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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - AMARGO AÇÚCAR
Uma escala na Ilha da Madeira - 1

O texto a seguir estava disponível, em 1998, em páginas Web do Centro de Estudos de História do Atlântico (Ceha), na Ilha da Madeira. Essas páginas não mais existem na Internet, mas foram arquivadas por Novo Milênio, que resgata assim para o meio digital o estudo Cinco séculos de Açúcar na Madeira, de Alberto Vieira:

Os donos da Terra

Concomitantemente com a abordagem da questão do ciclo produtivo e comercial do produto surgem questões atinentes que procuramos dar o merecido relevo. São elas a evolução da propriedade da terra e da água, a escravatura. O conhecimento do regime de propriedade requer um estudo aturado, assente nas fontes documentais que atestem o sistema de relações estabelecido na posse e produção da parca superfície arável.

A historiografia preocupa-se, única e exclusivamente, com as condições jurídicas que regularam a distribuição das terras e depois a degradação do sistema com o alheamento do proprietário da parcela arroteável e a sua fixação no meio urbano. Esta última situação contribuiu para a definição do conhecido contrato de colônia. Não interessava conhecer quem e como se recebiam as terras de sesmaria, que tipo de propriedade condicionou esta política de doação e distribuição de terras, qual a evolução desta estrutura e as suas cambiantes, de acordo com as condições mesológicas do solo arável.

O equacionar da problemática em estudo não poderá desligar-se, como é óbvio, da evolução do sistema de propriedade. O povoamento insular mereceu desde muito cedo a atenção da historiografia nacional, que aponta o caráter peculiar deste processo evidenciado pela sua concretização num solo inexplorado com caráter experimental. A ilha da Madeira, porque virgem, apresentava as condições necessárias para o primeiro ensaio de colonização européia fora do continente. E daí partiram os processos, as técnicas e os produtos para as restantes ilhas do Atlântico e Brasil.


Na ilustração chinesa e na foto, forma de barro usada para o preparo do "pão de açúcar" nos engenhos, uma das etapas da produção do açúcar 
(Imagens: CEHA/I.Madeira)

Dar e dominar a terra

O sistema de propriedade ficou definido pela distribuição de terras aos povoadores e, depois, pela venda, troca ou nova doação. Num e noutro caso as situações são idênticas, variando apenas a forma da sua expressão consoante o processo de povoamento e as peculiaridades de cada ilha.

Todas estas doações eram feitas de acordo com normas estabelecidas pela coroa e seguiam o modelo já definido para o repovoamento da Península. Para além da condição social do contemplado, das indicações, por vezes imprecisas, da área de cultivo e para erguer benfeitorias, estabelecia-se também o prazo para as arrotear. Assim, dos dez anos iniciais passa-se para cinco a partir de 1433, o que se manteve não obstante as reclamações dos moradores, que anotavam a dificuldade no seu arroteamento.

Outra condição imprescindível para quem quer que seja adquirisse o estatuto de povoador com posse de terras estava na obrigatoriedade de residência até cinco anos, o estabelecer casa e, para os solteiros, o necessário casamento. Estas condições revelam que o principal intuito desta distribuição de terras era fomentar o povoamento das ilhas.

A partir de 1433, com a doação do senhorio das ilhas ao infante D. Henrique, o poder de distribuir terras é-lhe atribuído, mas "sem prejuyzo de forma do foro per nos dado aas ditas ylhas em parte nem em todo nem em alheamento do dito foro", o que comprova mais uma vez que a primeira iniciativa e regulamento de distribuição de terras coube ao Monarca. O infante, fazendo uso destas prerrogativas, delegou tais poderes nos capitães.

Sabe-se por informações indiretas que o foral henriquino confirma as ordenações régias e estipulava que as terras deverão ser distribuídas apenas por um prazo de cinco anos, findo o qual caducava o direito de posse e a possibilidade de nova concessão. Confrontadas estas condições com as do monarca, notam-se alterações significativas no regime de concessão de terras. Assim, desapareceu a diferenciação social dos agraciados e o período para as tornar aráveis é reduzido. A pressão do movimento demográfico, aliada à rarefação de terras para distribuir, condicionou esta mudança.

