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Publicado em (mês/dia/ano/horário): 04/21/13 18:05:31
Última modificação em (dia//mês/ano/horário): 30/07/2024 17:06:52
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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Santa Cruz do Marapé tem origem misteriosa

Todos os anos, no dia 3 de maio, uma festa religiosa agitava o normalmene pacato trecho final da Rua Joaquim Távora, no bairro do Marapé. O final dessa rua, junto ao morro, é marcado por uma solitária cruz, e se alguém perguntar o motivo de sua existência naquele local, poucos saberão responder. Não tem qualquer ligação com o cemitério vertical Memorial Necrópole Ecumênica, ali erguido depois - e incluído no Livro dos Recordes (Guiness Book) como o mais alto prédio-cemitério do mundo -, pois a cruz já existia ali bem antes que se pensasse em tal edificação.

Novo Milênio descobriu em 2012 que no bairro do Marapé já existiu uma capela de Santa Cruz, no início do século XX, da qual hoje nem a própria Diocese de Santos tem conhecimento (os antigos registros paroquiais santistas estão nos arquivos da Cúria Diocesana na capital paulista). Essa capela não tem relação com a atual Igreja de Santa Cruz mantida pela União Social Camiliana, pois esta data de 1924, sendo portanto bastante posterior à citada nas duas notas encontradas por Novo Milênio em pesquisa nos arquivos do jornal paulistano O Estado de São Paulo:

A primeira nota, com seis linhas de texto na primeira página (final da coluna 3 a partir da esquerda) da edição de segunda-feira, 5 de maio de 1902 do jornal O Estado de São Paulo. A nota, publicada na seção Os Municípios, como sendo procedente de Santos, pode indicar a data de criação da capela, pois se refere à bênção das instalações, em ato com grande participação popular (mantida a ortografia original):

"- Ante-hontem realisou-se a ceremonia da bençam da capella de Santa Cruz, assistindo ao acto mais de tres mil pessoas. Hontem devia ter alli havido uma missa cantada ou rezada".

Imagem: reprodução parcial da página 1 de O Estado de S.Paulo de 5/5/1902 (Acesso: 25/8/2012)

A segunda nota está na página 4 (final de uma coluna e início de outra) do jornal O Estado de São Paulo de 10 de maio de 1914, tendo o seguinte teor, na ortografia original:

"Santa Cruz do Marapé - SANTOS, 9 - Realisar-se-ao amanhan os festejos da Santa Cruz do Marapé, na capella do mesmo nome, situado no sopé daquele morro. O programa será o seguinte: Missa solenne com canticos, bençam do SS. Sacramento, pela manhan: durante o dia leilão de prendas: á noite ladainha. Será tambem queimado vistoso fogo de artificio."

Imagens reproduzidas da página 4 de O Estado de S.Paulo de 10/5/1914 (Acesso: 25/8/2012)

Note-se que as festividades citadas nas duas notas de jornal acima transcritas também ocorriam em maio, conforme a tradição que continuou até o final do século XX no bairro.

A partir dessas notas, Novo Milênio conduziu entrevistas com alguns moradores mais antigos do Marapé (diretamente ou com o apoio do professor e pesquisador de História Francisco Carballa), e alguns lembram de um nicho com imagem religiosa próximo a uma fonte hoje situada dentro do terreno do cemitério Memorial. Estimulados a falar sobre uma capela no final da Rua Joaquim Távora, alguns parecem lembrar dela, mas com pouco detalhamento. Diversos mapas santistas da época, consultados nesta pesquisa, não indicam a presença de alguma capela com tais características.

Até serem encontradas as notas acima, não estava disponível qualquer referência na imprensa santista sobre tal capela, também totalmente esquecida entre os moradores das proximidades. Apenas em 21 de abril de 1966, o jornal santista O Diário publicou esta notícia (fotocópia enviada a Novo Milênio pelo internauta Vitor Dias):

Imagem: reprodução parcial da página final de O Diário de 21/4/1966

 

Cruz de pedra tem história de 62 anos

No final da Rua Joaquim Távora, bem ao pé do morro de Nova Cintra, existe uma cruz de pedra.

