Rua do Comércio em 1922, quando era chamada de Rua de Santo António,
e a Praça Rui Barbosa tinha o nome de Largo do Rosário
Foto: cartão postal nº 315 da Union Postale Universelle - Estados Unidos do Brasil
Imagem cedida a Novo Milênio pelo historiador Waldir Rueda
Reminiscência de um velho comércio
Francisco de Marchi
Recuando no tempo, trinta ou quarenta anos, e dentro do tranqüilo ambiente de uma casa
comissária de café, levantaremos lembranças de alegres contornos. De saída, a atmosfera em que pontificava um alquimista perseguindo o ouro - o
classificador de café - sempre debruçado sobre fileiras de xícaras com algum café torrado e moído, sem açúcar, cobertas depois por água ebuliente,
mistura que ele sorvia em pequenos goles, sem degluti-la e de forma ruidosa.
Era o duro trabalho de pesquisa e análise na composição de "pilhas", não raro de 2.000
sacas, na liga de cafés de conta própria e de conta alheia e que, graças à sua competência, se traduziria pela melhoria do grande lote, no aspecto e
na bebida, reputando os preços de venda, a favor do comissário, a favor dos comitentes...
Na vida doméstica das empresas de pequeno porte, ocorriam de quando em quando
episódios engraçados. O do comitente que, havendo vendido a partida de café que consignara por bom preço, vai ao cassino para aumentar os ganhos e
perde tudo no pano verde. De manhã, ao chegarmos ao escritório, lá estava ele sentado na soleira da porta de entrada, arrasado, visando à obtenção
de "algum dinheiro" para o retorno ao Interior, de trem.
Ou do outro cliente indignado com nossas prestações de conta: "Não me queixo dos
preços; detesto, porém, que xinguem meus cafés, tachando-os de baixos em tipo, de descorados ou mofados e outros insultos". Nas seguintes contas de
venda que lhe remetemos, com preços bem menores - o mercado entrara em baixa -, "adoçamos" a descrição dos cafés vendidos. Pela volta do Correio, o
comitente bateu palmas: "Recebi as contas de venda e estou satisfeito. Remeterei mais café".
Um terceiro comitente tinha o vezo, ridículo para nós, de sempre declarar nos
conhecimentos um valor incompatível com o mau café que embarcava. Aconteceu que houve um incêndio na Sorocabana e o vagão
que trazia os cafés daquele cavalheiro ardeu por inteiro. O sujeito não concordou com a reposição em espécie proposta pela Estrada: ajuizou contra
ela uma ação, tendo por piso o valor declarado nos conhecimentos, e ganhou-a. Depois nos dizia, com ar malicioso: "Devemos sempre reputar o que é
nosso. É do jogo!". Infelizmente, para ele, nunca mais conseguiu perder mercadorias em incêndios!
E havia os golpistas. Um deles, "recomendado por antigo cliente", quis nos vender
cinco conhecimentos de café fino, de 100 sacas cada. Bem, analisando os documentos, percebemos que o frete neles lançado pela Estrada correspondia
apenas a uma saca! O meliante adulterara os conhecimentos, acrescentando à mercadoria embarcada (uma saca) mais dois zeros! Foi-lhe preparado um
efetuoso flagrante e acabou por dialogar na polícia...
Assisti na firma que trabalhava a uma cena inesquecível. Um pequeno fazendeiro, que
tinha sua conta em descoberto, veio pedir ao nosso superintendente, Ataliba de Almeida Moura, paulista quatrocentão, financiamento de café por preço
superior aos vigorantes em sua zona!
- Então - indagou Ataliba, surpreso - você quer que lhe adiante o custo do café e
ainda um hipotético lucro? Que garantia dará?
O solicitante vacilou. E apenas estendeu as duas mãos abertas, maltratadas, repletas
de cicatrizes, tomadas por monstruosos calos:
- Estas mãos, "seu" Moura!
Ataliba ficou de pensar. No começo da nova safra, percorrendo o interior, resolveu
passar na fazendinha daquele que lhe solicitara tão esdrúxula ajuda. Encontrou-o, bem como seus quatro filhos, numa atividade brutal, sob sol
abrasador. O primeiro filho no terreiro, o outro na plantação ressequida, o terceiro na capinação e o quarto puxando por uma carroça de burros.
Diante do quadro, dos que nada possuindo lutam desesperadamente contra os maus fados, Ataliba comoveu-se e concedeu o empréstimo pedido. E nunca
veio a se arrepender de seu gesto.
Numa firma da Rua do Comércio, e próxima à nossa empresa,
trabalhava o velho e dinâmico Álvaro Moura, um dos que mais lutaram pela arregimentação de sua classe, no respectivo sindicato. Primava pelo
tratamento de sua escrituração contábil, com nomenclatura precisa, codificada e em escala decimal. Nélson Ribeiro, contador que no Banco do Brasil
analisava os balanços recebidos, contou-me que o sisudo estabelecimento, por quem de direito, chegou a elogiar a clareza e estrutura das peças
contábeis de Moura.
Na ocasião, o nosso entusiasta sindicalista amargava a visita de um fiscal do Imposto
de Renda, que pusera em xeque o valor dos estoques de café lançados no balanço da firma. Moura sublinhava as alternativas que lhe cabiam na
determinação daquele valor, exibindo documentação do custo da mercadoria e seus gravames e as cotações do dia, na Bolsa Oficial. Até que, perdendo
as estribeiras, encheu a mesa com as amostras dos cafés armazenados - cabeças e "rabos" de lote - e explodiu:
- O senhor tem aí o torrador, a mesa de provas e as amostras. Vai torrar e beber esses
cafés para depois discutir se os valores a eles atribuídos no balanço estavam corretos!
O fiscal, já mais compreensivo, passou a tratar de outros itens da fiscalização.
Conversando recentemente com Nagib Salim Haddad, uma das figuras tradicionais do
mercado cafeeiro, relembramos a época em que foi promulgada, no governo de Ademar de Barros, a lei que regulamentava as operações de consignação de
café. Na expedição de uma conta de venda passava a aparecer novo imposto, o de consignações. Bitributação, no duro. O novo ônus iria acabar com as
remessas de café em consignação. A Praça gritou, Haddad foi ao judiciário e, por fim, foi derrubado o malsinado tributo. Infelizmente, começavam a
soprar outros ventos: a abertura de agências bancárias, espalhadas pelo Interior, para financiamento direto aos produtores; selava-se a morte das
consignações de café!
Mas o café tinha mesmo as costas largas. Ao tempo da chamada Lei do Selo - lei já
extinta e que não deixou saudades - a fiscalização arremetia insistentemente contra os comissários de café para farejar-lhes a papelada:
correspondência, compromissos de remessa de café, telegramas. Geralmente o valor dos compromissos estava coberto por adiantamentos feitos contra
saques de letras de câmbio. Mas o Fisco, numa simples carta de sondagem de negócios, numa informação de preços por telegrama, já rosnava tratar-se
de operação conclusa, ou de direitos transferidos, tributáveis... Era um inferno!
Tempo em que as ligações telefônicas para o Interior eram difíceis, demorando às vezes
24 horas ou mais; em que os telegramas, para não se tornarem caros, eram passados em código (o ABC era uma das codificações mais usadas). E não
havia TV, nem satélites orbitando no espaço para precisar, com antecedência, as deslocações das frentes frias ou chuvas diluvianas, prejudiciais aos
cafezais e às colheitas, e que hoje previnem negócios precipitados! |