Trecho do capítulo, na edição de 1938 da Biblioteca Pública Alberto Sousa
PRIMEIRA PARTE - ROTEIRO GERAL DA COSTA BRASÍLICA
Capítulo XLII
Em que se declara como el-rei fez mercê da capitania do
Espírito Santo a Vasco Fernandes Coutinho, e como ele a foi povoar em pessoa.
Razão tinha Vasco Fernandes Coutinho de se contentar com os grandes e heróicos feitos que tinha com as armas acabado nas partes da Índia, onde nos
primeiros tempos de sua conquista se achou, no que gastou o melhor de sua idade; e passando-se para estes reinos em busca do galardão de seus
trabalhos, pediu em satisfação deles a S. A. licença para entrar em outros maiores, pedindo que lhe fizesse mercê de uma capitania na costa do
Brasil, porque a queria ir povoar, e conquistar o sertão dela, a cujo requerimento el-rei d. João III de Portugal satisfez fazendo-lhe mercê de
cinqüenta léguas de terra ao longo da costa no dito Estado, com toda a terra para o sertão, que coubesse na sua demarcação, começando onde acabasse
Pedro do Campo, capitão de Porto Seguro.
Contente este fidalgo com a mercê que pediu, para satisfazer à grandeza de seus pensamentos, ordenou à sua custa uma frota de navios mui provida
de moradores e das munições de guerra necessárias, com tudo o que mais convinha a esta empresa, na qual se embarcaram, entre fidalgos e criados
del-rei, sessenta pessoas, entre as quais foi d. Jorge de Menezes, o de Maluco, e d. Simão de Castelo Branco, que por mandado de S. A. iam cumprir
suas penitências a estas partes.
Embarcado este valoroso capitão com sua gente na frota que estava prestes, partiu do porto de Lisboa com bom tempo, e fez sua viagem para o
Brasil, onde chegou a salvamento, à sua capitania, na qual desembarcou e povoou a vila de Nossa Senhora da Vitória, a que agora chamam a Vila Velha,
onde se logo fortificou, a qual em breve tempo se fez uma nobre vila para aquelas partes. De redor desta vila se fizeram logo quatro engenhos de
açúcar mui bem providos e acabados, os quais começaram de lavrar açúcar, como tiveram canas para isso, que se na terra deram muito bem.
Nestes primeiros tempos teve Vasco Fernandes Coutinho algumas escaramuças com o gentio seu vizinho, com a qual se houve de feição que, entendendo
estes índios que não podiam ficar bem do partido, se afastaram da vizinhança do mar por aquela parte, por escusarem brigas que da vizinhança se
seguiam. A este gentio chamam goitacases, de quem diremos adiante.
Como Vasco Fernandes viu o gentio quieto, e a sua capitania tanto avante, e em termos de florescer de bem em melhor, ordenou de vir para Portugal
a se fazer prestes do necessário (para ir conquistando a terra pelo sertão, até descobrir ouro e prata) e a outros negócios que lhe convinham; e
concertando suas coisas, como relevava, se partiu, e deixou a d. Jorge de Menezes para em sua ausência a governar, ao qual os tupiniquins, de uma
banda, e os goitacases, da outra, fizeram tão crua guerra que lhe queimaram os engenhos e muitas fazendas, o desbarataram e mataram a flechadas; o
que também fizeram depois a d. Simão de Castelo Branco, que lhe sucedeu na capitania, e a outra muita gente, e puseram a vila em cerco e em tal
aperto que, não podendo os moradores dela resistir ao poder do gentio, a despovoaram de todo e se passaram à ilha de Duarte de Lemos, onde ainda
estão; a qual ilha se afasta da terra firme um tiro de berço.
Esta vila se povoou de novo com título do Espírito Santo, e muitos dos moradores, não se havendo ali por seguros do gentio, se passaram a outras
capitanias. E tornando-se Vasco Fernandes para a sua capitania, vendo-a tão desbaratada, trabalhou todo o possível por tomar satisfação deste
gentio, o que não foi em sua mão, por estar impossibilitado de gente e munições de guerra, e o gentio mui soberbo com as vitórias que tinha
alcançado; antes viveu muitos anos afrontado dele naquela ilha, onde, a seu requerimento, o mandou socorrer Mem de Sá, que naquele tempo governava
este Estado; o qual ordenou na Bahia uma armada bem fornecida de gente e armas, que era de navios da costa, mareáveis, da qual mandou por capitão a
seu filho Fernão de Sá, que com ela foi entrar no Rio de Cricaré, onde ajuntou com ele a gente do Espírito Santo, que lhe mandou Vasco Fernandes
Coutinho; e sendo a gente toda junta, desembarcou Fernão de Sá em terra, e deu sobre o gentio de maneira, que o pôs logo em desbarate nos primeiros
encontros, o qual gentio se reformou e ajuntou logo, e apertou com Fernão de Sá, de maneira que o fez recolher para o mar, o que fez com tamanha
desordem dos seus que, antes de poder chegar às embarcações, mataram a Fernão de Sá, com muita da sua gente, ao embarcar; mas, já agora, esta
capitania está reformada, com duas vilas, numa das quais está um mosteiro dos padres da companhia, e tem seus engenhos de açúcar e outras muitas
fazendas.
No povoar desta capitania gastou Vasco Fernandes Coutinho muitos mil cruzados, que adquiriu na Índia, e todo o patrimônio que tinha em Portugal,
que todo para isso vendeu, o qual acabou nela tão pobremente, que chegou a darem-lhe de comer por amor de Deus, e não sei se teve um lençol seu, em
que o amortalhassem. E seu filho, do mesmo nome, vive hoje na mesma capitania, tão necessitado que não tem mais de seu que o título de capitão e
governador dela. |