Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
PRIMEIRA PARTE - ROTEIRO GERAL DA COSTA BRASÍLICA
Capítulo LX
Em que se declara cuja é a capitania de São Vicente.
Parece que é necessário, antes de passar mais adiante, declarar cuja é a capitania de São Vicente, e quem foi o povoador dela, da qual fez el-rei
d. João III de Portugal mercê a Martim Afonso de Sousa, cuja fidalguia e esforço é tão notório a todos, que é escusado bulir, neste lugar, nisso, e
os que dele não sabem muito vejam os livros da Índia, e verão os feitos maravilhosos que nela acabou, sendo capitão-mor do mar e depois governador.
Sendo este fidalgo mancebo, desejoso de cometer grandes empresas, aceitou esta capitania com cinqüenta léguas da costa, como as de que já fizemos
menção, a qual determinou de ir povoar em pessoa, para o que fez prestes uma frota de navios, que proveu de mantimentos e munições de guerra como
convinha; na qual embarcou muitos moradores casados que o acompanharam, com os quais se partiu do porto de Lisboa, donde começou a fazer sua viagem,
e com próspero tempo chegou a esta província do Brasil, e no cabo da sua capitania tomou porto no rio que se agora chama de São Vicente, onde se
fortificou e assentou a primeira vila, que se diz do mesmo nome do rio, que fez cabeça da capitania.
E esta vila foi povoada de muita e honrada gente que nesta armada foi, a qual assentou numa ilha, donde lançou os guaianases, que é o gentio que a
possuía e senhoreava aquela costa até contestarem com os tamoios; a qual vila floresceu muito nestes primeiros anos, por ela ser a primeira em que
se fez açúcar na costa do Brasil, donde se as outras capitanias proveram de canas-de-açúcar para plantarem, e de vacas para criarem e ainda agora
floresce e tem em si um honrado mosteiro de padres da companhia, e alguns engenhos de açúcar, como fica dito.
Com o gentio teve Martim Afonso pouco trabalho, por ser pouco belicoso e fácil de contentar, e como fez pazes com ele, e acabou de fortificar a
vila de São Vicente e a da Conceição, se embarcou em certos navios que tinha, e foi correndo a costa descobrindo-a, e os rios dela até chegar ao Rio
da Prata, pelo qual navegou muitos dias com muito trabalho, aonde perdeu alguns dos navios pelos baixos do mesmo rio, em que se lhe afogou alguma
gente, donde se tornou a recolher para a capitania, que acabou de fortificar como pôde.
E deixando nela quem a governasse e defendesse, se veio para Portugal chamado de Sua Alteza, que se houve por servido dele naquelas partes, e o
mandou para as da Índia. E depois de a governar se veio para estes reinos que também ajudou a governar com el-rei d. João, que o fez do seu Conselho
de Estado; e o mesmo fez reinando el-rei d. Sebastião, no tempo em que governava a rainha d. Catarina, sua avó e depois o cardeal d. Henrique, para
o que tinha todas as partes convenientes. Nestes felizes anos de Martim Afonso favoreceu muito esta sua capitania com navios e gente que a ela
mandava, e deu ordem com que mercadores poderosos fossem e mandassem a ela fazer engenhos de açúcar e grandes fazendas, como tem até hoje em dia, do
que já fizemos menção.
Tem este Rio de São Vicente grande comandante para se fortificar e defender, ao que é necessário acudir com brevidade, por ser mui importante esta
fortificação ao serviço de Sua Majestade, porque, se se apoderarem dela os inimigos, serão maus de lançar fora, pelo cômodo que têm na mesma terra,
para se fortificarem nela e defenderem de quem os quiser lançar fora. Por morte de Martim Afonso herdou esta capitania seu filho primogênito, Pero
Lopes de Sousa, por cujo falecimento a herdou seu filho Lopo de Sousa. |