Nas décadas seguintes, a concessão de terras de sesmaria e a legitimação da sua posse geraram vários conflitos, que implicaram a intervenção legislativa do senhorio ou o arbítrio do seu ouvidor. Em 1461, os madeirenses reclamaram contra a redução do prazo para aproveitamento das terras de sesmaria, dizendo que estas eram "bravas e fragosas e de muytos arvoredos". Contudo, o infante D. Fernando não abdicou do foral henriquino e apenas concedeu a possibilidade de alargamento do prazo mediante análise circunstanciada de cada caso pelo almoxarife.

Passados cinco anos, os mesmos contestaram de novo contra o regime de concessão de terras de arvoredos e do modo de as esmontar, pelos efeitos nefastos que causava à safra açucareira. Perante tal reclamação, o senhorio ordenou aos capitães e almoxarifes que cumprissem os prazos estabelecidos e que fosse interdito o uso do fogo. No entanto, em 1483, o capitão de Machico continuava a distribuir de sesmarias os montes próximos do Funchal, com excessivo prejuízo para os lavradores do açúcar e, por isso, D. Manuel repreende-o, solicitando que tais concessões deveriam ser feitas na presença do provedor. E, finalmente, em 1485, o mesmo proibiu a distribuição de terras de sesmaria nos montes e arvoredos do norte da Ilha, para em princípios do século XVI (1501 e 1508) acabar definitivamente com a concessão de terras em regime de sesmaria, a única ressalva eram as terras que pudessem ser aproveitadas em canaviais e vinhedos.

As reclamações dos moradores e as medidas conseqüentes do senhorio atestam a pressão do movimento demográfico sobre a concessão de terras. Na Madeira, das facilidades da década de 20 entra-se na década de 60 com medidas limitativas, como forma de preservar o pascigo de usufruto comum e de apoiar os principais proprietários de canaviais, cuja exploração dependia da existência dos referidos montes e arvoredos. As exorbitâncias dos capitães, desrespeitando as ordenações régias e senhoriais, conduziram a uma diminuição desta área de pascílgo, de usufruto. Saliente-se que o próprio D. Manuel contrariou, em 1492, o regimento de dadas de terras ao permitir que o capitão do Funchal distribuísse terras na serra para currais e cultura de cereais e das bermas das ribeiras para a plantação de árvores de fruto.


Processo de separação e secagem do açúcar em torrões, nos engenhos
(Imagens: CEHA/I.Madeira)

O poder da água

A tudo isto há que referir, ainda, que as ilhas Canárias onde se implantou a cultura dos canaviais apresentavam um ecossistema distinto do madeirense. Assim, na Madeira, os cronistas, exceção feita ao Porto Santo, não se cansam de enunciar duas riquezas fundamentais para fazer medrar os canaviais e a industria subseqüente. A ilha é abundante em água e lenhas, pelo que a cana de açúcar tem condições para ser promissora. Em face disto, as doações de terra não fazem expressa referência à repartição da água. Esta, no primeiro momento, dá e sobra; os problemas com a sua falta, e a necessidade de regulamentar o seu uso e posse, surgem num segundo momento. Tendo em conta a importância que a água assume para a cultura, a safra do açúcar, é necessário não esquecer a forma da sua distribuição e posse.

Ao homem estava atribuída a dura tarefa de desviar o curso das ribeiras, fazendo com que as suas movessem engenhos, moinhos e irrigar os canaviais e demais culturas. Para isso, traçaram quilômetros de canais para a sua condução, que ficaram conhecidos, na ilha, como levadas. O sistema permitiu um maior aproveitamento dos socalcos e o alívio do homem em algumas tarefas, como sejam, o moer do grão e da cana e o serrar das madeiras. Moinhos, engenhos e serras convivem pacificamente usufruindo da água que corre na mesma levada. A orografia da ilha, ao mesmo tempo que dificultava a condução da água, favorecia este aproveitamento, pela força motriz atribuída pelos declives acentuados.

