Expulso durante a guerra, retornou para começar tudo
Fuga apressada em meio a cenas de desespero
Não dava mais tempo de nada. O jeito era partir, deixando
tudo para trás. O povo já estava invadindo as chácaras dos japoneses, levando tudo o que podiam e devastando o que não dava para carregar. Segunda
Guerra, os japoneses são inimigos, a população não perdoa.
As cenas de choro, desespero, fuga apressada com crianças nas costas, continuam bem claras na lembrança de
Uskugsi Shimabukuro, um dos proprietários de chácara no Saboó, bairro que concentrava boa parte da comunidade japonesa de Santos. "Tomaram porco,
tomaram tudo. Tanta galinha que tinha", diz ele, com sotaque bem marcado.
O rosto se contrai, indicando o quanto lhe dói reviver tudo isso. Na época tinha cinco filhos, e até hoje não se
conforma de saber que todos passaram 24 horas sem comer nada. Na pressa não deu tempo de pegar muita comida, no caminho também não houve chance.
Muito medo e incerteza, a tentativa de sobreviver na lavoura, em Presidente Prudente. Essa luta pela
sobrevivência durou quase dois anos, até que terminou a guerra e ele sentiu que devia voltar, reconstituir o que havia restado para trás. Mais uma
vez a vida começava do zero: Shimabukuro plantava, logo comprou uma carroça e saía vendendo o que produzia pelas ruas. Hoje ainda cuida da terra
que lhe garantiu a sobrevivência, mas só porque gosta. Os filhos estão crescidos, são feirantes e garantem o sustento da casa.
A devoção é grande, o povo se cotizou e construiu uma capela para a santa Maria Féa
Ele enterrou Maria Féa, e se orgulha disso
O coveiro que enterrou Maria Féa ainda está vivo, mora ali
no Saboó e passa as tardes no Bar do Waldemar, contando essa e tantas outras histórias. A voz não é tão firme, mas a memória não falha e os
detalhes dos casos surgem acompanhados das devidas entonações e gestos.
Ele não esconde o orgulho que sente por ter enterrado aquela hoje considerada santa por milhares de devotos.
Ramon Ximenes, o único coveiro da época ainda vivo, não consegue esquecer quando o corpo chegou, num domingo à tardinha. Não estava esquartejado,
como muitos supõem, apenas seccionado na altura do joelho, para poder caber na mala. No pescoço restavam os vestígios do estrangulamento.
Mas a surpresa maior ficou reservada para o dia seguinte. Junto ao corpo, Ramon encontrou um feto de sete meses,
"que a natureza se encarregou de pôr para fora". Era uma menina, e ele, então com apenas 24 anos de idade, teve a cautela de enterrá-la junto à
mãe, no túmulo 624 da quadra 6.
Faz questão de esclarecer outro ponto: o túmulo de Maria Féa nunca foi mexido e não passa de uma grande mentira
isso de dizer que abriram o caixão, em 1950, e encontraram o corpo inteiro, os cabelos crescidos. Não tolera esse tipo de boato e ameaça: "Quem
falar que isso aconteceu eu desminto. Podem vir até a polícia ou o prefeito na minha casa".
Como se seguindo uma tradição, todas as segundas-feiras mulheres acendiam velas no túmulo de Maria Féa. Logo
começaram a aparecer plaquetinhas e bilhetes agradecendo milagres e em um ano toda Santos comentava sobre graças alcançadas. Até Ramon ficou
devoto e guarda consigo uma foto dela.
Outro orgulho: viu o corpo de Santos Dumont - Ramon Ximenes conseguiu a vaga de coveiro mal completara 18
anos. Custou a acostumar, principalmente porque os iniciantes sempre ficavam com as piores tarefas. Até hoje ele torce o rosto quando relembra os
corpos dos afogados, que soltavam a pele a qualquer contato.
Ele enterrou Maria Féa e conta como foi
Mas,
surpresas importantes ficaram reservadas. De repente, um rebuliço do lado de fora, muita correria. Saiu depressa e chegou a tempo de ver o corpo
de Santos Dumont no caixão, mas o cortejo parou bem ali, em frente ao cemitério da Filosofia.
Apesar da boa memória, perdeu as contas de quantas autópsias fez em seus 30 anos de trabalho. Isso mesmo, houve
época em que os próprios coveiros se encarregavam de retalhar os corpos. Os médicos só faziam a vistoria final.
Aos poucos se acostumou com tudo, guardava o cemitério à noite e ficava numa salinha em meio a sacos com ossos.
Olhava as caveiras como quem observa uma escultura!
Se o defunto levantar, "toco o pau" nele - E medo, não sentiu nenhuma vez? Sentiu sim, e essa é uma das
suas melhores histórias.
Num dia qualquer, não sabe de qual ano, aproximadamente às 20 horas, chegou o corpo de um homem que morrera em
frente à Alfândega velha. Estava com a boca aberta, e os olhos arregalados, pareciam dois vaga-lumes no escuro.
"Tem sujeito que parece morto, mas dura 24 horas", comentaram com ele, que não perdeu tempo: armou-se de um
pedaço de pau e estava disposto a acertar o defunto, caso se levantasse da mesa. O pior é que o interruptor ficava bem no meio da Igreja e ele
tinha que caminhar um bom tempo no escuro, até acender a luz. Vencido esse drama, foi logo se certificar da situação, conforme conta: "Encostei a
mão devagar, mas o corpo estava rijo, duro. Se estivesse molinho eu ia embora".
Quem não dá uma boa gargalhada com essas histórias do velhinho Ramon? Se deixar, ele vara a noite contando casos
pitorescos. Não esconde o riso quando lembra da América, que teve que atravessar o cemitério vestida de noiva para pegar um táxi lá na frente. É
que a Rua Pio XII estava intransitável.
Muito querido no bairro, nem liga quando o acusam de ter roubado o gato da Maroca. Roubar um gato? É sim, quando
já estava assadinho e pronto para ser devorado. Coisas da mocidade! |