O bonde 19, na Avenida Pedro Lessa, sobre o Canal 5, em 1970
Foto: Franco Leone Caichiolo
O Macuco e seu espírito pioneiro
Nelson Salazar Marques
Eu disse, certa vez, que o bonde 19 representava para a
História de Santos o que os carroções dos pioneiros americanos representaram para a conquista do Oeste americano, guardando-se as proporções devidas
nessa saga de conquista. É como se o estivesse vendo: ele vinha num trote metálico e imponente pelas Docas abrindo caminho entre os navios atracados
e os caminhões da CUT e da CGT (N.E.: centrais sindicais: Central Única dos Trabalhadores e
Confederação Geral do Trabalho), e de repete, mergulhava num areal imenso e escaldante a partir da avenida Rodrigues
Alves. E dali para frente ele parecia virar um burro de carga, suarento e pesado, rangendo nos ferros a sua dor de ser bonde.
Leito de rua, nem pensar. Só areia. O mundo do Macuco, àquela
época, estava ligado à areia da praia: era um lençol só que se esticava pelas avenidas Pedro Lessa e Senador Dantas, ruas Castro Alves, Benjamim
Constant, Álvaro Alvin e todas as demais até juntarem-se num oceano de areia ao tocarem com a avenida Afonso Pena. Olhava-se para a direita, para a
esquerda, só areia. Ela estava em toda parte; cobria, muita vez, os próprios trilhos do bonde. E o bonde 19 avançava Macuco adentro mais parecendo
um galeão espanhol flutuando naquele mar de areia. Esse areal imenso morria ao bater na muralha de residências que seguia a linha da praia ali pela
altura da igreja do Embaré. Mas era uma muralha desdentada,
desfalcada de muitas casas e através dos grandes espaços ainda conseguíamos ver o mar a uns dois quilômetros de distância.
Nesse deserto escaldante (o calor daquele tempo era muito mais abrasador,
infinitamente mais abrasador: no verão chegava-se aos 40º à sombra com facilidade. É coisa interessante: em uma de nossas conversas com o lingüista
Charles Bouton, na Alliance Française, de Paris, ele nos fez uma revelação significativa. Em sua infância, ali por volta de 1925, as águas do lago
do Jardim Luxemburgo congelavam e ele o atravessava correndo para encurtar o caminho que levava ao Boulevard Saint Michel, mas 30 ou 40 anos mais
tarde essas águas passaram a não mais congelar. Isso leva à teoria de que os países frios estão ficando mais quentes e os países quentes estão
ficando mais frios) e, então, nesse deserto escaldante do Macuco, surgiam de repente enormes manchas verdes que cobriam áreas imensas: eram as
chácaras dos japoneses. Parecia mentira: uma família de japoneses, duas ou três pessoas, esticava naquele areal a perder de vista um quilômetro de
plantação e machuchu, um milagre de germinação. Essas chácaras começavam na avenida Conselheiro Nébias, atravessavam o
Macuco e avançavam pelos canais 5, 6 e 7. O termo japonês era, para nós, associado a machuchu.
Foi este o Macuco físico que eu encontrei ali por 1939, garotinho ainda. Eu saída da
efervescência do Bairro Chinês, onde o tempo parecia até pedir licença para se retirar, tal a sua aderência ao nosso
cotidiano. Coisa extraordinária: tudo era Macuco. Metade de Santos parecia ser Macuco. Saíamos da faixa do cais e já penetrávamos no Macuco. Avenida
Afonso Pena - um mar de areia - Rua Castro Alves, região próxima à Avenida Conselheiro Nébias, Canal 4, Canal 5, Canal 6, tudo Macuco. Nesse
território gigantesco pequenos enclaves mantinham certo charme pelos nomes arrevesados e sonoros: a Vila Hayden e a
Vila Jockey. Ali, garoto ainda, caía na solidão dos grandes espaços... e naqueles dias de chuva víamos da janela o mundo desabar em água, numa chuva
desobstruída caindo por quilômetros com uma fúria quase inumana.
