Aqui passava o trenzinho, levando pedras para a construção do cais
(E a Prefeitura quer conseguir a posse da área, que atravessa toda a cidade)
Lane Valiengo
I - Lá vai o trem...
Passava ali, espalhando fumaça, levando as pedras usadas na construção do cais. Era o
pequeno trem das Docas, dois ou três vagões. Um trenzinho, com sua acanhada locomotiva. Mas tinha fôlego para cruzar toda a Cidade, desde o
Jabaquara, onde ficava a pedreira, até o outro lado, a Rua Manoel Tourinho. Perto de onde hoje fica a área conhecida como
Santa.
Não mais que vinte quilômetros por hora, só isso. E cruzava ruas e avenidas
importantes, Washington Luiz, Conselheiro Nébias, Ana Costa, Constituição. Passava por uma faixa própria, quase em linha reta, em terrenos que ainda
hoje estão parcialmente desocupados. Uma faixa extensa e valiosa.
O trenzinho começou a funcionar por concessão do Município, de acordo com decisão da
Câmara em 12 de janeiro de 1889, permitindo que a linha fosse instalada pela Gaffrée, Guinle e Companhia. Foi esta empresa que construiu o Porto.
Depois, a linha pioneira foi substituída pela Cia. Docas, que colocou trens de bitola mais larga. E que foi desativada há 25 anos, aproximadamente
(N.E.: portanto, por volta de 1961).
Mas os terrenos ainda estão lá, murados, cercados, sob a guarda da Codesp. Alguns,
ocupados por empresas de contêineres. Ao todo, treze áreas, que deveriam formar uma grande avenida, que aparece
projetada em praticamente todos os mapas de Santos: a Avenida Gaffrée, Guinle.
![](lendas/h0245b.jpg)
A faixa cruza ruas e avenidas importantes
Foto: Walter Mello, publicada com a matéria
II - Quem é o dono?
Maquininha respeitosa aquela: em cada esquina, uma parada. O maquinista descia, olhava
para todos os lados, para saber se poderia atravessar as ruas e avenidas sem atrapalhar ninguém. E aproveitava para fechar as cancelas. Outros
tempos, sim. Algumas pessoas lembram bem do velho trem. E de que no Jabaquara, o ponto final, junto à pedreira, havia uma vila de operários da
Docas. Lá onde hoje a Codesp está criando um horto, bem atrás do clube Portuários.
Agora, a Cidade é outra. Todos os espaços foram ocupados, o concreto brotou em toda
parte. Só os terrenos da antiga linha ferroviária continuam lá, vazios.
O Instituto Portobrás de Seguridade Social - Portus - quer ocupar a faixa. Técnicos da
entidade estiveram na semana retrasada na Prefeitura, pedindo informações sobre os recuos e normas para construção. Pois há a intenção de iniciar,
em breve, a construção de casas para trabalhadores portuários.
Em tese, as treze áreas são da União, de acordo com o decreto que, em 1980, transferiu
os bens da Cia. Docas para a Codesp. O diretor gerente da antiga concessionária do Porto, José Menezes Berenguer, na época explicou que os terrenos
não eram da companhia: "A CDS não tem nada. Ela só tem o capital reconhecido pelo Governo. Tudo quanto é bem pertence à União".
Só que muito antes disso já existiam dúvidas sobre a propriedade dos terrenos.
Em 1948, exatamente no dia 8 de abril, o prefeito Rubens Ferreira Martins assinou a
lei nº 944, extinguindo a concessão para a linha ferroviária. A lei está reproduzida num processso existente na Prefeitura e que se arrasta desde
1941, quando moradores da Rua Paraná pediram a abertura de rua sobre a linha, entre Prudente de Moraes e Almeida Moraes. Ao longo dos anos,
aconteceram outros pedidos semelhantes.
Mas o processo revela surpresas, muitas surpresas.
III - É tudo da Prefeitura
Em 1969, o historiador Francisco Martins dos Santos enviou documento ao interventor
Clóvis Bandeira Brasil contando a história. E dizia que a autorização para a construção da linha foi concedida apenas
pelo tempo necessário para a construção das duas primeiras fases do Porto, de 1890 a 1910, aproximadamente. "Apesar disso, a Cia. Docas continuou
com sua linha de ferro principal, através da Cidade, sem ligar a isso, e após a demolição de morros no Jabaquara e desmontes em outros lugares,
construiu uma vila operária, casas, chalés, escolinha etc., naquele bairro em início, usando tudo isso como pretexto para a continuação da linha de
ferro, como verdadeira dona das terras ocupadas".