Muitas histórias, a maioria delas não passam de lenda, sem fundamento no real, estão ligadas àquela cruz ali erguida anos atrás.

Quase um século - Os moradores da redondeza não são os mesmos de antigamente, e apenas conhecem alguma coisa, de "ouvir dizer". Mas, conseguimos falar com o único morador, ainda vivo e que participou ativamente daquela história - o sr. Dionísio, um espanhol de 80 anos, que tem agora alguma dificuldade para se expressar. Mesmo assim, conseguiu contar alguma coisa sobre a história da cruz.

Segundo ele, a cruz foi colocada ali em 1904, há 62 anos, portanto.

História - Naquela época, contou-nos Dionísio, a CDS, proprietária daquela área que abrange uma pequena cachoeira, que serve aos moradores do lugar, onde as mulheres lavavam roupa, resolveu cortar o fornecimento.

Foi então que eles se reuniram e solicitaram que não se concretizasse essa ordem; tendo conseguido, resolveram erguer uma cruz de pedra, em sinal de agradecimento.

O próprio sr. Dionísio foi quem construiu a cruz, ajudado por outros vizinhos. Trabalhava numa pedreira ali perto, de onde trouxe o material transportado num carro de boi. Conta ele que a obra de muito trabalho. O local era um brejo e o carro ficou atolado.

Finalmente, a cruz foi erguida. Daí em diante, frequentemente eram colocadas velas no local e, durante o dia de Santa Cruz - 3 de maio - havia festivas comemorações, hoje praticamente extintas.

Seguiu-se depois a ideia de fazer erigir uma igreja, chegaram a adquirir o material que, no entanto, foi roubado, e a igreja acabou por não ser construída.

Ao lado dessa história, existe aquela, de uma mulher que, desesperada, enforcou-se numa árvore, existente ali no morro, e a cruz teria sido, então, erguida em sua memória.

Braço de madeira - Há alguns anos atrás, a Prefeitura pretendeu retirar a cruz de pedra. Inclusive, um trator chegou a desmontar um dos braços de pedra.

Diante do protesto dos moradores, a Prefeitura desistiu do intento e, ao invés do braço de pedra, recolocou um outro, de madeira.

Hoje, o local é ainda muito visitado pelos fiéis do culto umbandista, pois, normalmente, ali é encontrada enorme quantidade de imagens quebradas, alimentos diversos ali depositados em tigelas, velas, bebidas etc.

O abandono em que se encontra aquela cruz é evidente, principalmente agora quando, atraídos pelos alimentos, já encontramos animais e insetos de toda a sorte.

Um texto publicado pelo jornal A Tribuna de Santos, em 2 de maio de 1980 (página 4), conta desta forma o que a reportagem desse jornal havia conseguido apurar então, junto aos antigos moradores:


O final da Rua Joaquim Távora, com a cruz misteriosa
Foto publicada com a matéria de A Tribuna em 2/5/1980

Marapé revive a festa do Dia de Santa Cruz

O velho Ângelo já não tem o mesmo andar de outros tempos: "Minhas pernas já não querem mais nada, malandrinhas..." - diz, com sotaque português. E lembra que, quando chegou ao Marapé, andava pelas ruas com os tamancos nas mãos, para não sujá-los de barro.

Isso foi há 55 anos; tudo mudou. Hoje, no passo curto dos 80 anos, o velho Ângelo Lopes Parada recolhe-se à sombra de uma árvore e se recorda de fatos ocorridos no bairro, com antigos moradores. Todos estão contentes porque amanhã, Dia de Santa Cruz, haverá uma grande festa junto à misteriosa cruz de pedra, no final da Rua Joaquim Távora. "Será uma comemoração como nos velhos tempos", diz, alegre, José Limeres, o Juca, da comissão coordenadora do festejo.