Esses dias molhados, longos e arrastados, puxavam-nos para a introspecção. Às vezes,
ao empinar papagaio, tinha a atenção presa nos grandes navios que entravam na barra. Era uma visão súbita porque eles não entravam apitando... De
repente lá estava aquele monstro pré-histórico diante de nossos olhos. A primeira dessas visões foi impressionante e eu acho que deveria ter sido o
navio alemão Cap Arcona, pelo seu porte gigantesco. A vista era desimpedida, o descortino, total, porque não havia casa para aqueles lados,
só chácaras... mas a distância, a pouca altura das estacas que sustinham os machuchais era minimizada de tal maneira que podíamos ver o casco negro
dos grandes transatlânticos e, em certas partes, até a água espumante que a sua tonelagem deslocava ao passar. E não era raro ver-se alguém apoiado
no cabo de uma enxada, as tarefas momentaneamente interrompidas, embevecido na visão súbita. O Cap Arcona parecia uma cidade flutuante e ele
deslizava belamente por cima dos machuchais. Era uma visão hipnotizadora.
E viriam outros grandes transatlânticos, geralmente da Mala
Real Inglesa, como o Alcântara, o Astúrias, Arlanza. O navio francês Normandie, de tão grande, nem conseguia entrar no
porto de Santos: ancorava na Ilha das Palmas e os seus passageiros eram transportados de lancha até o cais. E por muito
tempo, na Praça Mauá e na Praça Rui Barbosa, a cidade só falava no Normandie. Havia
exageros e alguns diziam que ele tinha um quilômetro de comprimento. Muitos acreditavam realmente.
Esses grandes transatlânticos saíam à noite e a visão era ainda mais impressionante.
Aqueles milhares de luzes acesas dentro da noite, movendo-se em direção ao mar aberto, coruscavam como diamantes e arrepiavam. Eles saíam do porto
apitando, os navios hoje já não apitam mais, são frios e inumanos. Era um apito triste que deixava ressonâncias pungentes nas noites escuras do
Macuco; tão logo o barco anunciava a sua presença, nós, lá em casa, íamos para a varanda seguir a sua trajetória noturna. Ele chegava ao fim
do canal, soltava um último apito; depois se aprumava em direção ao mar e as suas luzes iam se embolando na escuridão. A minha mãe acenava para ele
e dizia com grande emoção: "Deus te guie".
Então estourou a guerra e os grandes transatlânticos desapareceram de Santos e do
mundo, engolfados pela era dos aviões a jato. Um dia escrevi uma carta para uma correspondente alemã que morava em Bonn: "Você teria condições de me
dizer por onde anda o Cap Arcona"? Ela foi à embaixada, revirou papéis, consultou redações de jornais e por fim mandou a resposta: "O Cap
Arcona foi transformado em transporte de guerra por ordens de Hitler e afundado pelos ingleses em 1943, e hoje repousa no fundo do Mar
Mediterrâneo". Ó Cap Arcona, requiescat in pace: um pedaço da minha infância afundou comigo. E de muitas outras infâncias.
O bonde 19, na região do Mercado, a caminho da Av. Pedro Lessa, em 1950
Foto: Museu dos Transportes
E o bonde 19 já ia trazendo gente, povoando aquelas regiões desérticas, gente que logo
se instalava em chalés de madeira. Em nenhum outro bairro de Santos o chalé imperou tanto como no Macuco... eram ruas inteiras de chalés, a
Comendador Alfaia, a Nabuco de Araújo, Torres Homem, a Liberdade e dezenas delas. Era o tipo de construção adequada para o pioneiro... O chão era
quase de graça e em dois ou três dias a casa estava de pé. Os vizinhos ajudavam e eu carreguei muito prego.
Coisa interessante, o Macuco chegou a desenvolver ali pela década de 40 um tipo de
sociedade ruralista que o tornava auto-suficiente e isso se deveu ao seu território até então virgem e intocado; por debaixo daquele lençol de areia
havia uma espessura de uns vinte centímetros de uma camada de terra semelhante a uma geléia negra. Depois vinha uma camada cor de gelo de uma areia
quebradiça e sem consistência, logo seguida por um tipo de argila arenosa cor de doce de leite toda empapada de água... Buraco de mais de meio metro
de fundura deixava vazar água e isto esterilizava o solo da ilha para práticas agrícolas.
