Toninho conta Canudos
e ensina a dar aula pra gente grande
1893-1993 - Santos
Retoma Canudos - Um século de luta pela terra
- Olá, pessoal! Meu nome é Toninho e vim lá da Bahia
contar pra vocês uma história que aconteceu de verdade lá no sertão. Ela começa há cem anos, em 1893, quando um montão de gene que estava por
baixo - vivendo no meio da seca, com fome, sem trabalho nem lugar para plantar nem morar, resolveu dar a volta por cima e fundar uma comunidade só
deles, que chamaram de Belmonte. Posso apostar que vocês vão gostar e não esquecer dela, pro resto da vida. Mesmo porque ela tem a ver e muito com
a vida de cada um de nós, seu menino!
Esta história é da Guerra "de" Canudos e tem gente
que pensa que foi a Guerra "dos" Canudos, uma brincadeira. Foi não, morreu muita gente, mas significa muita alegria. isso porque, entendendo essa
história, vocês vão saber a solução dos nossos problemas, manja? É uma tremenda história que mistura romance e guerra; e tem até um personagem que
andava com uma cruz, de cabelos longos, chamado Antonio Conselheiro, meu xará.
Mas se vocês a estas alturas estiverem pensando "que
vantagem eu levo em ouvir essa história", eu digo logo: quando o pessoal lá de casa estiver assistindo o "Aqui e Agora" ou ouvindo o Gil Gomes,
vendo o repórter na TV ou lendo jornal - e vendo aquele relatório de desgraça, assaltos, mortes, miséria, crimes e etecétera -, coisas que
acontecem todos os dias nas grandes cidades, onde falta médico, hospital, escola, ônibus, emprego e casa, vocês vão poder botar banca e dizer: "E
os senhores sabem porque acontece tudo isso?"
Quando todo mundo estiver estranhando que vocês
queiram falar de assunto de gente grande, você aproveita o embalo e já dá a resposta, sabendo que, no fundo no fundo, eles não sabem: vão dizer
que "é o destino...". Sem deixar a bola cair, aumente a voz e saque rápido: "Mas que diabo de destino é esse, em que a gente é obrigado a ser
infeliz? Isso acontece porque tem gente demais na cidade grande, sem condição de viver decentemente, gente que fugiu do campo onde nãopodia
plantar, comer nem morar. Porque todas as terras já tinham dono. Uns pucos são donos de tudo, um mundão de terra pra meia-dúzia ficar olhando e o
resto passando necessidade".
A família e os que estiverem te ouvindo vai te olhar
assustada; vai dizer "como é que esse garoto sabe tudo isso?" Aí então, você respira fundo e arremata: "É isso aí. Lá no campo, esse povo todo é
mestre na arte de cuidar da terra e plantar alimentos ou cuidar do gado. Mas na cidade grande, em terra estranha, não sabe fazer nada, vira
suco nas mãos dos patrões. Tem muita gente disputando os empregos e o patrão aproveita, pagando mal pra todo serviço. Se não quer, tem quem
queira... Sofre o homem, a mulher e os filhos".
Enquanto você fala, alguém já foi desligar a
televisão. E o irmãozinho Leon já desligou o som e veio pra sala. A maninha largou a louça na cozinha e veio ouvir: "isso é um papo porreta,
bichinho!"
Então, você dá uma tossidinha, toma ares de
liderança, pede um copo d'água e continua: "E pra consertar essa situação, pra voltar a ter mais gente no campo que na cidade - e assim ter mais
alimento, menos pobres que viram ladrões e menos presos nas cadeias - e menos crimes, que exigem mais polícia paga com nosso dinheiro mirrado, com
uma violência que acaba desabando em cima de gente -, é preciso fazer uma REFORMA AGRÁRIA! Ou será que cada peão que Deus pôs no mundo nunca vai
poder ter o seu lugar na terra? Será que só o túmulo vai ser a parte que nos cabe nesse latifúndio?"
Aí, você toca a explicar o que é essa tal de Reforma
Agrária, antes que eles pensem que o negócio é complicado e voltem a ver novela, que não precisa pensar. Explique que Reforma Agrária é distribuir
as terras para o pessoal plantar e viver, sem ter que fugir para a cidade e produzindo o alimento que falta aqui.