Águas e nascentes foram consideradas, nos primeiros documentos emanados para a ilha, como domínio público. Assim, o entendia D. João I no capítulo de um regimento dado a João Gonçalves Zarco onde considerava nesta situação as "fontes, tornos e olhos daugua... prayas e costas do mar, rios e ribeyras". Todavia, a água foi um problema ao longo da História da ilha, pois desde o começo surgiram açambarcadores a reivindicar para si a posse exclusiva deste bem comum. Em 1461 coloca-se a primeira dificuldade nesta repartição das águas, no que o Duque responde que, o almoxarife mais dois homens ajuramentados, repartam "as auguas a cada hum pera seus açuquares e logares segumdo cada hum mereçeer". Mesmo assim, continuaram as demandas sobre as águas, pelo que em 1466 o duque decidiu mandar, à ilha, Dinis Anes de Sá, seu ouvidor, com intuito de resolver esta e outras questões.

Com D. João II que ficaram definidos os direitos sobre a água, que perduraram até ao século XIX. Por cartas de 7 e 8 de maio ficou estabelecido, de uma vez por todas que as águas eram patrimônio comum, sendo distribuídas pelo capitão e oficiais da câmara, entre todos os proprietários, pois que "sem as agoas as terras se não podiam aproveitar". A partir daqui ficou estabelecido a água como propriedade pública, sendo o seu usufruto para aqueles que possuíssem terras e delas necessitassem. Todavia, desde finais do século quinze, a água passou a ser negociada, a exemplo do que sucedia com a terra. É com o regimento de D. Sebastião, em 1562, que se procede a uma alteração no sistema primitivo. As águas podem ser vendidas ou arrendadas, o que permitiu que aumentasse o fosso entre a propriedade da terra e da água.

Nos diversos contratos de meias, arrendamento e de colônia, em que os canaviais jogam um papel fundamental, a água está sempre presente. Naquelas referentes ao Convento de Santa Clara esta instituição assume o compromisso de atribuir água necessária.

A tradição de traçar levadas fez com que os madeirenses se tivessem transformado nos seus exímios construtores, levando a tecnologia para todo o lado onde se fixaram. Primeiro, foi as Canárias e, depois, na América. Esta perícia e engenho dos madeirenses está evidenciada na reclamação de Afonso de Albuquerque para que o rei lhe mandasse madeirenses "que cortavam as serras pera fazerem levadas, com que se regam as cannas de açúcar", para desviar o curso do rio Nilo.

O plano de levadas da ilha não ficou concluído no século XVII, foi apenas adiado pela afirmação da vinha, uma cultura de sequeiro, e, por isso mesmo, quando a cana retornou à ilha, no século XIX, de novo se pôs a questão das levadas para irrigar os canaviais e mover os engenhos. A água adquire de novo uma dimensão econômica importante, levando as autoridades a nova intervenção no sentido da sua regulamentação e do traçar de novas levadas para alargar a área de regadio e, por conseqüência, dos canaviais. É de salientar que o regime jurídico das águas, estabelecido em 1493 por D. João II, perdurou até 1867, altura em que foi aprovado um novo Código Civil.

A partir de então, água e terra são duas realidades distintas, vindo a agravar a situação, por ser favorável à especulação, situação que foi atacada por leis de 1914 e 1931. Seis anos após, o governo avançou com uma política específica da água que chegou à Madeira em 1939. A criação da Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (1943) foi o ponto de partida para esta mudança na política da água e das áreas de regadio na ilha.


Área dos engenhos destinada à secagem do açúcar nas formas
(Imagens: CEHA/I.Madeira)

Formas de exploração e domínio

A evolução do movimento demográfico, acompanhado da valorização das zonas aráveis com as culturas de exportação, conduziram a profundas alterações na distribuição e posse das terras. Os mercados interno e externo condicionaram um maior aproveitamento do solo arroteável, tornando-se urgente um adequado reajustamento da estrutura fundiária à nova situação. O aparecimento de capitais estrangeiros e nacionais conduziu à intensificação do arroteamento das terras e provocou alterações na sua posse por meio de transações por compra, aforamento e arrendamento.