Esse torrão de geléia negra eu só vim conhecer no Macuco e tudo que se possa imaginar
germinava ali. E cruzar os quintais daquelas casas, na década de 40, era ver hortas imponentes, criação de galinhas e porcos. E ele se foi
transformando num grande empório e essa atividade foi fazendo do Macuco um bairro extremamente poderoso economicamente. Mas essa prosperidade não
veio só: ela trouxe em sua esteira os valentões, uma fauna estranha e quase incompreensível para uma pessoa de nossos dias.
Quem eram esses valentões e o que queriam? Não chegavam a ser marginais, no sentido
que esse vocábulo tem hoje. Não eram gangsters e nem pertenciam a grupos mafiosos. Não tinham interesses maiores e nem escusos: só queriam
ser respeitados, impor medo. Seu habitat natural era a temida Bacia do Macuco, mas depois da década de 30, com a prosperidade das terras vizinhas,
eles foram se achegando. Eles tinham um código de honra, facilmente discernível atrás de sua conduta: não molestavam crianças, nem mulheres, nem
velhos. Não se tinha notícia de que jamais tivessem roubado e o seu domínio era circunscrito a áreas determinadas. Mas ai daquele que desafiasse um
valentão, que perturbasse o seu universo de conquistas e poder. E o que era desafiar um valentão? Era contradizê-lo, dizer que ele estava errado, em
público.
Os seus bunkers eram os bares. O Mar e Terra, na zona portuária; o São
Francisco, na Pedro Lessa. Ali eles reinavam; às vezes dois valentões se pegaam e o Macuco tremia. Me lembro de uma dessas lutas em frente ao
Cine Santo Antônio, luta a faca, lambedeira friccionando lambedeira, naquele ruído de metal de lâminas que se encontravam.
As pessoas assistindo em círculo aberto... e os valentões na refrega de vida e de morte até que um golpe certeiro estripou um deles. Ainda me
recordo de que o vencedor não fugiu, ficou por ali conversando com os assistentes até que a polícia apareceu. Evidentemente que queria prolongar por
mais tempo o desfrute da vitória e depois entregou-se pacificamente sem protestos nem nada. O mais famoso deles era o Navalhada. O seu nome
passou a ser uma lenda viva e ele realmente assustava.
Mas o meu espírito ficaria muito inquieto se eu não falasse aqui do mais singular dos
valentões: o Simião. Simião era gordo e bonachão. Ele caminhava lento como se nunca tivesse pressa em chegar ao seu destino, jogando os flancos para
os lados, ao caminhar, antes de levar o passo à frente. Não tinha pressa nos gestos e na fala. Simião tinha uma característica que despertava a
atenção: naquela soalheira de 40º à sombra, seu rosto luzidio estava sempre seco. Sua presença não inspirava medo e ele distribuía balas para a
garotada. Lembro-me de tê-lo visto distribuir balas. E mais tarde eu o compararia àqueles marinheiros do livro "A Ilha do Tesouro".
Lembro-me de tê-lo visto uma tarde. Ele deveria ter ido visitar um amigo e de minha
janela eu podia vê-lo bem de perto. Ele estava tranqüilamente sentado sobre um cepo de tronco de árvore que fazia as vezes de um banco e lia... a
Bíblia... os Santos Evangelhos à sombra de uma ameixeira. Eu vi apenas um livro, foi minha mãe quem reconheceu nele a Bíblia. Simião era crente. A
década de 50 pôs fim a essa era um tanto romântica dos valentões que faziam as noites do Macuco perigosas e excitantes. Ó estranha fauna de homens,
que tudo o que queriam era impor respeito.
Aquele que hoje se detenha a pensar sobre a guerra de 39 e os seus efeitos,
dificilmente terá uma idéia sequer aproximada da neurose que se abateu sobre Santos, e, evidentemente, outras cidades costeiras brasileiras; mas
Santos, por ser o sistema nervoso central da economia do País, sofreu mais. Víamo-nos cercados por invasões iminentes dos alemães e quando íamos à
praia os olhos automaticamente corriam o mar à procura de periscópios de submarinos: "Olha, olha, lá tem um"... "Eu vi um lá", eram exclamações
freqüentes.