"Mas, Toninho, e a história?" - vão perguntar. "Do
jeito que é boa essa moléstia, a Reforma Agrária vai ser feita logo. Assim, vamos nessa história, óxente!", vai dizer o pai. "Aí é que está",
explique. "Os donos da terra não deixam de jeito nenhum. Eles botam grana pesada e fica todo mundo contra a Reforma Agrária, que nós estamos
precisando fazer há uns 500 anos. Nunca conseguimos e a situação fica cada vez pior pra todo mundo. Agora, essa história da gota serena, arretada
de boa, tem tudo a ver com a luta pela terra para plantar e viver em nosso país -, que desde a descoberta tá na mão de meia-dúzia. Essa história
que vou contar é boa de ouvir e de refletir, descobrindo porque a vida está tão difícil".
Um vai olhar para a cara do outro, balançando a
cabeça de cima para baixo, em sinal de aprovação, e dizer: é isso mesmo! Eles vão estar começando a entender. Daí em diante, você pode pensar, vai
ser um passeio... E segue contando:
"Na história desta cidade, que reunia os fugitivos da
miséria, da seca e da opressão dos coronéis - os donos da terra que pagavam salários miseráveis pelo trabalho de sol a sol, que ficavam com
o produto do trabalho para vender e acumular riqueza -, tinha muito ex-escravo, livre mas sem terra. E tem também muita alegria e tristeza:
alegria quando, três anos depois de fundada Belmonte por quase mil homens, mulheres e crianças, os moradores já eram mais de 30 mil em 5.200
casas, extensas plantações e criações de cabras. Tinha acabado a miséria para aquela gente - que lá não tinha chefe nem patrão ou explorador. A
terra era de todos, como Deus nosso senhor criou, entende: Tristeza foi quando destruíram tudo".
Belmonte, às margens do Vaza-Barris (rio que tinha
esse nome porque, em uma época do ano, enchia de uma água barrenta que escapava por pequenos riachos, vazando e ficando seco o resto do
tempo), já era a segunda cidade da Bahia, em 1896. Livre dos patrões e da exploração, com todo mundo trabalhando com vontade em seu próprio
benefício, ouvindo os sermões do Bom Jesus Conselheiro na igreja nova que tinham construído, todo mundo crescia.
Então, conte, os donos da terra, no veneno com essa
experiência que lhes tirava o lucro (suas plantações de cana-de-açúcar já tinham ido pro vinagre), mandaram para lá um padre para tentar convencer
o pessoal a voltar a ser empregado, a se conformar com o sofrimento, que no futuro eles iam todinhos para o céu. É claro que o padre foi posto pra
correr de Belmonte, que tinha sido conquistada e que eles não iam abrir mão. Você abriria? Então, o padre botou a boca no mundo, dizendo que lá só
tinha bandido e que eles queriam a volta da Monarquia...
Essa história de que Conselheiro era monarquista e
que queria a volta do rei deu pano pra manga. A República havia sido proclamada poucos anos antes. E não que fosse diferente: era apenas outra
meia-dúzia a maltratar o povo. Mas para dizer que era melhor, se afirmar, a República precisava achar um inimigo. E escolheu os humildes
sertanejos de Belmonte!
As broncas todas
O pessoal do Exército já vivia envenenado com esse
pessoal do Conselheiro, que em maio de 1893 tinha feito uma manifestação pra ninguém pagar os impostos que a República queria cobrar, contra os
quais estava todo mundo revoltado. Botaram 35 soldados na captura do pessoal do Conselheiro, que a esta altura já tinha centenas - e foram postos
pra correr. Era 26 de maio e, fugindo dos milicos, chegaram na região de Canudos em 5 de junho, na Fazenda Velha - fundando Belmonte. Esse
confronto aconteceu em Masseté e, depois, mandaram 80 soldados atrás da turma de Conselheiro. Mas Canudos não tinha sido escolhida à toa: pra
chegar lá, tinha que ser herói. Era a natureza que não deixava. E eles desistiram - mesmo porque iam enfrentar mais de mil... E voltaram pra
Salvador.
Os fazendeiros, latifundiários donos de terras sem
fim, estes nem se fale. O pessoal que trabalhava quase de graça pra eles tinha ido com Conselheiro para Belmonte. Estavam na maior bronca com esse
ajuntamento. Os comerciantes também, porque Canudos produzia tudo e, além de não precisar comprar nada, até vendia para as fazendas vizinhas e
exportava pele de cabra, entre outros produtos. Os políticos, que enganavam o povo o tempo todo, achavam que estava se formando uma força, sobre a
qual não tinham controle, que podia derrotá-los.
