Os "mistérios" de São Vicente
Hernâni Donato (*)
Certeza que me acompanha e me espicaça é a de que São
Vicente reserva para os pesquisadores suficientemente curiosos um elenco volumoso quanto precioso de assuntos a serem transformados em palpitantes
revelações históricas. Não, propriamente, novidades para os veteranos. Porém, tópicos merecedores de serem retirados ao silêncio e ganharem versões
definitivas. Para ganho geral.
Pois ali se concentraram pessoas e circunstâncias que em outros países, a exemplo dos
Estados Unidos, da Alemanha, da Inglaterra etc., teriam promovido a felicidade autoral e editorial de muitos interessados. Dizem respeito não
somente à crônica regional. Uns quantos desses mistérios por aclarar, podem, até, levar o refazimento da história continental.
Nesse caso está o tema de Peabiru. De São Vicente saía o
vetor principal. Este, depois de enovelar-se pela serrania litorânea, de atravessar o chão piratiningano, atufava-se pelo sertão hoje
paulista-paranaense e lá em Cuzco, já no Peru, inseria-se no extraordinário sistema viário incaico. Não seria, em solo brasileiro, estrada de
primeira classe no rol das andinas. Percorreria, então, nestas partes, território a ser futuramente incorporado ao império. De todo modo, a primeira
via transcontinental Atlântico-Pacífico, funcionando - e sabe-se que bastante bem - antes de Colombo e de Cabral. Dias em que local vicentino
acomodava porto, povoação, gente vinda da Europa e do interior do continente. Quem? Quanto? Como? Fazendo o quê?
Se ligarmos essa situação, sobre a qual discretearam, sem maior detalhamento, autores
do porte de Taunay, Washington Luís, Batista Pereira, Sérgio Buarque de Holanda, Aluísio de Almeida e outros, ao fato de que precedentemente ao ano
1500 aquele sítio era conhecido pelo nome de Porto dos Escravos, não é preciso inflar a imaginação para aceitar como verdadeira a afirmação de que
portugueses e outros navegantes conheciam e traficavam bem antes de 1532 na que é hoje São Vicente.
A documentação é clara. Abasteceram-se ali as frotas de Cristóvão Pires em 1511;
Estevão de Frois, 1512; Nuno Dias de Solis, 1515; Fernão de Magalhães, 1519; Jean de Parmentier, Rodrigo de Acuña, Jofre de Loaysa, Diogo Garcia,
Sebastião Caboto, 1525. E outros e outros. Um centro muito ativo, portanto, de produção e de comércio.
São muitas as atividades. O padre Viotti ("O anel e a pedra", página 350)
refere que logo em 1525 vicentinos estão na expedição de Salvador Correa de Sá e Benevides. Foram "prestar o seu
concurso militar à restauração da cidade (Rio de Janeiro), deixando provas de audácia, destreza e valor".
E a Guerra de Moschera? Trata-se de convite excitante para os que poderiam iluminar de
vez esses nichos de aventura onde poucos penetraram com estudos responsáveis. Quem localizaria (não me consta hajam localizado o lugar da vila de
I-Caa-Para fundada pelos espanhóis subidos de Buenos Aires sob o comando de Ruy Garcia de Moschera).
Ao redor dessa vila e entre ela e São Vicente travou-se a primeira guerra de
brasileiros contra invasores estrangeiros. Foi isso de 1534 a 1536. Dura e nem sempre bem sucedida campanha com vicentinos em armas defendendo sua
vila, vencendo e perdendo, padecendo o saque e o incêndio da povoação. Também a isso, São Vicente sobreviveu. Acontecimento de tamanha magnitude,
com significado não apenas local mas também nacional, sendo muito pouco o que se tem de certo a seu respeito.
O filão vai mais além. Há mais convites sugestivos para um atraente e de certo
compensador mergulho nesse passado que só é distante porque o deixaram afastar-se e embuçar no esquecimento. Sabe-se, por exemplo, que no combate de
13/5/1560 contra os franceses, no Rio de Janeiro, o fogo mais eficiente lançado sobre as posições gaulesas foi o disparado por um bergantim
vicentino. Até onde, vicentino? Quem o tripulava? Que fim o levou?
No século XVI, São Vicente foi também sinônimo e sítio de fartura. Sarmiento de Gamboa
escreveu (1582) nas Memórias que em Buenos Aires "não havia abundância de gêneros e vitualhas para serem
vendidos e nem mesmo para si próprios. Em Assunção... tudo era impossível". Vale dizer, penúria, quase a fome. Mas em
São Vicente, fartura total.
Ali, ele, Gamboa, escamba (a metade paga com roupas, vinhos, calçados) a seguinte
lista de gêneros: 341 arrobas e 22 libras de carne de vaca seca; 2.654 arrobas e 30 libras de carne de vaca salgada fresca; 371 arrobas de toucinho;
5.636 alqueires da farinha de mandioca; 9.774 libras de tortinhas de farinha de mandioca biscoitadas; 26 alqueires de arroz beneficiado; 70
alqueires de arroz em casca; 9 arrobas de sebo; 193 tábuas.
Tábuas quer dizer serraria; tortinhas biscoitadas, fornos e padeiros; arroz
beneficiado quer dizer maquinaria especial; o volume da carne quer dizer pecuária desenvolvida e abatedouro e salgadouro. E todo esse rol para uma
frota. Imaginemos o movimento industrial e comercial da região, à época.
Esse dispor comercial e jogar com tanta comida em tempo e lugar de escassez torna mais
fascinante a hipótese levantada por cronistas e autoridades castelhanas do Prata, conforme o levantado e analisado por Duílio Crispim Farina, de que
tais conveniências faziam parte da política portuguesa de enfraquecer a posição espanhola. Os vicentinos chamariam para si, a fim de alimentá-los e
curá-los, "os membros das guarnições castelhanas flagelados pela fome (e) os contendores dos bandos rivais, em rixas
(...) na ilha de Santa Catarina e somente os deixava sair, para dirigirem-se a Assunção. Com isso tudo, iniciava-se o fim da guarnição de Santa
Catarina".
Claro, estes pontos e mais alguns não são de todo inéditos. Mas têm sido apenas
aflorados. O que pretendo, neste espaço, é deixar uma provocação: quem sabe, entre os jovens santistas e vicentinos, haja uns quantos dispostos a
aprofundar pesquisas e nos brindar com algo mais sobre fatos e pessoas assim decididamente referenciais.
Nem é o caso de evocar a primeira Câmara Municipal das Américas, as feitorias, os
engenhos, a introdução do gado e de vegetais. Ou mais, ou menos, tais assuntos mereceram consideração.
Porém, e a notável referência a que na São Vicente dos dias iniciais tenha funcionado
um cenáculo (Academia seria pensar demais) literário brasileiro? Há quem diga terem alguns dos encontros de padres, nobres, funcionários,
aventureiros e seus comentários versado nada mais nada menos do que A Divina Comédia. Sim, aquela de Dante cujo volume teria ido de mão em
mão trazido pelo nobre genovês Adorno.
Claro, sei que por aquela altura do calendário quinhentista não se fazia conhecer pelo
título atual, mas simplesmente, Comédia. Ou A Comédia de Dante. Mas, quem conhece o título que lhe davam os comentadores vicentinos?
Trata-se, é certo, de pesquisa especialmente difícil. Mas qual, das que valeram a pena o terem sido realizadas, mostrou-se fácil?
Vamos a elas, em nome de São Vicente?
(*) Escritor e historiador, presidente do
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Membro da Academia Paulista de Letras. |