Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
SEGUNDA PARTE - MEMORIAL E DECLARAÇÃO DAS
GRANDEZAS DA BAHIA
TÍTULO 17 — Noticia
etnográfica do gentio tupinambá que povoava a Bahia
Capítulo
CLXXI
Que trata do tratamento que os tupinambás fazem aos que
cativam, e a mulher que lhes dão.
Os contrários que os tupinambás cativam na guerra, ou de outra qualquer maneira, metem-nos em prisões, as quais são cordas de algodão grossas, que
para isso têm mui louçãs, a que chamam muçuranas, as quais são tecidas como os cabos dos cabrestos de África; e com elas os atam pela cinta e
pelo pescoço, onde lhes dão muito bem de comer, e lhes fazem bom tratamento, até engordarem, e estão estes cativos para se poderem comer, que é o
fim para que os engordam; e como os tupinambás têm estes contrários quietos e bem seguros nas prisões, dão a cada um por mulher a mais formosa moça
que há na sua casa, com quem se ele agasalha
[ajunta-se sexualmente], todas as vezes que quer, a qual moça tem cuidado de o servir, e de lhe dar o necessário para comer e beber, com o que cevam cada hora, e lhe
fazem muitos regalos.
E se esta moça emprenha do que está preso, como acontece muitas vezes, como pare, cria a criança até idade que se pode comer, que a oferece para
isso ao parente mais chegado, que lho agradece muito, o qual lhe quebra a cabeça em terreiro com as cerimônias que se adiante seguem, onde toma o
nome; e como a criança é morta, a comem assada com grande festa, e a mãe é a primeira que come desta carne, o que tem por grande honra, pelo que de
maravilha escapa nenhuma criança que nasce destes ajuntamentos, que não matem; e a mãe que não come seu próprio filho, a que estes índios chamam
cunhambira, que quer dizer filho do contrário, têm-na em ruim conta, e em pior, se o não entregam seus irmãos ou parentes com muito
contentamento.
Mas também há algumas, que tomaram tamanho amor aos cativos que as tomaram por mulheres, que lhes deram muito jeito para se acolherem e fugirem
das prisões, que eles cortam com alguma ferramenta, que elas às escondidas lhes deram, e lhes foram pôr no mato, antes de fugir, mantimentos para o
caminho; e estas tais criaram seus filhos com muito amor, e não os entregaram a seus parentes para os matarem, antes os guardaram e defenderam deles
até serem moços grandes, que como chegam a essa idade logo escapam da fúria dos seus contrários.
Muitas vezes deixam os tupinambás de matar alguns contrários que cativaram por serem moços, e se quererem servir deles, aos quais criam e fazem
tão bom tratamento que andam de maneira que podem fugir, o que eles não fazem por estarem à sua vontade; mas depois que este gentio teve comércio
com os portugueses, folgam de terem escravos para lhos venderem; e, às vezes, depois de os criarem, os matam por fazerem uma festa destas. |