Ou seja, estava todo mundo odiando Belmonte. Menos, é
claro, quem morava lá. Esses todos que estavam de fora, mas tinham poder, pediram para o Exército atacar Belmonte. A guerra durou 11 meses e
vieram mais de 5 mil soldados, muitos canhões e fuzis e o próprio ministro da Guerra. O valente povo de Belmonte, no início, se defendeu e venceu
com foices e facões e, depois, pegou as armas dos que os atacavam, para se defender. Venceram 3 batalhas e, no final, a cidade foi destruída e
incendiada. os que sobreviveram foram degolados. A tentativa popular de escapar da opressão foi castigada.
As crianças foram vendidas pelos oficiais do
Exército, como se fosse ainda tempo da escravidão: os meninos como serviçais e as meninas como prostitutas para bordéis. O resto passou pela
"gravata vermelha": ficou sem cabeça. E os milicos queriam "civilizar" o sertão... Isso tudo porque era perigoso deixar viver uma comunidade livre
como aquela, que podia se multiplicar e acabar com a exploração do homem pelo homem, com esse negócio de terra nas mãos de poucos. Belmonte era
uma revolução.
- Aí, pessoa, mas como é que é que a televisão não
conta uma história legal dessa, se ela aconteceu de verdade? Porque que os livros e jornais só dizem que esse Conselheiro era um "fanático
religioso" e que seu grupo era um bando de malfeitores: E esse papo de que eles eram monarquistas?
Quando te fizerem perguntas assim, fica frio:
explique que os donos de televisões e jornais são os mesmos donos das terras - ou seus amigos - e a eles não interessa essa discussão, que pode
levar uma parte do seu "sagrado patrimônio". E, então, ou não falam do caso ou o deturpam, modificam, sacaneiam. É a lei. Você percebe que o
pessoal da ditadura de 64 chamava de "comunista" aos que denunciavam as maracutaias do governo? Pois os que queriam destruir Belmonte chamavam
eles de "monarquistas", de querer trazer o rei de volta. Tudo balela em causa própria. Até o The Times, jornal de Londres, na Inglaterra,
disse na época que essa acusação era absurda.
"- E por quê chamam de Guerra dos Canudos?
Pelo nome, pensei que tinha sido tudo só brincadeira. Nunca me falaram dessa história e nem que a história tem a ver com a gente hoje..."
Pago um doce se não pintar uma pergunta dessa. Diga
que foi "de" Canudos não, foi de bala mesmo. Bala de espingarda e de canhão, um quarto do Exército brasileiro ficou lá. Foi desgraça pra todo
canto. Canudos é o nome da região onde ficava Belmonte. É que nascia na beira do Vaza-Barris (aquele que vazava nos riachos) uma planta da família
"solanácea", que parecia um canudo. Tinha quase um metro e o pessoal usava para fumar. A área era cercada por montanhas, a serra de Coporobó, que
depois foi o nome do açude que fizeram onde existiu Belmonte, que é pra ninguém lembrar daquela experiência. Quem de nós nunca pensou em fazer uma
comunidade assim? Um dia, elas vão ser possíveis, quando os rebeldes forem muitos!
- Mas, Toninho, meu avô me conto0u que os jornais do
país inteiro, naquele tempo, diziam que Belmonte era um "antro de banditismo" e até o Diario de Santos, daqui mesmo, falava nisso. Que a
população santista fez muitas festas para os heroicos soldados que embarcavam no porto rumo à Bahia, par combater aquele núcleo rebelde. E agora
você me vem com uma história dessa?
Em todo canto tem gente que vai naquela de que "se
todo mundo fala, é verdade". Hoje, qualquer porcaria que aparece no Fantástico vira fama. É um exemplo. Os donos dos jornais daquele tempo,
como hoje, eram os ricos. E eles impuseram, como impõem, aquilo que eles querem que a gente acredite. A imprensa do país inteiro falou o diabo
daquilo que estava acontecendo em Canudos. E o povo entrou nessa barca furada, de que o pessoal de Belmonte era louco, bandido, fanático religioso
e coisa e tal. Mas eles só queriam viver, não atacaram ninguém, só defenderam o que tinham conquistado: um espaço de terra.
- Aquilo era como um quilombo? Mas como, se a
escravidão já tinha sido abolida em 1888 e aí já era 1896, quando começou a guerra contra Belmonte? E agora, Toninho! Como é que você explica?