O blackout permanente a que fomos submetidos teve efeitos psicológicos
devastadores... Vidro de porta e janela pintado de preto... Bonde que circulasse pela praia tinha a luz amortecida e as corredeiras de lona verde
descidas... Acender cigarro nas ruas era risco certo de ser tomado por espião alemão. Vizinho desconfiava de vizinho: "Ontem à noite ele deixou a
porta da frente aberta para avisar os alemães". Os trens da SPR que vinham de São Paulo tomavam precauções que, vistas a
distância, revestem-se de um ridículo atroz: quando a composição ia se aproximando do Rio Casqueiro, vinha um inspetor e fechava todas as janelas; e
se alguém perguntasse ao inspetor a razão daquilo, ele simplesmente dizia: "São os submarinos alemães".
As histórias corriam com a rapidez do vento. Algumas eram fantásticas, mas as pessoas
acreditavam: um dia alguém disse ter visto uma lanterna brilhar no alto da torre da Igreja do Embaré e a lanterna apontava para o mar e fazia sinais
para a esquadra alemã que estava prestes a bombardear Santos. À noite muitas pessoas iam sorrateiramente até lá para ver as tais luzinhas saindo da
torre. Eu também fiz uma dessas viagens, altas horas da noite. Sentávamos no meio-fio e ali ficávamos, olho grudado na torre da igreja, mas ninguém
via a tal luzinha. "Eles agora estão usando raios infravermelhos que só os alemães podem ver", alguém dizia. Desolados, nós descíamos a Rua Benjamin
Constant em direção a casa. Era tão pouco o que nós queríamos: bastava que um frade capuchinho, amigo e compreensivo, abrisse apenas uma janela e
nós já teríamos o que contar em casa e na escola.
E então os japoneses desapareceram do Macuco. Caminhões
sombrios, cobertos de lona, deslizavam discretamente na calada da noite e expeliam, de seu bojo, soldados do exército fortemente armados. As
famílias japonesas foram enfiadas nesses caminhões só com a roupa do corpo e nunca mais foram vistas em Santos. Pra onde foram? O que aconteceu com
elas? Eu nunca soube dizer. E os dias subseqüentes trariam em seu bojo cenas inenarráveis de vandalismo: o início dos saques.
Tenho desse episódio visão nítida e indelével que mais de quarenta anos não
conseguiram sepultar. Eu descia a Avenida Senador Dantas certa manhã, acompanhado de meu irmão mais velho a caminho da escola - deveria ser ali por
volta de 1942 - e então eu os vi... eram os saqueadores. Eles vinham por trilhas de dentro dos capinzais e pareciam formiguinhas obreiras. Eram
homens, mulheres, crianças e até velhinhos e velhinhas de passos trôpegos, todos trazendo às costas os produtos roubados das casas dos japoneses,
deixadas vazias e sem guarda à porta. Eram incansáveis. Centenas deles que iam e vinham carregando, a princípio, móveis, rádios, vassouras, roupas,
galinhas, porcos e até cachorros, e, mais tarde, o próprio produto das chácaras: machuchus, batatas e abóboras, tudo arrancado do solo. Eles
desciam a Senador Dantas carregando pencas de batatas com as raízes à mostra e, em longas filas sinistras, as exibiam com orgulho de um troféu de
batalha. Lembro-me de que alguns se esgueiravam envergonhados e desviavam o olhar.
Fruto de uma educação disciplinada, eu não podia compreender uma coisa daquelas e a
devida avaliação desse fato eu só faria mais tarde. A teoria de Rousseau sobre a bondade inata do homem e da força deletéria da civilização, sofreu
ali um golpe mortal. E, então, fui me convencendo de que o homem é um ser basicamente mau e que só a civilização e a escola o humanizam e o despojam
de suas origens animais latentes, mas sempre prontas a aflorar à superfície. Mas com todas essas torpezas - que eu acredito sejam inerentes ao
gênero humano - o Macuco foi um bairro heróico e pioneiro: ele foi o grande laboratório experimental de Santos.
