SOM DE OUTRAS ÉPOCAS - Na época em que uma reunião social só estava completa se fosse embalada ao
som das teclas de um piano, o ensino de música clássica na região tinha endereço certo, o Conservatório Musical de Santos. Nele, deram aulas
maestros como Camargo Guarnieri, Savino de Benedictis e Heitor Villa-Lobos. Em suas salas, se formaram maestros como Gilberto Mendes (na foto)
Foto: Irandy Ribas, publicada com a matéria
Lembranças dos tempos do piano
Concorrido nos anos 60 e 70, o Conservatório Musical de Santos encerrou suas atividades em
2000. As memórias, porém, permanecem
Ronaldo Abreu Vaio
Da Reportagem
Houve um tempo em que o piano ocupava um espaço central nas
salas de estar de muitas casas. Nesse tempo, as notas musicais davam o tom das reuniões em família ou de amigos. Ou seja, a música se fazia presente
nos lares de uma forma bem distinta de hoje em dia. Nesse contexto, o Conservatório Musical de Santos erguia-se como o templo do ensino de música na
Cidade.
Fundado em 1927 por Luiz Weterlé, pelo Conservatório passaram nomes que se tornaram expoentes da
música erudita brasileira, como Almeida Prado e
Gilberto Mendes. Isso, sem contar as inúmeras moças de família, que tinham incluída
em sua lista de prendagens a formação musical. Por conta desse traço cultural, entre os anos 60 e 70, por exemplo, o Conservatório chegou a
ter 300 alunos.
Esse sucesso se devia à qualidade do ensino. Não raro, geralmente às terças e quartas-feiras e nas
sextas e sábados, nomes já consagrados ministravam aulas avulsas ou apenas passavam para dar um alô - o que atestava essa qualidade.
Assim, conheceram o prédio da Rua 7 de Setembro, 37, os maestros Camargo Guarnieri e Savino de
Benedictis, o organista Ângelo Camin e até um dos maiores compositores brasileiros, o maestro Villa-Lobos.
"Essas visitas sempre terminavam com um jantar, preparado lá mesmo, pela zeladora, geralmente um
caldo,um salsão, e vinho. Depois, o maestro, que já os havia trazido, levava de volta para São Paulo", recorda Daisy de Oliveira Valencia, que foi
aluna, professora, secretária e diretora do Conservatório Musical de Santos.
O maestro a que se refere é o italiano
Italo Tabarin, que foi diretor do Conservatório por cerca de 50 anos. Tabarin assumiu a direção ao mesmo tempo
em que a pianista Antonietta Rudge se transformou em proprietária.
Os cursos oferecidos eram os de Bacharelado em Canto, em Regência e em Instrumentos - neste
último, o aluno poderia optar por piano, trompete, flauta, violino, violoncelo e, posteriormente, violão.
No início dos anos 50, o prédio onde era o Conservatório Musical de Santos passou por uma grande
reforma, que adaptou de vez o casarão inicial, transformando-o em um verdadeiro templo da música.
Os degraus das escadas, bifurcadas, eram em mármore carrara. Os corrimãos, de um lado, eram
desenhados em Neumas - notação musical antiga, muito utilizada na Idade Média. Do outro, na notação moderna, do Pentagrama, com a Clave de Sol.
No andar superior, havia um mini-teatro, com um piano de 1/4 de cauda e um órgão que pertencera ao
compositor Agostinho Cantu. Além de outro piano de 1/4 de cauda, também havia um francês da marca Pleyel, de cauda inteira, e vários pianos-baú
pelas salas de aula.
Denise Smolka, coordenadora de música do Carmo, lamenta o desinteresse dos jovens pela música
erudita
Foto: Nirley Sena, publicada com a matéria
Mudanças - "Na época, nem avaliava o quanto estava sendo importante para minha formação
para minha vida, essa vivência no Conservatório", resume Daisy, que hoje está com 77 anos.
Aos 16 anos, em 1952, formou-se em piano. Na seqüência, de aluna virou professora. Ficou até 1960.
Seguiu-se um hiato de alguns anos, quando foi estudar na Capital. De volta a Santos e de volta ao Conservatório: dessa feita, como secretária do
maestro Tabarin. Depois, assumiu a direção, até o fim. "Fiquei praticamente a vida inteira ali".
Para Daisy, um duro golpe nos conservatórios de um modo geral veio em 1977, quando os cursos
passaram à tutela da Secretaria de Educação do Estado. "Antes, a avaliação era feita por músicos, por gente que falava a mesma língua, avaliava o
nível do aluno. Depois, só vinham ver os papéis, se o aluno comparecia ou não".
Esse fato, aliado às mudanças na sociedade - cada vez mais rara era a visão dos pianos nas salas
de estar - contribuíram para restringir a importância e a atuação dos conservatórios, que precisaram se reinventar para sobreviver.