Quando jogarem essa, você faz como no futebol: mata
no peito, baixa na terra, enche o pulmão e chuta, com argumento. "É que os escravos, que foram mandados para cá para manter as diferenças sociais
- ricos de um lado, pobres do outro -, segurando o poder na mão daquela velha meia-dúzia que se sucedia de pai para filho, desde as Capitanias
Hereditárias, trabalhavam de graça e debaixo de cacete. Ou seja, eram oprimidos. Depois da Abolição, eram 'livres", mas não tinham poder.
Não podiam ser donos de terra. Continuaram a ser oprimidos, junto com todo mundo que não tinha posses: era tudo semi-escravo. Aí, fizeram o
"quilombo" Belmonte, para se livrar da opressão, da fome, do desemprego...
Aí você já tá seguro de que está dando uma aula, não
como aqueles que você aprende coisa que não serve pra nada, mas tá ensinando um jeito de melhorar a vida. Pra sua mãe não chorar mais quando morre
criança pequena de fome ou doença. Pro seu pai não precisar encher a cara de cachaça por ver tanta desgraça, trabalhar tanto e ganhar tão pouco.
Porque quando tiver mais gente no campo e menos na cidade, com a Reforma Agrária, além de mais alimento vai ter melhor salário, porque é menor a
concorrência. Menos gente para disputar a mesma vaga. Sacou?
Quando aparecer aquele primo mais ilustrado, que já
fez até faculdade, dizendo que o livro mais famoso que se escreveu sobre esses fatos - Os Sertões, de Euclides da Cunha - conta uma
história diferente, você só pergunta "Por exemplo". Quando ele falar que os sertanejos eram chamados de "degenerados" por esse escritor, que dizia
que Conselheiro era um louco, você arremata:
- Mas ele mesmo se desmente no final, da metade pro
final do livro. Muda o discurso. Chega de um jeito e sai de outro. Vê tanta barbaridade que fazem com o pessoal de Belmonte que seu livro, quando
é publicado em 1902 (com 10 milhões de palavras), tem tom de denúncia do massacre. Termina dizendo que o sertanejo é, acima de tudo, um forte. E
que Canudos não se rendeu, lutou até o fim. Não deu é tempo para ele refletir que, além de não se justificar o massacre, eles tinham direito à
terra, porque eram pessoas como as outras, iguais. Mas, depois de fazer essa reportagem para o jornal O Estado de São Paulo, ele aprendeu
tanto que virou socialista e passou a defender o direito dos pobres. "As pessoas evoluem", observe.
É preciso que você explique como aconteceu essa
reunião de pessoas para fundar Belmonte, que não foi coisa de um dia. Conselheiro caminhou 20 anos pelo Nordeste, construindo e reformando açudes,
igrejas e cemitérios. E falando para o povo. Reunindo milhares de pessoas. Foi por isso que, já em 1882, o arcebispo da Bahia alertava sobre o
"perigo" das pregações de Conselheiro. E em 1887 a Igreja pedia ao governo imperial que internassem Conselheiro em um hospício. Vocês vão ver que
a República ainda não tinha chegado, só em 1889. Logo, não era porque ele era "monarquista". Esse foi só um chavão para combater Belmonte...
"- Mas por quê a Igreja iria combater o
Conselheiro?", sacou o Robertão. E toca você a explicar, sem piscar: ora, os padres eram sustentados por quem? O povo não tinha dinheiro nem para
comer! Pelos latifundiários, que ofereciam as terras e construíam as igrejas, que davam os donativos e coisa e tal. É claro que isso não era de
graça: os padres tinham que deixar o pessoal quietinho... Dito isso, responda rápido, que é pra ver se você é inteligente: Com quem a Igreja tinha
compromisso? Quem mandava nos padres? Os patrões, é claro. Eles pagavam! A Igreja se juntou com os patrões para destruir Belmonte.
Pra cimentar em cima e não deixar dúvida, você
explica que os padres, além de obedecerem aos coronéis prejudicados, tinham o seu próprio interesse: o Conselheiro estava "roubando" seus
ouvintes. Enquanto ele agia concretamente em favor dos pobres, desde 20 anos antes de fundar Belmonte, o pessoal da Igreja rezava missa em latim e
prometia o céu depois da morte. Ora, o pessoal queria viver e é claro que preferia Conselheiro.
Enquanto o pessoal dá uma refletida sobre esse monte
de coisas que você explicou, você aproveita para florear, falando das origens daquele povo, que ajuda a entender. Basicamente, era uma mistura de
índios e escravos negros, que conservavam o espírito comunitário e rebelde de suas tribos. Esse foi um dos grandes impulsos para construir
Belmonte, na prática um resgate do que os europeus tinham destruído em suas vidas: a comunidade do trabalho comum, com benefícios para todos,
libertária e igualitária.