É difícil dizer-se quando um bairro começa a se descaracterizar, quando as suas
arestas vão se polindo na mesmice daquele cotidiano avassalador, até ele se tornar uma esfera igual a todas as outras esferas. Mas, embora correndo
os riscos a que se expõe um tecelão da História, eu vou tentar explicar a lenta e gradual descaracterização daquele Macuco dos valentões que eu
encontrei no início da década de 40. A saída dos japoneses trouxe a eliminação das chácaras e o aparecimento das grandes várzeas. Essas várzeas
foram se transformando em campos de futebol, que proliferaram em mais de centenas deles, tornando o bairro um aprazível centro esportivo (o goleiro
Gilmar, campeão mundial de 1958, surgiu num desses campos, ali junto à Rua Álvaro Alvim, no Liberdade Futebol Clube).
O surgimento súbito do Grupo Escolar Cidade de Santos, construído pela Companhia Docas
de Santos e cedido à Prefeitura, ali por volta de 1939 e 40, foi outra importante etapa nesta metamorfose. Ele civilizou o Macuco. Até então a única
grande escola do bairro eram as ruas. O Cidade de Santos disciplinou a molecada, levou-a para os livros, para as leituras de Viriato Correia e
Monteiro Lobato... do Tocha Humana e do Príncipe Submarino. O Cidade de Santos era uma escola de um requinte e luxo excepcionais para a época e
aluno que saía dali fazia boa figura no Ginásio Santista com as suas fardas brancas de gala, no Colégio Canadá e no colégio dos padres carmelitas. E
aquela garotada que caçava peixinhos nas valas infectas do Macuco começou a desfilar pelas ruas da cidade em suas belas fardas cobertas de medalhas
honrosas - quem se salientava nos estudos ganhava uma bela medalha, algumas delas até banhadas em ouro: parecíamos generais de batalhas incruentas
iguais a esses dessas repúblicas sul-americanas.
Depois veio o cine Santo Antônio e universalizou o Macuco aos demais bairros de
Santos, tirando-o daquele isolamento a que ele tanto se afeiçoara e dentro do qual tanto crescera. E depois, ó, golpe, fatal e decisivo, veio a rua
Castro Alves e as suas mansões. Castro Alves, primeira rua realmente chique que Santos teve, cuja atmosfera exalava requinte e luxo.
Ela saía da praia e como um arpão destruidor e mortal foi penetrando o Macuco, que
ainda conseguiu detê-la, a muito custo, ali na Pedro Lessa. Mas o estrago já estava feito e seria irreversível. A rua Castro Alves trouxe a rua São
José e elitizou a área e o velho Macuco selvagem já começava a agonizar.
Então aconteceu um fenômeno surpreendente: a palavra Macuco passou a incomodar e, se
indagado onde morasse, a pessoa ia logo dizendo que morava no Embaré. Macuco? Não, eu moro no Embaré. E por um diabólico processo de engenharia e
arruamento, o Bairro do Macuco começou a encolher. Primeiro foi contido pela avenida Pedro Lessa e depois, retrocedendo sempre, foi amarrado pelo
grande corte transversal da avenida Afonso Pena. E então, lentamente, foi voltando às suas origens, à velha e legendária Bacia do Macuco... ó,
ingratidão, ó, velho Macuco, como te maltrataram!
Mas ainda hoje, quem por acaso fale com seus velhos moradores, ouve estórias
interessantes e surpreendentes. Uma delas é que nas noites invernosas em que as pessoas se recolhem mais cedo e quando uma tênue cortina de nevoeiro
cobre as avenidas Pedro Lessa e Senador Dantas, ouve-se , dentro das casas, o ruído de um bonde passando lá embaixo na avenida deserta. Alguns
afirmam ser o velho bonde 19 que volta ao seu percurso normal. Outros dizem, ainda, que são capazes de ouvir a voz do bonde na articulação daquele
ranger de ferros cadenciado, e que o bonde com voz profética solta maldições terríveis contra os administradores burros que arrancaram da terra
generosa aqueles trilhos pioneiros e sobre ela fizeram correr esses ônibus trambolhudos, deficientes e deficitários.
É bem verdade que alguns desses moradores dizem que a tal voz do bonde e as suas
medonhas maldições são coisas de saudosismo. Mas todos eles concordam que o velho bonde é ouvido fazer o seu passeio noturno pelo Macuco nas
madrugadas nevoentas de inverno.
O bonde 19, na Avenida Pedro Lessa, sobre o Canal 5, em 1970
Foto: Franco Leone Caichiolo
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