Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
SEGUNDA PARTE - MEMORIAL E DECLARAÇÃO DAS
GRANDEZAS DA BAHIA
TÍTULO 17 — Noticia
etnográfica do gentio tupinambá que povoava a Bahia
Capítulo
CLXXVII
Que trata de como entre os tupinambás há muitos mamelucos
que descendem dos franceses, e de um índio que se achou muito alvo.
Ainda que pareça fora de propósito o que se contém neste capítulo, pareceu decente escrever aqui o que nele se contém, para se melhor entender a
natureza e condição dos tupinambás, com os quais os franceses, alguns anos antes que se povoasse a Bahia, tinham comércio; e quando se iam para
França com suas naus carregadas de pau de tinta, algodão e pimenta, deixavam entre os gentios alguns mancebos para aprenderem a língua e poderem
servir na terra, quando tornassem da França para lhes fazer seu resgate; os quais se amancebaram na terra, onde morreram, sem se quererem tornar
para a França, e viveram como gentios com muitas mulheres, dos quais, e dos que vinham todos os anos à Bahia e ao Rio de Seregipe, em naus da
França, se inçou a terra de mamelucos, que nasceram, viveram e morreram como gentios; dos quais há hoje muitos seus descendentes, que são louros,
alvos e sardos, e havidos por índios tupinambás, e são mais bárbaros que eles.
E não é de espantar serem estes descendentes dos franceses alvos e louros, pois que saem a seus avós; mas é de maravilhar trazerem do sertão,
entre outros tupinambás, um menino de idade de dez anos para doze, no ano de 1586, que era tão alvo, que de o ser muito não podia olhar para a
claridade; e tinha os cabelos da cabeça, pestanas e sobrancelhas tão alvas como algodão, com o qual vinha seu pai, com quem era tão natural, que
toda pessoa que o via, o julgava por esse sem o conhecer; e não era muito preto, e a mãe, que vinha na companhia, era muito preta; e pelas
informações que se então tomaram dos outros tupinambás da companhia, achou-se que o pai deste índio branco não descendia dos franceses, nem eles
foram àquelas partes, de onde esta gente vinha, nunca; e ainda que este menino era assim branco, era muito feio.
Nesta povoação onde este índio branco veio ter, que é de Gabriel Soares, aconteceu um caso estranho a uma índia tupinambá, que havia pouco viera
do sertão, a qual ia para uma roça a buscar mandioca, levando um filho de um ano às costas, que ia chorando, do qual se enfadou a mãe de maneira que
lhe fez uma cova com um pau no chão, e o enterrou vivo; e foi-se a índia com as outras à roça, que seria dali distância de um bom tiro de bombarda;
e arrancou a mandioca, que ia buscar; e tornou-se com ela para casa, que seria de onde a criança ficava enterrada, outro tiro de bombarda; sobre o
que as outras índias, que viram esta crueldade de mãe, estando fazendo a farinha, se puseram a praticar, maravilhando-se do caso acontecido, o que
ouviram outras índias da mesma casa ladinas, e foram-no contar a sua senhora, que logo se informou do caso como acontecera, e sabendo a verdade dele
mandou a toda pressa desenterrar a criança, que ainda acharam viva, e por ser pagã a fez batizar logo, a qual viveu depois seis meses.
Daqui por diante se vai continuando com
a vida e costumes dos tupinaés, e outras castas de gentio da Bahia que vive pela terra dentro do seu sertão, dos quais diremos o que pudemos
alcançar deles; e começando logo nos tupinaés. |