- "Mas, vamos voltar à aventura", vai dizer o agitado
Leon. "Toninho, fale como é que começô mesmo a Guerra dos Canudos".
Aí você torna a explicar que não é "dos" Canudos e
sim "de" Canudos. Foi de bala, mesmo, bala e canhão, combatida em forma de guerrilha pelo pessoal de Belmonte. O que é guerrilha: Não é uma guerra
pequena. É um jeito de guerrear que permite, com conhecimento do terreno, que o fraco derrote o forte. Vocês lembram do Vietnã, onde os Estados
Unidos tomaram pau? Foram postos pra correr pela guerrilha vietnamita, que eles chamavam de "vietcong".
Mas, voltando à guerra, o pau mesmo começou em fins
de 1896, quando Conselheiro comprou madeiras para cobrir a igreja nova que tinha construído, em Jacaré. Pagou adiantado e o pessoal não entregou.
Então disse que seu pessoal ia buscar. Com fama de valentes que derrotaram o Exército, foi fácil para que os inimigos poderosos espalhassem que
eles iam invadir a cidade. E mandaram outra vez o Exército, com cem soldados, em novembro de 1896. Tudo para tentar destruir a comunidade que já
produzia mandioca, milho, feijão, batata, abóbora, cana...
- Mas, Toninho, esse Conselheiro não era louco mesmo?
Ele dizia que a água ia se transformar em leite e que o sertão ia virar mar e que o mar ia virar sertão!
Aí é que está, colega! A fartura em Belmonte ia ser
tanta que a água se transformaria em leite. Era o resultado do trabalho organizado e aproveitado pela própria gente de Belmonte, onde, segundo o
mesmo Conselheiro, a terra não tinha dono, era de todos. Imagine, um homem dizer isso há cem anos! Ele se antecipou à chamada Igreja Progressista
de hoje, a chamada Teologia da Libertação. Loucos eram os outros!
Leon, inquieto, vai querer saber da primeira batalha:
"E aí: E a guerra?" Aí você esclarece o jovem e interessado mano:
"A madeira, para o teto da igreja nova, deveria vir
de uma cidade chamada Jacaré. E deveria chegar via Juazeiro, através do Rio São Francisco. Quando o juiz Arlindo Leoni ouviu dizer que o pessoal
de Conselheiro viria buscar a madeira, aproveitou para se vingar desse pessoal que, em 1893, tinha afrontado sua autoridade na manifestação contra
o pagamento dos impostos da República, botando fogo nas plaquetas. E telegrafou ao governador, pedindo providências. Foi atendido: um destacamento
de 107 praças, despachado elo general Frederico Sólon - futuro sogro de Euclides da Cunha -, chega em Uauá (perto de Belmonte) no dia 19. Mas, no
dia 20, são postos pra correr".
"E foi vibrante essa batalha?", vai perguntar o
irrequieto Leon, que está no quarto ano. Conte para ele que isso nem batalha devia ser, porque o pessoal de Conselheiro, ao ouvir falar das tropas
em Uauá, foi até lá em procissão, com a cruz do Divino e tudo, cantando. Com medo da multidão de "loucos", "bandidos" e "assassinos", de que tanto
se falava, os soldados dispararam contra a multidão, matando mais de cem. Mas não aguentaram a reação, na base de foices, paus e pedras, matando
dez soldados. Mas, apesar do armamento, largaram tudo e fugiram, deixando ferido o orgulho do Exército. Daí em diante, ia ser só vingança, por
parte do Exército. E luta pela sobrevivência, por parte dos belmontenses.
O pessoal de Canudos guerreava como podia. Tinha uma
mulher lá que pegava cobras pequenas com as mãos nos ninhos, alimentava-as com ratos vivos que as crianças traziam e, depois de crescidas,
atirava-as contra os soldados das "tropas do cão", como chamavam o Exército. Tinham também a "guiada", uma lança de três metros para estocar o
inimigo à distância. Faziam cartuchos para balas de chifres de bode, bicho que se aproveitava até o berro, diziam, avisando da presença do
inimigo. Antes, os chifres de bode serviam para fazer pentes, brincos e anéis. Agora, triturados, faziam o papel do chumbo. Era tempo de
sobreviver em Belmonte, onde suas vidas tinham se transformado na fartura, onde seus filhos cresciam saudáveis, sob as preces do Bom Jesus.
