HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS -
PIRATAS
A passagem de Edward Fenton
Corsário inglês queria "apenas fazer reparos em seus navios"
Francisco Martins dos Santos (*)
Na manhã de 16 de dezembro de 1583, surgiu na barra de Santos o pirata inglês
Edward Fenton. Trazia uma nau e dois galeões armados, transportando talvez duzentos homens de combate (Rocha Pombo e Varnhagen acusam apenas dois
galeões).
Penetrando o porto, desguarnecido em toda a sua entrada, Fenton despejou em terra alguma gente, mas sob o
pretexto de fazer reparos em seus navios, que, de fato, estavam precisando de alguns consertos.
Santos no século XVIII, em tela do pintor Benedito Calixto
Na vila
procurou ele um inglês - John Withall -, hábil mecânico e ferreiro que ali vivia de alguns anos àquela parte e que era genro de José Adorno, o homem
mais abastado do lugar, senhor do antigo Engenho São João, de muitas propriedades e fundador das três capelas santistas: a de Nossa Senhora da Graça, a
de Santo Amaro e a de Santo Antonio de Guaíbe. Esse John Withall conseguiu levar o sogro para bordo da capitânia da pequena Armada, iniciando relações
com os disfarçados corsários. "Depois de tal visita, foi o almirante à terra ver um lugar onde o ferreiro Withall pudesse erguer uma forja, e se
colocassem os fornos portáteis para fundir as peças necessárias".
Até certo ponto, devido ao valioso apoio encontrado em Withall, bem fácil ia sendo aos ingleses a insinuação entre os
bons cidadãos da vila, mas "no dia seguinte foi Withall a bordo dizer que os portugueses tinham mandado para fora as mulheres e fortificado a vila, pelo
que aconselhava fossem os navios, imediatamente, ancorar diante dela".
Logo atrás dele, porém, "foram José Adorno e um português Estevan Raposo, com a notícia de que, dentro em poucos
dias, falaria o Governador a Fenton, podendo os ingleses, entretanto, prosseguir nos seus trabalhos de forrar de cobre os navios, carpinteirar, pescar e
realizar as demais operações necessárias, mas que não exigissem forja nem fornos antes de terem visto o governador".
"Convidou Fenton estes hóspedes para o jantar, e, deixando-os na câmara, subiu a toda para consultar com os seus
oficiais sobre se os reteria ou não prisioneiros. O vice-almirante Ward representou que as suas instruções lhe proíbem empregar violência, exceto em
defesa própria. O Minion - ponderou ele - tinha aberto aqui um comércio que semelhante procedimento destruiria, tornando odiosos os ingleses,
quando havia mais a ganhar com bons modos do que recorrendo à força. Prevaleceu esta opinião, e, então, ofereceram-se presentes, de antemão preparados,
aos dois visitantes, consistindo em pano preto fino a Adorno, e, aos outros dois, três jardas a cada um para um gibão, e igual quantidade para o
governador, porém escarlate e rosicler."
Mas, o mal que Ward receava em conseqüência de um procedimento hostil, já as notícias havidas da expedição do
famigerado Drake o haviam causado, e, assim, todos os ingleses, de boa paz ou não, já eram antecipadamente mal vistos, quando não fossem francamente
odiados, merecendo, de pronto, todas as desconfianças, sempre tomados como piratas disfarçados; de modo que pouco adiantou a diplomacia adotada por
Fenton a conselho do seu vice-almirante.
A esse tempo, um navio que Fenton havia tomado anteriormente, já nas proximidades das águas de São Vicente, e
que após o saque fora deixado em liberdade, tomara, poucos dias antes, o rumo do Estreito de Magalhães, onde montava guarda, em nome da Espanha, a
esquadra do almirante Dom Diogo Flores Valez. Bem para o Sul, a gente do navio saqueado encontrou alguns navios daquela esquadra e transmitiu ao
almirante a notícia de que Fenton rondava a costa vicentina.
Nessa ocasião, arribava a Santa Catarina uma esquadrilha espanhola, parte da Armada de Valdez, sob o comando de
André Higino, e aí soube, este, "que os ingleses queriam estabelecer-se e fortificar-se naquela costa; que Withall para isto os chamara; que andavam
propalando que D. Felipe estava morto e Dom Antonio estava de posse de Portugal; e mais, que em nome da sua rainha faziam grandes promessas aos
portugueses, com o fim de induzir o povo a acolhê-los".
De fato, em Santos, propalavam os ingleses a morte de Dom Felipe e mostravam aos habitantes um futuro risonho
sob o protetorado da Inglaterra, fantasias que todos repeliam, pela fé nos destinos de Portugal e na próxima restauração do seu domínio recém-perdido.
Além disso, a "recordação ainda fresca das façanhas de Drake, tudo tornava crível da parte dos ingleses", e por isso abstiveram-se, todos, de
estabelecer relações com a gente de Fenton.
