Seu Luís, o mais antigo morador, quando vai para a cidade fica lembrando do serviço da
roça
Sossego, moças encantadas e amor à terra
Os negros não suportavam mais as torturas, o trabalho
forçado, as injustiças. Buscavam as matas, desesperados, e, escondidos no Vale do Quilombo, tentavam escapar à fúria dos senhores.
Pois é. O Vale do Quilombo parece predestinado a servir de refúgio. Em outros tempos, acolheu os negros na luta
pela liberdade e, hoje, abriga as pessoas que querem fugir do corre-corre das cidades, dos aluguéis, das favelas, da carestia ou da violência.
Poucas famílias dividem a imensidão do Quilombo. Cerca de 20 delas moram perto da pedreira do Paulino, o No,
e vivem com o que os homens ganham na lida com as bombas de dinamite e os pedregulhos que se transformam em cascalho e areia. Estas famílias estão
relativamente próximas da Rodovia Piaçagüera-Guarujá e o chamado "mundo civilizado" se faz presente devido ao barulho dos carros que passam
velozes na estrada.
Os demais moradores, no entanto, podem se considerar isolados do mundo. Os Marques, nem se fala, porque ocupam a
casa mais distante mata adentro. Só para se ter uma idéia: a Neusa Marques, 23 anos, nascida no Quilombo, leva nada menos que três horas para
chegar até a Piaçagüera-Guarujá quando caminha em companhia dos filhos, Carlos Roberto e Aparecida, de cinco e quatro anos de idade,
respectivamente. Sabe como é, criança segue naquele seu passinho miúdo...
Neusa e o marido, também nascido no Quilombo, tentaram sair de lá, mas não agüentaram a carestia da vida.
Voltaram para o sítio, para as noites iluminadas por lampião a gás ou lamparina, para aquele universo dominado pela natureza, para a rotina de
dormir e acordar muito cedo. Mas, dias desses terão que enfrentar o mundo cá de fora novamente: logo, logo, as crianças estarão em idade escolar.
Dona Neusa, bem distante do mundo
Seu Luís, 82 anos lá, fala sobre o poço onde moram moças encantadas
- Enquanto os Marques na certa precisarão deixar o Vale do Quilombo por causa dos filhos, há gente que nasceu, se criou e não pretende nunca sair
de lá. É o caso de seu Luís, 82 anos de idade e muito suor derramado ao longo das décadas pelos grotões, escarpas e valas do lugar.
"Não gosto da cidade. Tô acostumado na roça, trabalhando. Se vou para a cidade fico lembrando do serviço
da roça", comenta com toda a sua simplicidade, sem soltar o cabo da enxada. O trabalho é duro, ele bem o sabe, mas não se amedronta. "Não tenho
medo", afirma, tranqüilo, com a memória cheia de recordações de épocas passadas.
Aos 10 anos de idade já andava às voltas com as colheitas de banana, de mandioca, com o corte de árvores no mato
e a queima para transformá-las em lenha. Carpiu, arou e enfrentou a violência das águas do Rio Quilombo e seus pedregulhos. Ele é do tempo em que
se escoava a produção de banana pelo rio: os homens levavam duas horas para cruzar o Quilombo, mãos firmes, nos varejões, para não deixarem as
barcaças se arrebentarem contra as pedras.
Mais do que ninguém, seu Luís conhece picadas tradicionais, como a do Abacaxi, da Vargem, da Boa Vista e
da Mogiana. E cansou de percorrer locais que receberam denominações bem populares como o Poço Frio - onde a mata se fechou de tal modo que o sol
mal consegue penetrar - e o Poço das Moças, trecho do rio onde três moças morreram afogadas, ou, segundo outra versão, onde existem três moças
encantadas.
Seu Luís fala mais baixo e ganha um ar misterioso ao contar que no poço vivem três jovens encantadas. Vez
ou outra aparecem na beirada do rio, penteando os cabelos, mas quando percebem a presença de alguém se lançam nas profundezas das águas.
"É um poço escuro, feio. De noite, se ouve um ronco", acrescenta seu Luís, afirmando que alguns já viram
as moças. Ele mesmo não teve essa oportunidade: "Já andei em cima das pedras, estive sentado na beira do poço, mas nunca vi nada".
Seu Bonifácio fica louco na cidade, e seu Beraldo, surdo como uma porta
- Se seu Luís sente saudade da roça quando vai para a cidade, outro que não agüenta morar longe do sossego dos sítios e das matas é seu
Bonifácio, 69 anos de idade, 12 deles vividos no Vale do Quilombo. "Se eu passo três dias na cidade, fico louco. Não tem o que ver lá!", afirma,
lembrando que em Parati ficava ainda mais escondido do mundo: chegar ao centro exigia seis horas de caminhada.