"- É, mas o tal de Euclides da Cunha diz que os
sertanejos, que fundaram Belmonte, eram rebeldes por causa do clima, muito quente. Que tinha havido muita mistura de raças e que, por isso, eles
eram desequilibrados", vai argumentar o primo Robertão - que tinha feito até faculdade, mas que não deixava nada de graça, era dar para receber.
Metido a bacana, meio riquinho, queria que os pobres explodissem, não estava nem aí. Aí você emenda de sem-pulo:
"Pois é, esse mesmo Euclides, que no mesmo livro
desmentiu a si mesmo, a essa absurda ideia racista (não somos todos iguais? Então, que história é essa?), seria desmentido pelos fatos. Poucos
anos depois,na divisa do Paraná com Santa Catarina, haveria uma luta igual. Só que o clima era outro, o pessoal era outro, mas o problema era o
mesmo. Aí, uma ferrovia dos gringos tomou uma enorme área dos camponeses.
Quieto em um canto, atento, vai estar o irmãozinho
Leon, do quarto ano, chefe da turma da briga na escola. Aproveitando o intervalo oferecido pelo primo Robertão, que de tão envergonhado foi beber
água, entrará de sola: "Mas e a guerra? Como é que prosseguiu?"
Pra não perder o ritmo, você retoma a história. E
conta que já era janeiro de 1897 quando se organiza a segunda tropa para destruir Canudos, com mais de 500 soldados e dois canhões, mais
metralhadoras. Matam muita gente em Belmonte, mas outra vez são postos pra correr pela guerrilha comandada por Pajeú, Vilanova e Macambira,
fortalecidas pelo ideal de defesa do espaço conquistado.
A classe dominante entrou em pânico com essa vitória
de Belmonte e, na terceira investida do Exército, é escolhido um notório assassino para comandá-la, famoso pela prática de degolar os inimigos:
coronel Moreira César. Vem com 1.300 soldados, em março, sob grande pressão da opinião pública do país, conduzida pelos jornais. Exigia-se o fim
de Belmonte. Mas, novamente, o Exército é derrotado e Moreira César morto em batalha. Deram até o nome dele pra uma praça aqui em Santos, onde
hoje é a Rui Barbosa, no Centro.
Toda aquela encenação de que o rei deposto estava
ajudando os "rebeldes" de Belmonte, junto com seu genro, o conde d'Eu, vira verdade - diz até um jornal da Argentina. Só não explicam como as
armas e tropas iam fazer para chegar no meio do sertão, em Belmonte, idealizado para resistir. Sol, montanha, espinho, calor insuportável, cercado
por montanhas, era impossível chegar lá. Mas tinha gente que acreditava na "ajuda monarquista"...
Vem a quarta expedição pra arrebentar, comandada pelo
general Artur Oscar, com mais de cinco mil soldados. Em tudo que é lado do Brasil se discute como esmagar Belmonte, que só queria viver. Diante da
derrota, o Exército recua e pede reforços, que vêm de onze Estados brasileiros, junto com o ministro da Guerra em pessoa. São trinta batalhões,
mais tropas da polícia, unidades de artilharia. No dia 1º de outubro de 1897 começa o bombardeio de canhões e, no dia 5, Belmonte é finalmente
massacrada.
Cerca de 300 mulheres, velhos e crianças, mais
feridos e estropiados, se entregam sob acordo, antes do fim. Mas foram degolados. Conselheiro, que morrera de morte natural no dia 22 de setembro,
é desenterrado e cortam-lhe a cabeça para "estudar sua loucura", como se esta não fosse dos atacantes. Muita gente protesta contra as crueldades.
As elites, o exército, os latifundiários festejam esta covarde agressão como ato de heroísmo. Até hoje, em quartéis do Recife, é festejado o "Dia
da Vitória em Canudos", que não se rendeu. Na invasão final, foram encontrados atirando apenas um velho, uma mulher e uma criança, nada mais.
"A história não iria até ali", escreve Euclides da
Cunha, sobre um dos maiores, senão o maior massacre da história da Humanidade. Estava esmagada a maior organização libertária desde Spartacus,
antes de Cristo, o escravo-líder dos cativos rebelados contra o poder romano. Agora, a revolta organizada contar a opressão dos donos de terra,
superior àquela dos cangaceiros porque liderada por Conselheiro, em sua maior expressão no país e no mundo, foi derrotada - mas não aniquilada.