Os preparativos começaram há mais de um mês e movimentaram muita gente. A cruz foi pintada de branco, o piso ganhou uma camada de asfalto e a área em volta foi limpa. A Rua Joaquim Távora recebeu iluminação especial e está enfeitada com varas de bambu e com bandeirinhas coloridas, trançadas de um lado a outro, da cruz ao Canal 1.

A festa começará às 20 horas, com missa campal rezada pelo padre Francisco Leite, pároco da Igreja de São Judas Tadeu; haverá procissão, muitos fogos de artifício e até seresta. "Será uma festa inesquecível e que repetiremos todos os anos", completa Gabriel Esteves, nascido ali há mais de 50 anos.

Como surgiu? - Quando se pergunta aos antigos moradores do bairro por que a cruz foi construída ali, recebe-se de volta respostas que diferem em tudo: datas diferentes, fatos diferentes e há sempre um clima de mistério por detrás das histórias.

Embora isso aconteça, há um depoimento publicado no extinto jornal Diário de Santos, edição de 21 de abril de 1966, em que o espanhol Dionísio Ruas, com 80 anos na época, conta uma história que não envolve a superstição popular, como as de agora, já que foi vivida pelo próprio entrevistado.

O jornal garante, no noticiário, que em 1966 o espanhol era o único morador ainda vivo que participou ativamente da história. Segundo Dionísio, a cruz foi construída ali em 1904 porque a Companhia Docas de Santos, a proprietária da área, onde existem duas fontes naturais (até hoje), usadas pela população do bairro para diversos fins, resolveu cercar a região e cortar o fornecimento da água. Os moradores se reuniram contra tal medida e a pressão popular foi tanta que a medida da empresa não se concretizou. A cruz teria sido construída, então, em sinal de agradecimento.

Dionísio diz que ele mesmo ajudou na construção, pois trouxe o material da pedreira onde trabalhava. Conta, ainda, que a obra deu muito trabalho, porque o material foi transportado em um carro de bois que por várias vezes ficou atolado nas ruas de barro do Marapé. Daí em diante, todo o dia 3 de maio (Dia de Santa Cruz) o povo do bairro passou a rezar e a colocar velas junto à cruz.

Outras versões - Mas o depoimento prestado ao jornal não é o mesmo que Ângelo Lopes Parada conta hoje, e que ouviu do próprio Dionísio Ruas. Segundo o velho Ângelo, Dionísio lhe disse que um senhor muito doente resolveu beber água na fonte da CDS. Passou-se algum tempo e o homem não voltava para casa. A mulher, em vista da demora, resolveu ir até a fonte e encontrou o marido morto, estendido exatamente no local onde hoje se encontra a cruz. "Os moradores, então, resolveram fazer a cruz, que lembrará, enquanto o mundo for mundo, que ali faleceu um homem", diz o velho Ângelo, que acrescenta: "Sabe-se lá se foi mentira..."

Não se restringem a essas duas versões as histórias sobre a cruz. Há moradores que dizem que uma mulher enforcou-se numa árvore e que a cruz foi levantada em sua memória; há também os que afirmam que mataram alguém e o assassino, arrependido, resolveu fazer a cruz. E há várias outras histórias em torno dos mesmos fatos, uns alterando datas, outros modificando os personagens. Mas até hoje não há quem dê uma versão exata sobre a existência da cruz.

É o caso, por exemplo, dos irmãos Maria e Fernando, que moram ali há mais de 50 anos. Às vésperas do dia 3 de maio, os dois limpam o local e enfeitam a cruz com flores. Maria tem o costume de ajeitar um pano sobre a mesa da cruz: "Essa é uma herança de minha mãe, que sempre enfeitava a cruz com toalhas e vasos com plantas. Ela me recomendou, antes de morrer, que continuasse a tradição. É o que estou fazendo, só que não posso mais deixar as toalhas e os vasos da cruz de um dia para o outro, senão roubam tudo..."