No Quilombo, mora em companhia do filho, Aurélio, e, como trabalha num porto de areia perto de casa, não precisa
pagar a tarifa extorsiva do transporte coletivo todos os dias. Seu barraco é simples de tudo, mas ele não pede mais, não quer saber de luxo.
Na hora de se alimentar, muitas vezes aproveita o que a natureza oferece: no Rio Quilombo, consegue bonitos
exemplares de paratis, traíras, bagres e robalos, que são os peixes mais comuns. No mato, caça cotia, raposa e paca. E como gosta de um macuco, de
carne boa, tenrinha feito faisão (atenção: que ninguém fique entusiasmado para matar a bicharada do Vale do Quilombo. Seu Bonifácio não
pratica a caça predatória - trata-se apenas de uma questão de sobrevivência. Lembra-se, entre outras coisas, que havia macucos aos montes no
bairro que levou esse nome. No entanto, não sobrou nenhum para contar a história...!
Quem se acostuma com uma rotina onde o barulho não passa do zunido do vento nas folhas, da água descendo
as encostas, dos pássaros anunciando o amanhecer e a chegada da noite, quando vai para a cidade, logicamente estranha. Seu Geraldo fica com
"uma surdeira danada", a tal ponto que os carros buzinam atrás dele e ele não ouve nada. "Aqui, escuto até o que não devo", comenta, enquanto se
balança gostosamente na rede armada entre duas mexeriqueiras.
"É ruim em ocasião de doença. É duro. Mas, com saúde, a gente vive bem", explica Dona Maria, esposa de seu
Beraldo, apontando em seguida as meias que encobrem seus pés. "Aqui é assim. Até em dias de calor a gente anda com os pés e pernas cobertos por
causa do mosquito", esclarece. Segundo ela, antigamente não havia tantos deles, mas de uns tempos para cá deram de atacar e não deixam ninguém
sossegado.
No sítio de seu Beraldo e de dona Maria, mexeriqueira, bananais e uma vida simples,
longe da violência e do corre-corre
A cachoeira estoura e uma enchente quase acaba com a vida de todos
- Fora os mosquitos e a dificuldade para se conseguir um médico, o casal não reclama de nada. As cachoeiras das proximidades oferecem água da
melhor qualidade, em abundância: os animais que criam garantem um reforço alimentar; e, da terra, tiram mandioca, banana, mexerica e gengibre,
entre outras coisas. Fazem farinha e plantam café. Vez ou outra, dona Maria é vista às voltas com o pilão feito por seu Beraldo, esmagando
grãos de café torrado para transformá-los em pó. E nós aqui continuamos pagando Cr$ 1.300,00 por um quilo do produto. Por enquanto!
Seu Beraldo, 50 anos de Vale do Quilombo, não esconde o orgulho dos seus 160 pés de mexerica e dos 12 mil
pés de banana. Só se aborrece quando o vento sopra forte, pondo tudo abaixo. No ano passado, derrubou um monte de bananeiras carregadas e, dos
dois mil pés de banana novos, deu para contar nos dedos de uma das mãos os que restaram de pé: cinco. O sitiante balança a cabeça, com ar
desanimado: "Dá desgosto, dá desgosto..."
Mas, ele e dona Maria já viveram experiência bem pior do que perder a produção. Certa ocasião, segundo diz
seu Beraldo, "arrebentou um cachoeirão na serra e trouxe um pedreal danado". Afirma que se formou um monte de pedras de uns 20 metros
de altura, sem contar que a uns 200 metros a partir desse monte só se via pedregulhos.
"Essa capoeira parecia um mar. A força da água era tanta que árvores enormes davam um balanço e caíam", relembra
seu Beraldo, explicando que o pessoal do sítio correu para um ponto mais alto e se abrigou sob uma árvore. Ficar dentro de casa seria uma
loucura: "Só se ouvia aquele barulho de água, parecia um avião. Ninguém via a várzea. E lá vinha pedra rolando".
Dona Maria não conseguiu dormir direito durante um mês. "Quando eu estava pegando no sono, representava que
vinha enchente", recorda, dizendo que sua vontade, naquela época, era ir embora de lá. Mas seu Beraldo insistiu em ficar. Ainda mais que
procurou ouro nas ruínas do Rio Quilombo e não encontrou nada. "A única coisa que achei foi chumbo onde corria a roda de água", confessa, e
completa em tom de brincadeira: "Bem que andei nas cachoeiras bateando, para ver se encontrava alguma fagulha de ouro".