O primeiro grupo de colonos é eminentemente nacional, pois só num segundo momento surgem os estrangeiros. Esta situação contrasta com as Canárias, onde o estrangeiro está comprometido com a conquista e início da ocupação das ilhas. João Esmeraldo é um exemplo entre muitos os estrangeiros que, entre finais do século XV e meados do século XVI, fixaram morada nas principais áreas de canaviais da vertente meridional. Todos eles, atraídos pelo comércio do açúcar, acabaram investindo os seus proventos em canaviais, engenhos e levadas. [João Pedro de Freitas DRUMOND, Documentos Históricos e Geographicos sobre a ilha da Madeira, ms. da Biblioteca Municipal do Funchal, fls. 15vº-17vº. Veja-se Maria do Carmo Jasmins PEREIRA. O açúcar na ilha da Madeira (século XVI), Lisboa 164, pp. 57-58].

Estes estrangeiros, bem relacionados com a alta finança européia e com os principais centros do comércio europeu, cativaram rapidamente a tenção da aristocracia e burguesia insulares com quem se relacionaram por meio de laços de parentesco. O casamento com o apetecido dote foi muitas vezes a forma de alargarem os seus domínios e de firmarem a sua posição na sociedade insular . [Veja-se João de SOUSA, Notas para a História da Madeira. Italianos na ilha. Benoco Amador, in Cidade Campo, supl. do Diário de Notícias, Funchal, 6 de Maio de 1984, p. 6].

A conjuntura deprecionária da economia açucareira madeirense, da primeira metade do século XVI, conduziu a profundas alterações na estrutura fundiária, contribuindo para a concentração dos canaviais nos grandes proprietários. Os de poucos recursos financeiros vêm-se obrigados a abandonar os canaviais, a substituí-los pelos vinhedos ou então a penhorá-los e vendê-los aos grandes proprietários e mercadores. Esta situação contribuiu para o reforço do grande proprietário das Partes do Fundo, nomeadamente nas comarcas da Calheta e Ribeira Brava.

Note-se que esta tendência acentuara-se já na transição do século XV para o XVI. A mutação da posse dos canaviais no período de 1494 a 1537 poderá ser aferida pela variância do nome dos proprietários. Entre finais do século XV e a primeira metade do século XVI, verifica-se a manutenção de 32 nomes (11%), enquanto no período de 1509 e 1537 apenas se mantiveram dezenove (6%). Estes números poderão significar que a mutação é mais evidente no período de crise que na fase ascendente, por outro lado indicam a maior incidência nas Partes do Fundo, pois que no Funchal permanecem dezessete nomes, isto é, 53% do total de nomes em causa.

Outro aspecto de particular significado nesta conjuntura deprecionária é o estabelecimento de contratos de arrendamento e, depois de colônia, que conduzem ao afastamento do real proprietário da terra e dos canaviais. A sua relação só existirá à beira do estendal para receber o açúcar. Exemplo disso é o contrato de arrendamento de meias de terras em Câmara de Lobos, estabelecido entre o convento de Santa Clara e Francisco Martins em 1558.

Se é certo que o estimo de 1494 confirma a tendência para a afirmação da pequena e média propriedade no Funchal e Câmara de Lobos e, em parte, da grande propriedade nas Partes do Fundo, também é certo que os dados em estudo para os anos de 1509 a 1537 atestam a afirmação da grande propriedade nas Partes do Fundo e da média no Funchal e Câmara de Lobos (comarca do Funchal).


Formas e trabalho de retirar e mascavar o açúcar nos engenhos
(Imagens: CEHA/I.Madeira)

A grande propriedade, quase inexistente em 1494, tem grande destaque na primeira metade do século XVI, nomeadamente nos primeiros decênios. Em 1494 apenas surgem proprietários com mais de 1.000 arrobas nas Partes do Fundo e em número reduzido (22%) na zona e 10% no global da capitania. No século XVI estes surgem na capitania do Funchal em número superior, com 18% na capitania e 14% no global. Na capitania de Machico, esta é quase inexistente uma vez que apenas há notícia de um proprietário com mais de 1.000 arrobas.

A posição da capitania do Funchal deve-se fundamentalmente aos proprietários sediados nas comarcas da Calheta (35%) e Ribeira Brava (42%). Em 1494, na capitania do Funchal surgem apenas 12 proprietários (5%) com uma produção superior a 1.500 arrobas e, no período subseqüente (1509-1537) vinte e quatro (8%). Os últimos são na sua maioria, oriundos da Ribeira Brava e Calheta.