Tanto na região de Canudos como em todo o país
prossegue a luta pela terra, nas ligas camponesas, nos movimentos dos sem-terra. O Brasil se defronta com a chave de seus problemas sociais de
fome e miséria da maioria de seu povo: a Reforma Agrária, uma conquista que será de todos nós. É esta a aula que vocês vão dar em casa.
E quem era Conselheiro?
Nascido em 1828 em Quixeramobim, no sertão do Ceará,
Antonio Vicente Mendes Maciel teve boa formação escolar e estudou para ser padre. Seus pais foram vítimas de perseguição de latifundiários, os
Araújos, e sua família teve um grande número de mortes - em uma das lutas mais sangrentas do sertão do Ceará nessa época, iniciada em 1833. Nasce
daí a rebeldia de Conselheiro contra o massacre imposto aos camponeses.
Aplicado nos estudos, aprendeu com o professor
Ferreira Nobre a Matemática, a Geografia, o Francês e o Latim. Isso faria dele uma liderança diferenciada em suas respostas à crueldade social do
sertão: ele não seria um cangaceiro. Professor em escolas da região, caixeiro, amansador de cavalos, Conselheiro foi professor e escrivão do juiz
de paz em Campo Grande. Em Ipu, foi advogado provisionado - sem diploma.
Essas ocupações e sua formação deram a ele a
oportunidade de, ao mesmo tempo em que exercitar seus dons oratórios e de liderança, conhecer melhor as injustiças praticadas pelos coronéis do
sertão, os ricos e poderosos fazendeiros. Torna-se andarilho, assumindo a profissão de pedreiro dedicado a construir e reformar igrejas, açudes e
cemitérios. Em uma época de grave crise social, cria alternativas de vida para o grupo que o acompanha e que já o chama "Conselheiro".
em 1874, surge no centro das províncias da Bahia e do
Sergipe, onde inicia suas pregações, ouvido e seguido por centenas de sertanejos. Passa a ser o "Santo Antonio dos Mares" e "Bom Jesus
Conselheiro". O semanário sergipano O Rabudo, na cidade de Estância, publica extensa notícia sobre seu surgimento. Encontra com o padre
Ibiapina, de intensa influência sobre ele, que desenvolvia uma atividade humanitária no interior do Ceará, recolhendo donativos, fazendo
orfanatos e açudes.
Alto, esguio e de barbas negras, Conselheiro passou a
fazer pregações de mensagens bíblicas e promover atividades caritativas com seu grupo, neste difícil momento da população sertaneja - na mais
grave seca dos últimos anos. Suas reuniões massivas já incomodavam fazendeiros, padres e autoridades. Em 1876, é preso na vila de Ipapicuru por
uma falsa acusação. Libertado, volta ao sertão e a Folhinha Laemmert o registra, dizendo que "...surgira no sertão indivíduo que exerce
grande influência no espírito das classes populares, guiando-as a seu gosto".
A centenas de léguas de distância já se expande a
fama de Conselheiro e de sua liderança. Perseguido pela Igreja já em 1882, quando o arcebispo de Salvador envia circular ao clero do interior,
proibindo os vigários de manter entendimentos com Conselheiro - instruído pelos coronéis - já se observa o teor da pregação "subversiva" do líder
sertanejo.
Em 1885, Conselheiro conclui as obras da capela do
Nosso Senhor do Bonfim, em Chochorrochó, ainda intacta. Em 1892, dá a bênção na capela do Bom Jesus, no arraial de Bom Jesus - hoje cidade e
Crisópolis -, arraial com o mesmo nome do núcleo que, em 1630, havia sido o centro da resistência guerrilheira contra os holandeses invasores.
Nestes tempos cruéis, cem mil pessoas morrem de fome no Ceará por causa da seca, em 12 meses. Conselheiro é um produto de uma época, acreditando
que Deus estava ao lado dos oprimidos e não dos opressores. E esta crença expressou nos seus sermões, nem sempre compreensíveis, e também em sua
prática. Esta, os poderosos não puderam admitir.
O Bom Jesus Conselheiro conhecia e se inspirou no
mártir católico inglês Thomas Morus, autor de um livro chamado A Utopia, onde imaginava uma sociedade perfeita, onde todos viveriam em paz
e igualdade. Onde não existiria prostituição, dinheiro, propriedade privada ou tavernas. Onde tudo era de todos. E esse sonho, planejado em 1517,
Conselheiro concretizou a partir de 1893. Mas foi insuportável para aqueles que viviam da exploração do homem pelo homem.