Assim, em 1979, o Colégio do Carmo incorporou o Conservatório Musical de
Santos, já com reconhecimento do Governo Federal, criando os cursos de Licenciatura Plena em Instrumento e Licenciatura em Educação Artística. Essa
nova etapa durou até 2000, quando encerrou as atividades.
"Não tinha muita procura, as turmas eram pequenas", avalia Denise Smolka, coordenadora de música
do Colégio do Carmo. "Hoje, a molecada só quer saber de banda, com baixo, guitarra, bateria. Até para teclado a procura é pouca. Ninguém mais quer
estudar música erudita", lamenta.
Antiga sede da Rua Sete de Setembro em nada lembra os
bons tempos
Foto: Irandy Ribas, publicadas com a matéria
Expoentes da música passaram pelo local
Há quase 50 anos, o maestro e compositor Gilberto Mendes está à frente do Festival Música
Nova de Santos. Anualmente, o festival reúne os maiores nomes da música de vanguarda mundial.
Gilberto Mendes também já recebeu diversos prêmios em artes e música, como o Carlos Gomes, do
Governo do Estado, e a insígnia da Ordem do Mérito Cultural, das mãos do presidente Lula, em 2004.
Tudo isso tem raízes no Conservatório Musical de Santos. "Ela tornou o Conservatório muito bom,
por ser quem era", diz, referindo-se à grande pianista Antonietta Rudge. "Ela dava aulas para quem estava no nono e décimo anos (de piano) e só
vinha às vezes ao Conservatório, na época dos exames".
Embora estivesse apenas no terceiro ou quarto ano de piano - não se recorda bem - teve aulas
diretamente com Antonietta. "Fui a uma entrevista, e ela me aceitou".
Gilberto Mendes iniciou os estudos no Conservatório em 1941, aos 17 anos. "Comecei tarde. Os
professores eram da minha idade e, na minha classe, tinha só um aluno com 19 anos. Os outros tinham 9, 12 anos", sorri. Nas mãos, exibe um diploma
de Teoria Musical. A data: 21 de dezembro de 1945. "Era uma classe engraçada".
Reconhecido em todo o mundo, o maestro
Gilberto Mendes entrou no Conservatório em 1941, aos 17 anos
Foto: Irandy Ribas, publicadas com a matéria
Altíssimo nível - Trajetória semelhante teve o também santista, e também maestro e
compositor, José Antonio Resende de Almeida Prado. Fez os últimos 3 anos de piano no Conservatório, a partir de 1962, e ganhou o mundo. "Fui aluno
do maestro Tabarin e de Caldeira Filho, que era crítico de música", relembra.
De 1965 a 1969 foi professor de piano do Conservatório, antes de prosseguir com os estudos na
Europa. Em 1974, de volta ao Brasil, foi novamente professor no Conservatório durante um ano, antes de ser chamado para a Universidade de Campinas
(Unicamp). Atualmente radicado em São Paulo, já teve obras executadas até no Carnegie Hall, de Nova Iorque. "Devo muito ao Conservatório. Foi
maravilhosa a experiência, a convivência com professores e colegas de altíssimo nível".
Daisy Valencia foi aluna, professora, secretária e diretora da unidade
Foto: Davi Ribeiro, publicada com a matéria
Injustiça
Hoje, é com um sorriso nos lábios que Magaly Novoa de Paula Souza, 70 anos, relembra a história da
nota 10 que nunca foi. Mas, em julho de 1958, quando a história aconteceu, não achou nada engraçada. "Saí de lá doida", recorda, entre risos. Foi
assim: o professor - cujo nome faz questão de omitir - disse que quem não comparecesse no dia da prova teria zero de nota. Quis o destino que Magali
tivesse um casamento para ir no mesmo dia. "Então fui falar com o maestro Tabarin, ele disse tudo bem, para eu falar com o professor".
Magali, que estava no último ano de piano, seguiu o conselho e, uma semana depois, fez a prova -
uma chamada oral. Ela jura que acertou tudo, de ponta a ponta. "Aí o professor virou pra mim: 'sete
tá bom?'". A resposta? "O senhor é quem sabe". Magali teve que engolir o sete. A nota
arrancou-lhe das mãos o Prêmio Ricordi, distribuído anualmente aos alunos que tiravam as melhores notas, em cada matéria. "Como a gente era boba, né?
Se preocupar com uma coisa assim", e cai na gargalhada. Mas é um pouco por conta dessas histórias que hoje afirma, sem titubear: "O estudo era
perfeito. Foi um tempo maravilhoso".
Batuta de Villa-Lobos foi um presente a Ítalo Tabarin.
Magali Nóvoa de Paula lembra com carinho dos seus
tempos de aluna
Montagem com foto de Nirley Sena, publicada com a matéria
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