Para 1494, os valores mais elevados são de James Timor (2.270 arrobas) e João de França (2.500). No período imediato, do século XVI, duplicam, como sucede com Pedro Gonçalves de Bairros da Ribeira Brava que, em 1509, produziu 5.376 arrobas de açúcar, isto é, 28% da comarca e 8% da capitania. Com uma produção superior a 2.000 arrobas, temos, no período de 1509 a 1537, quinze proprietários majoritariamente oriundos da Calheta e Ribeira Brava, com um valor global de 37% da capitania, enquanto em 1494 eram apenas três, produzindo 9%. Perante esta evidência, será legítimo afirmar que na Madeira dominou o sistema de pequena e média propriedade com a cultura do açúcar? Se a conclusão se torna legítima para finais do século XV, o mesmo já não poderá dizer-se para a primeira metade do seguinte. Estamos perante a principal modificação na estrutura açucareira neste lapso de tempo de 43 anos.

Segundo Virgina Rau e Jorge de Macedo, "a produção do açúcar beneficiava camadas amplas da população, encontrando-se entre os produtores, além do pequeno e médio lavrador, sapateiros, carpinteiros, barbeiros, mercadores, cirurgiões, moleiros, ao lado de fidalgos funcionários, conselhios e outros, participando por migalhas nos benefícios desta rica produção, [...]. Toda esta miuçalha de pequenos produtores se aproveitava de um organismo montado na ilha, para tornar rentável a sua pequeníssima produção". Vitorino Magalhães Godinho, por seu turno, reforça esta caracterização da realidade social madeirense apontando a tendência para a concentração dos canaviais num número reduzido de insulares.

A situação da primeira metade do século XVI apresenta-se diferente, pois que o número limitado de proprietários reforça a idéia da concentração dos canaviais nos grupos sociais privilegiados da sociedade insular: aristocracia, mercadores, artesãos e funcionários locais e régios. Em ambos os momentos, este grupo de proprietários representava apenas 1% da população da ilha. Esta tendência concentracionista acentua-se na passagem do século XV para o XVI, uma vez que houve a redução do número de proprietários nas comarcas circunscritas às Partes do Fundo. Aliás, aqui é notória a manutenção dos proprietários, sendo reduzida a mutação por compra e venda, dote ou aforamento. A imutabilidade da propriedade deve-se fundamentalmente à sua vinculação. Assim, entre 1509-1537, 18% dos canaviais das comarcas das Partes do Fundo estavam vinculadas, enquanto no Funchal são só 17%. Estas terras representam 38% da produção da capitania do Funchal.

A caracterização da realidade social da estrutura fundiária açucareira é igualmente diversa, sendo definida pela forte participação dos estrangeiros, mercadores e funcionários. O grupo de estrangeiros que surgia já em 1494 com uma forte participação no sector produtivo açucareiro com 17%, reforçará a sua posição, na primeira metade do século XVI, atingindo 20%. Esta situação é reforçada pelo testemunho de Gaspar Frutuoso. A sua relativa participação em 1494 explica-se pela política xenófoba dos mercadores do reino e ilhas e pela ambigüidade da ação da coroa e do senhorio. Até 1498 - altura em que o monarca autoriza a permanência dos estrangeiros na ilha - a situação mantinha-se muito precária e os seus interesses molestados pela oposição da burguesia insular e nacional. Deste modo, a estabilidade e privilégios concedidos aos mesmos contribuíram para a sua rápida fixação na ilha, justificando-se de modo preciso a sua forte participação no sector produtivo na primeira metade do século XVI.

Sendo o Funchal o principal centro do comércio madeirense, lógico será de supor a fixação do estrangeiro no burgo e arredores. Assim temos 43% deste grupo na comarca do Funchal e arredores. Na sua maioria são grandes proprietários, uma vez que mais de 50% detêm canaviais com produção superior a 1.000 arrobas. A sua acção alargou-se depois, a algumas comarcas periféricas, com forte incidência na economia açucareira, como Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta, onde assumem uma posição importante na produção e destacando-se como os principais proprietários, dispondo de extensos canaviais, engenho e numerosos escravos.

