Página Web da AEAS em 1999 sobre o assunto
Prédios inclinados da orla - soluções possíveis
Um dos assuntos mais discutidos nesta década em Santos foi, sem dúvida, a
problemática dos prédios da orla da praia. A inclinação gradativa dos condomínios Núncio Malzoni, Excelsior e Jardim Europa, todos no trecho da
Avenida Bartolomeu de Gusmão, entre o Canal 4 e a Avenida Conselheiro Nébias, estarreceu especialistas de todas as partes do Brasil - em média, o
desaprumo chega a 2 metros - e incentivou discussões sobre um tema então tão pouco explorado: as fundações em solo mole. De acordo com um
levantamento realizado em 1995 pela Prefeitura, 94 prédios da orla, desde o Ferry Boat até a divisa com São Vicente, sofreram recalques,
porém estes três foram os mais atingidos. A maior responsável pelo afundamento dos edifícios é a espessa camada de argila que não suporta a pressão
causada pela faixa de areia, que inicialmente sustenta as edificações.
Segundo o levantamento realizado pela Prefeitura, apenas na Avenida Bartolomeu de
Gusmão 30 edifícios apresentam desaprumo, enquanto que na Avenida Vicente de Carvalho outras 18 construções apresentam problemas. No trecho da
Avenida Presidente Wilson foram constatadas inclinações em 37 prédios.
Em alguns pontos da Cidade, o terreno argiloso é o responsável pelos recalques dos
prédios mais antigos, que não foram construídos sobre fundações profundas. Na verdade, o processo de estaqueamento de vigas de concreto, até atingir
a camada fragmentada do solo (cerca de 60 metros abaixo), sempre recebeu resistência por parte da maioria dos construtores santistas.
Para economizar menos de 10% do custo total da obra, eles preferiram utilizar o
processo de fundação direta, que prevê a colocação de camadas de concreto sobre a faixa de areia (sapatas).
Especialistas em fundações explicam que, mesmo sem sofrer rupturas, a primeira camada
de areia comprime a argila marinha, provocando a inclinação das estruturas. O maior problema, então, não é o afundamento do prédio em alguns
milímetros, mas o recalque diferencial, causado pela concentração de cargas em um dos pontos do edifício.
No caso dos condomínios Núncio Malzoni e Jardim Europa, a área de concentração de
cargas no interior do solo (bulbos de tensões) provoca maior pressão sobre a camada de argila, que favorece os recalques em sentidos opostos.
Marcha constante
Em abril de 1995, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) divulgou um laudo
preocupante sobre o Edifício Núncio Malzoni. "Os recalques dos dois prédios do condomínio continuam a se desenvolver com velocidades praticamente
iguais àquelas observadas em leituras anteriores, o que denota a marcha constante", dizia o documento, revelando que, a cada mês, os edifícios
inclinam de 1 a 1,5 milímetros.
Atualmente, o aprumo atinge cerca de 2 metros no primeiro bloco, enquanto que o bloco
dos fundos convive, com mais de 1,60 metros de inclinação. Porém, as considerações finais do IPT foram ainda mais alarmantes. "Houve um agravamento
no desenvolvimento de recalques nos dois edifícios, que evoluíram significativamente entre abril de 1989 e janeiro de 1995, o que pode antecipar uma
condição de colapso por tombamento das edificações." Alarme falso.
AEAS
Em agosto de 1995, a Associação de Engenheiros e Arquitetos de Santos iniciou uma
verdadeira cruzada na obtenção de informação que pudessem, de alguma forma, contribuir para a solução dos problemas enfrentados pelos edifícios
tortos. Convidou diversos especialistas para participarem de palestras e debates e, em novembro do mesmo ano, organizou o Encontro Estadual de
Recalque e Segurança de Edifícios.
E os primeiros frutos da busca de soluções começaram a surgir. Um mês após o
encontro, depois de uma análise detalhada dos temas, os especialistas apresentam diversas conclusões à comunidade.
Em primeiro lugar, seria fundamental diagnosticar o problema antes de resolvê-lo.
Para isso, seria necessário definir o que se deseja: corrigir as inclinações, parar os recalques ou somente garantir a estabilidade estrutural dos
edifícios?
Se o objetivo fosse apenas garantir a estabilidade estrutural, um monitoramento dos
recalques acompanharia uma análise estrutural que indique a necessidade ou não de reforços na estrutura. Por outro lado, se o objetivo fosse o de
paralisar os recalques ou corrigir a inclinação, a saída seria determinar o modelo de cálculo que representa melhor o fenômeno de adensamento que
ocorre no solo argiloso de Santos.
Para isto, deveriam ser realizados ensaios especiais com uma instrumentação de campo
que forneça os parâmetros necessários para a utilização de modelos menos restritivos que os de Terzaghi. De acordo com os especialistas, as
modificações nas fundações de um prédio podem afetar o prédio vizinho e alguns reforços efetuados em edifícios da Baixada Santista, com o objetivo
de conter os recalques, não se mostraram eficientes.
Outra conclusão a que chegaram os participantes do encontro é que as pesquisas
realizadas, até aquele momento, não permitiam concluir nada sobre o tempo de estabilização dos recalques dos prédios de Santos. Para eles, a
fundação é parte da estrutura e, portanto, deveria ser considerada a interação solo/estrutura para uma análise mais correta do problema.
