Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
SEGUNDA PARTE - MEMORIAL E DECLARAÇÃO DAS
GRANDEZAS DA BAHIA
TÍTULO 17 — Noticia
etnográfica do gentio tupinambá que povoava a Bahia
Capítulo
CLVIII
Que trata do modo de comer e do beber dos tupinambás.
Já fica dito como os principais dos tupinambás quando comem, estão deitados na rede, e como comem com eles os parentes, e os agasalha consigo;
entre os quais comem também os seus criados e escravos, sem lhe terem nenhum respeito; antes quando o peixe ou carne não é que sobeje, o principal o
reparte por quinhões iguais, e muitas vezes fica ele sem nada, os quais estão todos em cócoras, com a vasilha em que comem todos no chão no meio
deles, e enquanto comem não bebem vinho, nem água, o que fazem depois de comer.
Quando os tupinambás comem à noite, é no chão como está dito, e virados com as costas para o fogo, e ficam todos às escuras; e não praticam em
coisa alguma quando comem, senão depois de comer; e quando têm quê, toda a noite não fazem outra coisa, até que os vence o sono; e por outra parte
mantém-se este gentio com nada, e anda logo dois e três dias sem comer, pelo que os que são escravos dão pouco trabalho a seus senhores pelo
mantimento, antes eles mantêm os senhores fazendo-lhes suas roças, e caçando, e pescando-lhes ordinariamente.
Este gentio não come carne de porco, dos que se criam em casa, senão os escravos criados entre os brancos; mas comem a carne dos porcos-do-mato e
da água; os quais também não comem azeite, senão os ladinos; toda a caça que este gentio come, não a esfola, e chamuscam-na toda ou pelam-na na água
quente, a qual comem assada ou cozida e as tripas mal lavadas; ao peixe não escamam nem lhe tiram as tripas, e assim como vem do mar ou dos rios,
assim o cozem ou assam: o sal de que usam, com que temperam o seu comer, e em que molham o peixe e carne fazem-no da água salgada que cozem tanto em
uma vasilha sobre o fogo, até que se coalha e endurece, com o que se remedeiam; mas é sobre o preto, e requeima.
Este gentio é muito amigo do vinho, assim machos como fêmeas, o qual fazem de todos os seus legumes, até da farinha que comem; mas o seu vinho
principal é de uma raiz a que chamam aipim, que se coze, e depois pisam-na e tornam-na a cozer, e como é bem cozida, buscam as mais formosas
moças da aldeia para espremer estes aipins com as mãos e algum mastigado com a boca, e depois espremido na vasilha, que é o que dizem que lhe
põem a virtude, segundo a sua gentilidade; a esta água e sumo destas raízes lançam em grandes potes, que para isso têm, onde este vinho se coze, e
está até que se faz azedo; e como o está bem, o bebem com grandes cantares, e cantam e bailam toda uma noite às vésperas do vinho, e ao outro dia
pela manhã começam a beber, bailar e cantar; e as moças solteiras da casa andam dando o vinho em uns meios cabaços, a que chamam cuias, aos
que andam cantando, os quais não comem nada enquanto bebem, o que fazem de maneira que vêm a cair de bêbados por esse chão; e o que faz mais
desatinos nessas bebedices, esse é o mais estimado dos outros, nos quais se fazem sempre brigas; porque aqui se lembram de seus ciúmes, e castigam
por isso as mulheres, ao que acodem os amigos, e jogam às tiçoadas uns com os outros.
São costumados a almoçar primeiro que se vão às suas roças a trabalhar, onde não comem enquanto andam no trabalho, senão depois que se vêm para
casa. |