Depois de lembrar a extinção da concessão, em 1948, e outra lei no mesmo sentido, em
27 de setembro de 1951, Chico Martins observa que a linha foi finalmente retirada, tempos depois, mas que os terrenos continuaram fechados,
"impedidos ao uso público". E comenta: "Lá ficou em poder da Cia., como terra particular, abrangendo uma grande área quadrada, até o coração do
Jabaquara, onde aparece, ainda hoje, uma enorme área também de sua propriedade". Solenemente, Chico Martins pedia que os terrenos fossem
reintegrados ao Município.
![](lendas/h0245c.jpg)
Em alguns pontos ainda existem os trilhos
Foto: Walter Mello, publicada com a matéria
IV - E o decreto?
Se já existiam, dentro do processo, motivos para pensar que as áreas seriam mesmo da
Prefeitura, quando chegou o ano de 1979 surgiram outros detalhes que, a princípio, confirmariam o fato.
Existem vários expedientes dentro do processo, indicando que o ex-prefeito
Paulo Gomes Barbosa havia determinado medidas judiciais para que as terras fossem devolvidas ao Município, ainda no tempo
da Cia. Docas. O secretário jurídico da época, Luís Antônio de Oliveira Ribeiro, estudou o assunto e chegou à conclusão que tudo pertencia à
Prefeitura. E isso por causa de um decreto-lei federal que determinava a passagem para os municípios dos bens desativados, sob responsabilidade das
empresas administradoras dos portos, em todo o País.
Só que Barbosa era um prefeito nomeado pelo Governo Federal. E teria que acionar uma
empresa também do Governo Federal, a Portobrás. Por isso, preferiu desistir da idéia de uma ação judicial e conseguir a reintegração dos terrenos na
área política. Foi então enviado um ofício nesse sentido ao Ministério dos Transportes, dizendo que o Município precisava daquelas áreas para
instalar creches, escolas e pronto-socorros.
Até o dia em que Barbosa deixou a Prefeitura, o Ministério dos Transportes não havia
dado nenhuma resposta ao ofício.
V - Argumentos e mais argumentos
O ex-secretário jurídico, Luís Antônio de Oliveira Ribeiro, diz que o decreto-lei é
genérico e fala de todos os portos brasileiros. E que as áreas que não estivessem servindo especificamente para atividades portuárias passariam para
o Município.
Trata-se do decreto-lei 178, de 12 de fevereiro de 1967. Mas o que interessa mesmo é o
ato da Presidência da República que especifica os terrenos do decreto. É exatamente esse ato que fala dos bens desocupados administrados pelas
empresas portuárias.
Na época, a Codesp usou o argumento de que as áreas estavam, sim, sendo usadas para
atividades portuárias. Quais, não se sabe...
Na verdade, duas áreas já foram cedidas ao Sindicato dos Operários nos Serviços
Portuários; três estão cedidas em comodato às empresas Benatti e Retroporto, que ali montaram pátios para contêineres; uma outra é usada pelo
Círculo dos Amigos do Menor Patrulheiro de Santos - CAMPS - e, em outra, há até uma placa da Prefeitura e do Demutran. Além, é claro, do trecho hoje
ocupado pela Portuguesa e, outro, pelo Portuários.
![](lendas/h0245d.jpg)
A linha férrea chegava até este barracão, no Jabaquara
Foto: Walter Mello, publicada com a matéria
VI - Avenida sim, casa não
Moradores e proprietários de terrenos vizinhos à antiga faixa ferroviária ficaram
assustados quando souberam que o Portus pretende, numa primeira etapa, construir ali 50 casas. Alguns, como dona Maria José Godinho, começaram a
procurar informações a respeito, com a Codesp e a Prefeitura. Ela defende a abertura da tão sonhada avenida, a Gaffrée, Guinle.
Proprietária do imóvel da Rua Braz Cubas, 409, ela pergunta: "A
Vila Matias, que já foi uma área nobre, está deteriorada. E o que se faz? Nada? Isso interessa não só a mim ou a quem mora lá, mas interessa a
toda a Cidade. A avenida é muito mais importante que as casas. Não são 50 ou 200 unidades que resolverão o problema habitacional de Santos. É claro
que, com a avenida, minha propriedade seria valorizada, e podem pensar que estou preocupada só comigo. Não é nada disso. Veja como são as ruas da
Vila Matias, todas pequenas, sufocadas. Imagine o que a cidade ganharia".
Basicamente, é o que pensa também o secretário de Planejamento, Jean Jacques Leopoldo
Monteux: a simples perspectiva de contar com toda aquela área deixa o secretário muito animado. "Do ponto de vista urbano no sentido Leste-Oeste,
não temos muitas ligações, só a Francisco Glicério, a praia e, em parte, a Carvalho de Mendonça. A ilha já tem tão poucas áreas que isso seria
ótimo".
O prefeito Osvaldo Justo ficou ainda mais eufórico e
pretende fazer tudo o que for possível: "Isso é fabuloso. Mudaria totalmente a vida da Cidade". E o prefeito já entrou em contato com o presidente
da Codesp, Hélio Nascimento, para tratar do assunto.
