com flores que enfeitam os túmulos servem como alvo na hora de ver quem é o bom em pontaria. Quando
não estão brincando de mocinho e bandido entre as carneiras, estão sobre elas, empinando pedrinhas para assustar um visitante mais supersticioso.
Isso quando não se põem a assustar de verdade, à noite, enrolados em jornal.
"Um dia esse aí deu um chute na porta da mulher. Sacudiu tudo, caiu quadro e panelas. Fez o maior barulhão e a
mulher ficou uma fera. Foi difícil escapar dela", relembra um deles, deixando claro que não precisam assistir nenhum filme de herói, para viver
grandes emoções. Ninguém ali gosta de televisão.
A família Acioli tem medo de ser expulsa e não sabe o que fazer
Posseiros temem o pior
O medo e a incerteza passaram a fazer parte do dia-a-dia das
famílias que moram no antigo terreno do IBC desde que este passou para a Prefeitura, em dezembro de 1980. Elas estão
ali há mais de 30, 40 anos, mas temem perder tudo e serem expulsas para um lugar qualquer, quem sabe engrossar as favelas que avançam sobre os
mangues.
A Prefeitura anuncia a realização de obras no terreno, mas continua sem definir a situação dos posseiros. Surgem
boatos, as dúvidas crescem e os moradores depositam toda sua esperança na promessa do secretário de Assuntos Jurídicos, Luís Antonio de Oliveira
Ribeiro, feita há cerca de um ano: nesse único contato, garantiu que ninguém ficaria sem teto.
"A gente só pode esperar que ele cumpra a promessa. Está tudo na mão dele", comenta desanimado Antônio Acioli,
há 48 anos na Rua Maria Mercedes Féa, 4. O pior é que seu barraco está velho, prestes a cair, e ele não tem autorização para reformar. Dia de
vento ou chuva forte, a família Acioli entra em pânico. Até as crianças pressentem o perigo e ficam grudadas no pescoço da mãe ou da avó.
Como pleitear uma casa popular se sofreu um enfarte e recebe uma pensão mensal de apenas Cr$ 10.400,00? A mulher
ajuda, faz pequenos serviços para fora, mas tem que passar a maior parte do tempo em casa, cuidando dos filhos e dos netos.
No tempo em que a área pertencia à União de Transportes, a Lima Nogueira e, mais recentemente, ao IBC, os
ocupantes pagavam taxas mensais simbólicas, mas recebiam recibo e isso lhes dava segurança. Era uma prova dos anos vividos ali. A Prefeitura abriu
mão dessa taxa e isso só serviu para aumentar o clima de tensão.
Marieta de Almeida Castro mora na Maria Mercedes Féa há 36 anos e sabe que a aposentadoria do marido - Cr$ 11
mil mensais - não dá nem para pagar o aluguel de um barraco. Onde está, ainda tem chance de plantar para o sustento e seguir vivendo.
A situação da vizinha Maria José não é muito diferente: marido aposentado, muitos gastos com remédio, vida cada
vez mais difícil. Depois de 30 anos sobre aquele pedaço de chão, tudo pode se acabar. Seus olhos ficam parados e as mãos se comprimem quando diz:
"Estou com medo. Muito medo. Trinta anos não são 30 dias".
Um clube de campo, quem diria?
Na encosta do morro, o clube de campo
O
Saboó vai ganhar um clube de campo. Quem duvida pode visitar a obra, numa entrada à direita de quem segue pela Rua Maria Mercedes Féa, e conversar
com o empreiteiro Roberto Capra. Os serviços seguem devagar, mas o dono de tudo, Vítor Soares Domingos, parece não ter pena de gastar porque
investiu alguns milhões só na escultura do Cristo, em gesso, com 2,40 metros de altura, instalada no local.
Aos poucos, a encosta íngreme e cheia de pedras se transforma. A cada 30 metros é construído um paredão de
contenção. Entre os primeiros há duas piscinas quase prontas, com capacidade para cerca de 35 mil litros de água cada. É lá que crianças e
adultos, sem qualquer outra opção de lazer no bairro, se divertem nos domingos de sol.
Só nos preparativos iniciais foram utilizados 4.700 sacos de cimento. Os gastos semanais estão em torno de Cr$
200 mil, incluindo o pagamento dos 10 operários.
Roberto Capra calcula que só em cinco anos a obra estará totalmente pronta, com 15 a 20 casinhas e, quem sabe,
até um salão de festas e um restaurante, na parte mais plana. Em torno das casinhas, muitos ciprestes com cheiro de maçã e eucaliptos. Isso sem
contar o constante barulho da água límpida que nasce no alto do morro, entre umas pedras, e garante a aproximação com a natureza. |