Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
SEGUNDA PARTE - MEMORIAL E DECLARAÇÃO DAS
GRANDEZAS DA BAHIA
TÍTULO 16 — Dos
crustáceos, moluscos, zoófitos, eqüinodermos etc. e dos peixes de água doce
Capítulo
CXLVI
Em que se declara a natureza dos caranguejos-do-mato.
Andei buscando até agora onde agasalhar os caranguejos-do-mato, sem lhes achar lugar cômodo, porque para os arrumar com os caranguejos do mar
parecia despropósito, pois se eles criam na terra, sem verem nem tocarem água do mar; e para os contar com os animais parece que também não lhes
cabia esse lugar, pois se parecem com o marisco do mar; e por não ficarem sem gasalhado nestas lembranças, os aposentei na vizinhança do marisco de
terra, ainda que se não criam na água estes caranguejos, mas em lugares úmidos por todas as ribeiras.
A estes caranguejos da terra chamam os índios guoanhamu; os quais se criam em várzeas úmidas, não muito longe do mar, mas na vizinhança da
água doce, os quais são muito grandes e azuis, com o casco e pernas mui luzentes; os machos são muito maiores que as fêmeas, e tamanhos que têm os
braços grandes, onde têm as bocas com tamanhos bicos nelas, e tão compridos e voltados que faz com ele tamanha aparência como faz o dedo
demonstrativo da mão de um homem com o polegar, o que é tão duro como ferro, e onde pegam com esta boca não largam até os não matarem.
Criam-se estes caranguejos em covas debaixo da terra, tão fundas que com trabalho se lhe pode chegar com o braço e ombro de um índio metidos nela,
onde os mordem mui valentemente. No mês de fevereiro estão as fêmeas, até meados de março, todas cheias de coral mui vermelho, e têm tanto no casco
como uma lagosta, o qual e tudo o mais é muito gostoso; tiram-lhe o fel ou bucho que têm, cheio de tinta preta muito amargosa; porque se se derrama
faz amargar tudo e por onde ele chegou.
No mês de agosto, que é no cabo do inverno, se saem os machos e fêmeas ao sol, com o que anda a terra coberta deles; no qual tempo se saem ao sol
passeando de uma parte para outra, e são então bons de tomar; e nesta conjunção andam os machos tão gordos que têm os cascos cheios de uma
amarelidão como gemas de ovos, os quais são mui gostosos à maravilha, mas são carregados; e para os índios os tirarem das covas sem trabalho,
tapam-nas com um molho de ervas, com o que eles abafam nas covas, e, se vêm para tomar ar, e por não acharem caminho desimpedido, morrem à boca da
cova abafados. Algumas vezes morreram pessoas de comerem este guaiamu, e dizem os índios que no tempo em que fazem mal comem uma fruta, a que chamam
araticumpaná, de que já fizemos menção, a qual é peçonhenta.
Daqui por diante se
trata da vida e costumes do gentio da terra da Bahia.
Já era tempo de dizermos quem foram os povoadores e possuidores desta terra da Bahia, de que se tem dito tantas maravilhas, e quem são estes
tupinambás tão nomeados, cuja vida e costumes temos prometido por tantas vezes neste tratado, ao que começamos satisfazer daqui por diante. |