Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
SEGUNDA PARTE - MEMORIAL E DECLARAÇÃO DAS
GRANDEZAS DA BAHIA
TÍTULO 17 — Noticia
etnográfica do gentio tupinambá que povoava a Bahia
Capítulo
CLIX
Em que se declara o modo da granjearia dos tupinambás e
suas habilidades.
Quando os tupinambás vão às suas roças, não trabalham senão das sete horas da manhã até ao meio-dia, e os muito diligentes até horas de véspera; e
não comem neste tempo senão depois destas horas, que se vêm para suas casas; os machos costumam a roçar os matos, e os queimam e alimpam a terra
deles; e as fêmeas plantam o mantimento e o alimpam; os machos vão buscar a lenha com que se aquentam e se servem, porque não dormem sem fogo, ao
longo das redes, que é a sua cama; as fêmeas vão buscar a água à fonte e fazem de comer; e os machos costumam ir lavar as redes aos rios, quando
estão sujas.
Não fazem os tupinambás entre si outras obras-primas que balaios de folhas de palma, e outras vasilhas da mesma folha a seu modo, e do seu uso;
fazem arcos e flechas, e alguns empalhados e lavrados de branco e preto, feitio de muito artifício; fazem cestos de varas, a que chamam samburá,
e outras vasilhas em lavores, como as de rota
[cipó] da Índia; fazem carapuças e capas de penas de pássaros, e outras obras de pena de seu uso, e sabem dar tinta de vermelho e amarelo às penas
brancas; e também contrafazem as penas dos papagaios com sangue de rãs, arrancando-lhes as verdes, e fazem-lhes nascer outras, amarelas; fazem mais
estes índios, os que são principais, redes lavradas de lavores de esteiras, e de outros laços, e umas cordas tecidas, a que chamam muçuranas,
de algodão, que têm o feitio dos cabos de cabresto que vêm de Fez.
Quando este gentio quer tomar muito peixe nos rios de água doce e nos esteiros de água salgada, os atravessam com uma tapagem de varas, e batem o
peixe de cima para baixo; onde lhe lançam muita soma de umas certas ervas pisadas, a que chamam timbó, com o que se embebeda o peixe de
maneira que se vem acima da água como morto; onde tomam às mãos muita soma dele.
As mulheres deste gentio não cozem, nem lavam; somente fiam algodão, de que não fazem teias, como puderam, porque não sabem tecer; fazem deste
fiado as redes em que dormem, mas não são lavradas, e umas fitas com passamanes e algumas mais largas, com que enastram os cabelos.
As mulheres já de idade têm cuidado de fazerem a farinha de que se mantêm, e de trazerem a mandioca das roças às costas para a casa; e as que são
muito velhas têm cuidado de fazerem vasilhas de barro a mão como são os potes em que fazem os vinhos, e fazem alguns tamanhos que levam tanto como
uma pipa, em os quais e em outros, menores, fervem os vinhos que bebem; fazem mais estas velhas, panelas, púcaros e alguidares a seu uso, em que
cozem a farinha, e outros em que a deitam e em que comem, lavrados de tintas de cores; a qual louça cozem numa cova que fazem no chão; e põem-lhe a
lenha por cima; e têm e crêem estas índias que se cozer esta louça outra pessoa, que não seja a que a fez, que há de arrebentar no fogo; as quais
velhas ajudam também a fazer a farinha que se faz no seu lanço.
As fêmeas destes gentios são muito afeiçoadas a criar cachorros para os maridos levarem à caça, e quando elas vão fora levam-nos às costas; as
quais também folgam de criar galinhas e outros pássaros em suas casas.
As quais, quando com seu costume, alimpam-se com um bordão que têm sempre junto de si, que levam na mão quando vão fora de casa; e não se pejam de
se alimparem diante de gente, nem de as verem comer piolho, o que fazem quando se catam nas cabeças umas às outras; e como os encontra a que os
busca, os dá à que os trazia na cabeça, que logo os trinca entre os dentes, o que não fazem para comê-los, mas em vingança de as morderem. |