No Funchal, é certo, temos grandes proprietários, como Simão Acciaioly, Benoco Amador e João de Bettencourt, mas, em contraste, a sua posição no quadro geral não atinge o nível dos supracitados. Aliás, é na Ribeira Brava e Ponta de Sol que estes apresentam a percentagem mais elevada da produção. Em síntese, podemos afirmar que o estrangeiro avizinhado não se preocupou apenas com o sector produtivo, pois o comércio e transporte dos produtos, que os atraíram, mantiveram-se como a atividade principal. Este raramente surge na condição de proprietário, mas com o triplo estatuto de proprietário-mercador-prestamista.

A classe mercantil, atraída pela opulência do açúcar, fixa-se nas principais comarcas de produção e comércio do ouro branco. O Funchal, como principal centro de tráfego açucareiro, apresentará condições propícias à sua residência. Note-se que cerca de 60% tinham os seus canaviais nesta comarca. De igual modo sendo a capitania do Funchal definida pela melhor área de canaviais, eles preferem-na às terras de Machico, onde apenas atingem 13% do total. Não obstante, a sua fraca representação numérica na última capitania surgem com 35% do açúcar, enquanto no Funchal ficam-se pelos 20%.

O mercador nacional ou estrangeiro não se dedicava em exclusivo ao comércio, pois repartia a sua atividade por uma multiplicidade de produtos de importação e exportação e alargava-a a outros sectores, como o administrativo e produtivo. Assim, estes são em simultâneo proprietários e funcionários concelhios ou régios, com uma forte presença na exploração dos canaviais onde representavam, na primeira metade do século XVI, 24% do total dos proprietários, comparticipando com 30% da produção.

A estrutura administrativa das duas capitanias subordinava-se à febre açucareira, sendo definida pelo almoxarifado e provedoria da fazenda. A própria administração local ajustou-se a esta ambiência, sendo a vereação a tribuna de debate das principais questões ligadas ao produto. Ao mercador ou proprietário interessava deter uma posição nesta complexa estrutura administrativa de forma a fazer valer os seus reais interesses nas ordenanças ou posturas municipais, que regulamentavam a safra e comércio do açúcar.

Não será por acaso que muitos dos principais proprietários são nas duas capitanias como oficiais régios ou concelhios. Destes registram-se pelo menos trinta e três, na sua maioria da capitania do Funchal, com uma produção de 21%. Sendo a vereação o local de debate e deliberação das principais questões ligadas à safra e comércio açucareiro, lógico será admitir a sua participação com assiduidade nas mesmas, como oficiais eleitos ou homens-bons. Note-se que neste grupo 61% são homens-bons. Os elementos mais influentes da classe possidente madeirense incluíam-se em qualquer destes grupos. O usufruto da dupla situação social conduziu à sua afirmação no grupo de proprietários de canaviais. Assim 30% dos funcionários e 19% dos mercadores situam-se no grupo com uma produção superior a 1.000 arrobas.

A conjugação dos vínculos ou legados pios, do duplo estatuto social com as alianças matrimoniais ou extra-matrimoniais, poderá ser apontada como o principal mecanismo de reforço da grande propriedade na economia açucareira. Esta é uma conjuntura premente no momento de crise da primeira metade do século XVI. Note-se que a intervenção da infanta D. Catarina foi no sentido da manutenção dos canaviais através da regulamentação das heranças. Assim, em 1559 foi eleito um procurador para tratar da herança dos canaviais que levou à decisão em 1562 de apostar no regime de morgadio para os canaviais.

No século XVII, a estrutura fundiária é distinta. Assim, dominam os pequenos proprietários de canaviais, o que demonstra ser esta uma cultura subsidiária, que medrava ao lado das outras pela sua necessidade familiar ou interna. O quadro que a seguir se apresenta é testemunho da diminuta importância dos canaviais na estrutura fundiária madeirense de então. Para 1600 temos 109 proprietários com 3.656 arrobas, o que equivale a uma média de 33,54 arrobas. Esta situação demonstra que a segunda metade do século XVI foi pautada pelo paulatino abandono dos canaviais e a sua substituição pela vinha.