Graças ao encontro promovido pela AEAS, os especialistas puderam discutir outro tema
polêmico: os equipamentos utilizados em medida de recalques são apropriados? Para eles. seriam necessárias pesquisas de equipamentos para que se
passe a efetuar medida de esforços em estrutura, quando em carga.
Eles mostraram também à população que os esforços em fundações devem contemplar um
estudo cuidadoso de todos os itens pertinentes, como a velocidade que os recalques vêm apresentando e eventuais problemas de segurança. O reforço
deveria ser a última providência.
Os especialistas provaram que cada edifício deveria ser analisado individualmente. A
partir de alguns parâmetros a serem definidos (como velocidade de recalque, inclinação e estado de conservação) o Poder Público deveria intimar o
edifício para que fosse procedida vistoria e verificação da estabilidade.
Em junho de 1996, mais uma vez a AEAS contribuiu com a comunidade santista, ao
organizar, em parceria com a Prefeitura e outras instituições da área, o workshop Fundações Diretas em Santos: Problemas e Soluções. O
encontro reuniu autoridades nacionais e internacionais no assunto e serviu para ratificar as conclusões a que os especialistas paulistas já haviam
chegado.
Prefeitura
Em abril de 1997, a Prefeitura anunciou que o Núncio Malzoni poderá ser finalmente
colocado no prumo. A proposta é nivelar os dois blocos através da colocação de estacas em profundidades de 50 a 60 metros, onde se encontra a camada
do solo formada por fragmentos rochosos.
O estudo foi realizado pelos engenheiros Carlos Eduardo Moreira Maffei, Paulo de
Mattos Pimenta e a especialista em solos Heloísa Gonçalves. Ela vem estudando o caso dos prédios santistas há mais de 10 anos, quando defendeu sua
tese de doutorado.
A idéia foi defendida em outro encontro promovido pela AEAS, em junho de 1997. Do
evento, participaram personalidades importantes da engenharia nacional, estudantes e representantes da Prefeitura. Entre os nomes de maior expoente
que estiveram presentes ao encontro, destacou-se o do professor Victor F. B. de Mello.
Há mais de 40 anos, em novembro de 1952, ele realizou, na mesma AEAS, uma conferência
sobre Problemas de Fundações de Edifícios na Cidade de Santos: Análise dos Recalques e a sua Influência nas Estruturas.
Heloísa explica que a inclinação dos edifícios da orla já foi motivo de discussão nas
décadas de 50 e 60. Na época, estudos sobre o solo foram realizados, na esperança de se conhecer os recalques. Encontrados os índices, os estudos
cessaram porque os engenheiros acreditavam que os recalques permaneceriam iguais, "Até que os problemas começaram a se agravar", comenta Heloísa.
"O reforço do Núncio é praticamente estrutural. Não conhecemos o comportamento da
argila ruim. Por esse motivo, vamos fazer com que as estacas atravessem-na e atinjam a camada de sólido residual. Queremos saber como a argila se
comportará".
Heloísa explica que os prédios mais recentes já foram construídos com fundações
profundas. Só que alcançando apenas a segunda camada de areia. Abaixo desta camada, de acordo com ela, existe outra argila - que não é tão ruim
quanto a primeira, mas cujo limite de recalque também é desconhecido. Recalque, segundo a especialista, existirá, "mas bem menor do que os do
prédios atingidos".
"Como o Núncio Malzoni não é uma construção nova, é um reforço, a gente tem que ter
certeza da resolução. Por isso, não poderemos nos deter apenas na segunda camada de areia. O estaqueamento terá 56 metros de profundidade, passando
pelas duas camadas de argila de areia, atingindo o solo duro".
A Operação
Após inúmeros estudos, os especialistas chegaram à conclusão de que a fundação atual
do edifício não poderia ser reaproveitada. O Núncio Malzoni ganhará então uma nova.
Sob o prédio, 14 estacas profundas (56 metros) serão fincadas no solo, amarradas por
vigas que sustentarão a estrutura do edifício. Macacos hidráulicos especiais (cada um suporta aproximadamente 500 toneladas) suspenderão o prédio
para que se possa cortar o pilar no topo da fundação antiga.
Em seguida, o edifício será endireitado e ligado à nova fundação. Ao todo, serão
utilizados 14 macacos (um para cada estaca). "No caso do Núncio, não adiantaria reforçar apenas um lado, porque não saberíamos se isso forçaria o
recalque do outro lado".
Heloísa explica que solo mole, como o de Santos, existe em diversas partes do mundo,
até mesmo em São Paulo, geralmente próximo a rios. Trata-se de um solo argiloso, rico em material orgânico, resultado de um processo que leva
milhões de anos.
"Em Santos temos camadas muito grandes deste solo. No Guarujá, por exemplo, o solo é
mole nas primeiras camadas. O azar de Santos é que camada de areia de cima é muito boa. Logo, os construtores da época não se preocupavam com o que
viria abaixo desta camada".
A especialista conta ainda sobre a existência de laudos que comprovam que os
construtores sabiam do possível recalque a que estava sujeito o Núncio Malzoni. A Geotécnica, empresa que participou da construção, previa em laudo
que o prédio sofreria um recalque de 70 centímetros. E que, se outro prédio fosse construído ao lado, o recalque tenderia a aumentar.
"Este problema é exclusivo de Santos. Quando especialistas de outros países visitam a
Cidade, ficam impressionados com o cenário da orla da praia. Ninguém acredita que naqueles edifícios possa morar alguém", conclui. |