VII - Descoberta
O receio de dona Maria José Godinho motivou uma pesquisa sobre o volumoso processo
existente na Prefeitura. O secretário de Assuntos Jurídicos, Écio Lescreck, mostrou o processo e começou a se interessar. Descobriu as referências
(faltam dados e mesmo algumas folhas) ao decreto-lei e procurou novas informações.
E agora? Bem, Lescreck pretende reunir os procuradores da Prefeitura e analisar a
questão. Se a conclusão for a de que as áreas podem passar para a Prefeitura, levará essa posição ao prefeito. E, certamente, o Município pedirá a
reintegração de posse de todos os terrenos.
E talvez Santos ganhe excelentes condições de revitalizar a Vila Matias. Além de criar
uma ótima opção de tráfego, capaz de resolver muitos problemas.
Principalmente num Município que sofre com a total falta de espaço e de áreas livres.
![](lendas/h0245e.jpg)
Hoje, algumas áreas estão ocupadas por pátios de contêineres...
Foto: Walter Mello, publicada com a matéria
VIII - Final
No caminho do acanhado trenzinho, amanhã pode estar a solução para o sistema viário da
Cidade. Desde que seja possível, realmente, conseguir a posse de todas as áreas. Uma ligação entre o Jabaquara e a área da Santa, para melhorar, e
muito, o trânsito e a situação urbana de toda a zona atravessada pela faixa ferroviária.
E o trenzinho responsável pela construção do cais talvez tenha oportunidade de dar um
pouco mais à Cidade. Mesmo que já não circule mais.
![](lendas/h0245f.jpg)
... e outras estão vazias, devidamente cercadas e muradas
Foto: Walter Mello, publicada com a matéria
Do Jabaquara até a Manoel Tourinho
São essas as áreas por onde passava o antigo trenzinho:
1 - Um grande terreno no Jabaquara, em que a Codesp está implantando o seu horto e que
ainda conserva um antigo barracão de madeira, onde a locomotiva entrava (no chão, ainda existem alguns trilhos). Fica ao lado da empresa Transbrasa,
atrás do Portuários e junto à antiga pedreira do Jabaquara, com entrada pela Avenida Francisco Manoel (canal da Santa Casa). É exatamente ali que
começaria a Avenida Gaffrée, Guinle, como mostram os mapas da Cidade.
2 - Trecho lateral ao Portuários, ocupado pelo clube.
3 - Terreno ocupado pela Portuguesa Santista (estacionamento).
4 - Um grande terreno na Praça Dr. Dutra Vaz (ao lado de onde existe hoje um
supermercado, quase na junção dos canais 1 e 2). Ali existia o Morro do Lima.
5 - Área entre as ruas São Paulo e Paraná, bem ao lado de um colégio municipal.
6 - Terreno entre a Paraná e a Antônio Bento - ocupado parcialmente por uma chácara,
com um pinheiro e uma linda mangueira.
7 - Área entre a Antônio Bento e a Ana Costa (ao lado do Edifício Arrastão).
8 - Entre Ana Costa e Júlio Conceição, terreno ocupado atualmente pela quermesse
promovida pela Associação Mariana Cristã. A entidade pensa em fazer ali uma área de lazer para todo o bairro.
9 - Entre Júlio Conceição e Comendador Martins, terreno desocupado.
10 - Entre Comendador Martins e Senador Feijó, terreno vazio.
11 - Entre Senador Feijó e Washington Luiz, área ao lado do Centro Espírita
Beneficente 30 de Julho. Uma parte do terreno é ocupada pelo Círculo Amigos do Menor Patrulheiro de Santos - CAMPS -, com frente para o Canal 3
(estacionamento, quadra de esportes etc.).
12 - Entre Canal 3 e Constituição, área ocupada pela Transportadora Benatti Ltda.
(terminal de contêineres).
13 - Entre Constituição e Conselheiro Nébias, um grande terreno que passa ao lado da
Açúcar Pérola. Lá existem apenas montes de madeira velha, empilhados.
14 - Entre Conselheiro Nébias e Campos Mello - área ao lado do Sesc-Senac e a Escola
Docas. Não há separação física entre esse terreno e o colégio.
15 - Entre Campos Mello e Silva Jardim - funciona o pátio de contêineres da Retroporto
Terminais e Despachos Ltda. (cedida em comodato).
16 - Entre Silva Jardim e Manoel Tourinho - também ocupado pela Retroporto.
Aí começa o Porto, próximo à Santa. Os trilhos do antigo trem ainda estão lá, saindo
do pátio de contêineres e ingressando na área portuária, na altura do Pátio de Volumes Pesados. O trem ia até a oficina da Cia. Docas, entre a Rua
João Guerra e a Avenida Rodrigues Alves. |