Maria Dias, outra antiga moradora, diz que seu sogro, João Figueiras, iniciou os festejos ali há mais de 50 anos, tanto no dia 3 de maio como no Dia de São João: "Ele embandeirava toda a rua, colocava muitas lanternas coloridas e soltava foguetes. Era uma festa muito bonita". Essa mesma festa foi realizada em 1945, quando Aurélio, morador do Marapé, voltou intacto da guerra na Itália, como lembra José Limeres.

Área de lazer - E, enquanto o velho Ângelo conta uma história ocorrida há algum tempo entre ele e um papagaio de estimação, divertindo os moradores que o cercam, as mulheres e outros moradores do bairro lembram fatos acontecidos ali com pessoas que todos conhecem.

O grupo que organizou o festejo de amanhã, em vista da adesão de muita gente do bairro, está elaborando um abaixo-assinado que será enviado ao prefeito Paulo Gomes Barbosa, nos próximos dias, para que toda aquela área seja transformada em uma praça, com árvores e bancos, onde todos poderiam encontrar-se nos fins de tarde para reviver as histórias do Marapé.

A área - atualmente utilizada para depósito de lixo, e onde os adeptos da macumba deixam frangos e muitas velas - tem tudo para servir como ponto de lazer, segundo os moradores, que fazem fila diante da antiga fonte de água, garrafões na mão, para se abastecer do líquido que, segundo uma placa diz, "é uma dádiva de Deus". E todos riem quando um rapaz que acabou de beber a água procura com a mão a torneira inexistente e, como desculpa, se sai com a frase: "Essa água me faz tão bem que eu sempre acho que devo fechar a torneira, para que ela não acabe nunca..."

O local da fonte, então ainda em pleno uso, aparece nesta foto feita no final da década de 1960 e enviada a Novo Milênio pelo santista Vitor Dias em 1/7/2007:


Bica d'água no final da R. Joaquim Távora, área depois ocupada pelo cemitério vertical Memorial, na confluência com a Avenida Nilo Peçanha

Registre-se que a cruz original em madeira nobre (cedro) existente no local foi dali retirada e, em seu lugar, a Prefeitura inaugurou em 3/5/1981 o atual cruzeiro em pedra. O tema voltou a ser tratado na imprensa, com a publicação na coluna Memória Santista, do Diário Oficial de Santos, em 7 de maio de 2004, da matéria:

Santa Cruz, sua origem é um mistério
Foto: Antônio Vargas/PMS - publicada com a matéria

MEMÓRIA SANTISTA

A Santa Cruz do Marapé

Localizada no final da Rua Joaquim Távora e da Av. Nilo Peçanha desde 1981, a Santa Cruz foi inicialmente cravada no sopé do Morro do Marapé há mais de 120 anos, segundo contam os moradores mais antigos do bairro.

As histórias existentes em torno de sua origem, que é um mistério, são inúmeras: uns explicam que a peça é o pagamento pelo retorno da água de uma cachoeira que teria secado, outros afirmam que a cruz foi erguida em memória a uma mulher que teria sido enforcada no lugar e, há quem diga que a lenda começou quando dois caçadores acharam uma cruz de madeira caída na mata e resolveram firmá-la por ali.

Mas, apesar da incerteza e de muita gente não acreditar em nenhuma das versões, todo dia 3 de maio, até o início da década de 90, o símbolo era motivo de comemorações. Os moradores do bairro preparavam uma grande festa enfeitando a Rua Joaquim Távora, pela qual distribuíam mesas de doces e salgados. Procissão e missa campal também eram realizadas.

Os anos foram passando e as novas gerações de moradores do Marapé não deram continuidade à tradição, que deixou de existir. A Santa Cruz tornou-se, então, um local para fazer despachos e acender velas, inclusive por causa da sua proximidade com o Memorial Necrópole Ecumênica.

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