A população de Fortaleza sobe de 25 mil para 114 mil
pessoas, recebendo os fugitivos da seca. Torna-se insuportável a vida no sertão dentro daquele quadro semi-feudal de sofrimento para quase todos.
Em 1886, Conselheiro é vítima de atenção policial, pois o delegado de Itapicuru manda ao governo estadual um ofício alertando sobre o "perigo"
desta liderança, que promovia reuniões com até mil adeptos. E mobilização popular, com o discurso de Conselheiro, só podia levar - como levou - a
modificações fundamentais nas regras existentes.
Idealizador de um movimento social progressista e
libertador, Antonio Conselheiro lutou para reescrever a História do Brasil pelo povo, livrando-o do arrocho imposto pelas classes dominantes em
toda a nossa história. Sua luta é a nossa.
A luta pela terra no Brasil
Entre 1964 e 1990, quase mil e setecentos
trabalhadores rurais foram assassinados na luta pela terra, reunindo-se apenas os casos comprovados e registrados. Destes, apenas 17 foram
investigados e levados até o final. Apenas dois resultaram em condenações. No primeiro caso, o réu recebeu uma pena simbólica. No segundo - que
envolvia o Caso chico Mendes -, o condenado fugiu da prisão.
Cinquenta por cento dos deputados federais são
ruralistas, donos de terra. Cerca de 500 processos de desapropriação de terra para Reforma Agrária aguardam assinatura no Incra. Em 1990, mais de
60 trabalhadores do Movimento dos Sem-Terra sofreram prisões ilegais. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, há quase 170 pessoas marcadas para
morrer, em função da luta pela terra no Brasil: padres, bispos, pastores, advogados, políticos. Cerca de 300 mil crianças morrem antes de um ano
de idade no campo, anualmente.
O Brasil é o país de maior concentração de posse e
terra no mundo, em sua maioria produto da grilagem e do roubo. Apenas 10% de toda a terra é de subsistência, minifúndios. Os latifúndios ocupam
85%, metade abandonada, mas agriculturável. São 160 milhões de hectares. Os 20 maiores latifúndios do país controlam em torno de 17 milhões de
hectares. cerca de 22 milhões de hectares estão nas mãos de 46 grupos financeiros.
Nos cem anos de Belmonte, temos que despertar para a
importância de se redescobrir Canudos na visão sincera dos vencidos, onde a denúncia do genocídio se faça com toda coragem que é preciso - para
que não mais se repitam os massacres contra o povo pobre, cada vez mais constante no Brasil.
Muita gente denunciou o massacre em Canudos, 96 anos
atrás, quando acabou a guerra, como os universitários da Bahia. Mas muito mais gente se calou e até festejou o atentado oficial. Esta foi a maior
tragédia. A violência do egoísmo se espalhou e se ampliou pelo país, que será destruído por ela se não conseguirmos reverter essa marcha.
- A injustiça social institucionalizada torna a
sociedade cruel, degrada as relações humanas. Você entende?
O que você achou
desta história de verdade? Saiu da sala emocionado como o Toninho, com uma lágrima pintando do olho? Entendeu porque tem tanta gente na rua e na
favela? Sua família também vai sentir isso quando você contar pra eles em casa, essa e tantas outras tristezas que acontecem aqui e em toda parte.
Mas no brilho dos olhos molhados se pode enxergar a esperança de solução para o Brasil, Agora entendemos - que, afinal, está na nossa mão. Vamos
nos engajar nesta batalha popular pela Reforma Agrária?
Você pode saber mais
sobre Canudos na Biblioteca Municipal "Alberto Souza", no Centro de Cultura Patrícia Galvão - Avenida Pinheiro Machado, 48. É só pedir e ler.
Também pode assistir filmes sobre Canudos no seminário "Santos retoma Canudos - um século de luta pela terra" -, de 16 a 22 de novembro, no mesmo
local - ou na Videoteca Municipal, na Rua Visconde do Rio Branco, no Centro. Tem ainda a Hemeroteca Municipal, no prédio do Centro de Cultura,
onde você pode pedir para ver as muitas reportagens que tem lá sobre essa história. Tudo fácil e gratuito: é só querer!
Converse com o
pessoal da luta pela terra
Comissão Pastoral da Terra - fone 011/224-3445
Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura - 061/5520209
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem-terra - fone
011/224-3445. |