"Senhor das informações sobre os corsários, encaminhou-se André Higino, em nome do almirante Valdez, para o
porto de Santos, na esperança de encontrá-los, e apenas algumas horas fazia que Adorno e o português Estevan Raposo se tinham retirado da capitânia de
Fenton, quando os navios espanhóis surgiram à boca da barra santista".
Não escapou ao povo a presença da esquadra amiga, pelo observatório do Morro do Vigia (Monte Serrate, antigo São
Jerônimo), e logo foi enviado um emissário ao encontro dos navios castelhanos, com a notícia de que os ingleses se achavam dentro do porto.
À noite desse mesmo dia (uma noite de luar, segundo Varnhagen), entrou André Higino pelo estuário de Santos,
quase surpreendendo os ingleses, que ainda assim puderam travar combate e defender-se de modo eficiente e corajoso, mercê do seu ótimo aparelhamento de
guerra. Durou esse combate grande parte da noite, e, ao final, os navios de Fenton conseguiram fugir, aproveitando o escurecimento da lua no avançado
das horas, exceção do último, que foi abordado, tomado de assalto, com apreensão de toda a sua artilharia.
A atitude pacífica de Fenton em sua estada no porto santista valeu-lhe o não ser perseguido pela esquadra
espanhola, que, somente alguns dias depois, deixou o ancoradouro, para encontrar-se com o restante da grande Armada.
Fortaleza da Barra Grande ou de Santo Amaro
Foi,
afinal, esse acontecimento que produziu, no espírito das autoridades castelhanas, a idéia de levantar-se uma fortaleza na entrada da barra santista, que
impedisse, no futuro, passagem de invasores marítimos, pelo controle diurno e noturno do porto. Isso foi feito no ano seguinte, de 1584, quando deu
início a Fortaleza da Barra Grande ou de Santo Amaro, que se aparelhou nos primeiros tempos com aquela artilharia tomada ao
galeão de Fenton.
A conclusão a tirar-se destes fatos é que, se não praticassem os ingleses a falha "estratégica" de São Sebastião,
quando, após a abordagem e a pilhagem de um navio, o deixaram em liberdade, Santos teria sofrido, sem socorro, terrível invasão acompanhada de saque e
certamente assassínio dos seus melhores habitantes.
Lucas Ward, vice-almirante da esquadra inglesa de Fenton, como o próprio André Higino (em carta de 16 de
fevereiro de 1584), também historiou a passagem naval de Santos, fazendo uma negra descrição da mortandade havida, referindo-se à salvação de um
marselhês e de um grego, natural de Zante, içados para bordo bastante feridos.
Conta ele que, chegando ao porto como amigos, os ingleses entraram a parlamentar com os grandes da terra,
convidando-os para uma reunião a bordo, aparecendo no dia seguinte José Adorno (então com 80 anos), Estevan Raposo, Paulo de Veras, todos senhores de
engenhos locais, e mais alguns importantes, que foram banqueteados pelo almirante.
Em sua retirada de bordo, foram-lhes prestadas continências militares, com salvas de artilharia, e, no dia
seguinte, o mesmo almirante lhes remetia ricos presentes de sedas e veludos, como ao Capitão-mor Jerônimo Leitão, presentes que lhe foram devolvidos
intactos por Adorno, com a informação de que a gente de Santos não se corrompia com presentes e não se entendia com reconhecidos piratas. O velho
Adorno percebera a trama e assumia a única atitude compatível com o seu caráter, aconselhada por sua experiência de longos anos.
Pouco depois, reza a descrição de Ward, foi a bordo um inglês John Withall, genro de Adorno, para informar aos
seus patrícios que deviam retirar-se do porto, pois a cidade estava em preparativos militares para expulsá-los em caso de negativa. Apareceram de novo
José Adorno, Paulo de Veras e Estevan Raposo, declarando ao almirante que partisse, porque o Capitão-mor não permitia o seu desembarque e já se
apresentava para combatê-lo. É nessa ocasião que surgem no porto santista (a 24 de janeiro de 1584) as naves de guerra de André Higino, e se desenrolam
os fatos já descritos.
É esta, pois, uma das belas páginas históricas de Santos, ligada, como tantas outras, à vida generosa de José
Adorno, o principal dos fundadores não portugueses da cidade e uma das maiores figuras coloniais do Brasil.
(*) Extraído da
História de Santos, 2ª edição, Santos/SP, 1986. Esclarece o autor que John Withall "é
uma das histórias curiosas desta época santista. Em 1581, ele era um pirata da Inglaterra, e integrara a tripulação do Minion, como artilheiro,
numa sortida pela costa do Brasil. Em Santos, todavia, a entrada da nau inglesa fora cordial, terminando em negócios diversos, com a simpatia da
população. Withall, convidado por José Adorno, o mais rico industrial e comerciante da Vila, que era também um de seus fundadores - ficou em seu
Engenho, graças à circunstância de ser um grande ferreiro. Acabou sendo seu gerente, sócio e genro, pois que Adorno lhe deu em casamento a filha única,
pela altura de 1588 - "de preferência a dá-la a qualquer dos portugueses residentes na Vila", segundo expressão do próprio Adorno."
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