Os apuros que enfrentam migrantes, na eterna luta pela sobrevivência - Um ponto parece comum na história
de todas as pessoas: elas sempre buscam a felicidade. Ou, pelo menos, dias melhores. E foi por esse motivo que seu Antônio Rios se encheu
de razão e deixou para trás a fazenda de Suzano, onde trabalhava sob um regime de quase escravidão.
"Havia uma porteira, não permitiam que a gente saísse. Todo mundo era obrigado a comprar as coisas no armazém.
Depois descontavam do pagamento e o trabalhador ficava sempre devendo. A pessoa com filho, com tudo. Dava para agüentar uma vida dessas?", indaga
seu Antônio. Por tudo isso, teve forças para descer a serra a pé e procurar outro lugar para morar, "nem que fosse embaixo de uma ponte".
Não foi preciso chegar a tanto. No fim da serra deparou com o Vale do Quilombo e conseguiu terra para plantar.
Voltou, trabalhou mais uns dias para pagar o que devia na fazenda e veio de vez, com mulher e filhos. Já se foram 13 anos, e por maiores que
tenham sido as dificuldades, nunca se arrependeu de se aventurar pelo mundo.
Valeu a pena para ele, como valeu para o baiano Jesuíno, que cansou da agruras do sertão, da seca que destruía
tudo, espalhava fome e miséria. Tentou primeiro o Interior do Estado. Não deu certo. Embarcou no trem e de repente se viu diante da estação do
Valongo, cercado pelos nove filhos menores e com apenas Cr$ 3,00 no bolso.
Data: 6 de julho de 1967. Como poderia esquecer? Noite chegando, a necessidade de encontrar um local para ficar.
"Deixei o José e o João na estação, botando sentido em meio saco de feijão e meio saco de farinha. A comida dos próximos dias. Saí com o resto da
família", conta seu Jesuíno, lembrando que, quando passou atrás do presídio, o guarda se assustou ao ver aquela gente toda, meio sem
destino, e tratou de ligar para o Albergue Noturno.
Foi a salvação. Do contrário, a família teria que passar aquela noite fria de julho na rua. Seu Jesuíno,
mais tranqüilo ao ver a mulher e os filhos menores em lugar seguro, partiu em busca do José e do João, de 11 e nove anos respectivamente. Mas,
quando chegou à estação, levou um susto daqueles: não encontrou as crianças, nem a comida. Nem sinal delas.
Imaginem o desespero! Ficou zonzo, atordoado. Até que um homem o viu daquele jeito e perguntou o que
procurava. Sabem o que havia acontecido? Ao invés de voltar para o Valongo, seu Jesuíno foi parar na antiga Sorocabana, na Avenida Ana
Costa. Quando finalmente achou os filhos, o João "estava no maior pranto". O José, muito danado, disse que o pai não apareceria mais e o pobre do
João ficou no maior desalento. Chorou. Chorou e soluçou como nunca na vida.
Seu Jesuíno (à esquerda, ao lado do amigo Francisco) lutou muito
e se orgulha da terra cultivada por suas mãos
Depois de muitos anos de trabalho, quatro alqueires cultivados - Não terminam nos episódios relatados as
desventuras de seu Jesuíno. No terceiro dia em Santos, a mulher, cansada de tanto sofrimento, deu-lhe um ultimato. Ele conta: "Na rua, com
os filhos em roda, chorando, ela disse que se não houvesse conforto ia beber veneno e morrer".
Nem é preciso dizer que seu Jesuíno partiu como um louco. Já estava trabalhando, mas o dinheiro mal dava
para pagar um aluguel. "Peguei o José e entrei na casa do juiz (Fórum) para ver se alguém arrumava um emprego para ele. Uma mulher me viu daquele
jeito, descontrolado, e perguntou se eu tinha ficado doido. Respondi que doido não, mas em perigo", continua seu Jesuíno. E foi essa "dona
menina" quem o mandou procurar uma dona de pensão no Gonzaga, chamada Genoveva, que precisava de um menino para entregar marmita.
Deu certo. Melhor até. Passados três dias, dona Genoveva chamou Ana, a outra filha de seu Jesuíno, para
trabalhar. Depois de cinco dias, empregou Genáia, e, ao fim de uma semana, entregou Cr$ 40,00 na mão do baiano migrante. Relembra: "Aluguei um
quarto e botei a família dentro".
Vai daí que seu Jesuíno arrumou serviço em bananais do Vale do Quilombo. Mas andava doido para arranjar
um terreno e cultivá-lo. Se ajeitava roça em pleno sertão, o que não faria em terra fértil!
Setembro de 1967. Um terreno nas mãos, finalmente. Mas sua única ferramenta era uma faca velha. "Tomei uma
foicinha e um machado emprestados e botei o pau para dentro a trabalhar. Na primeira noite, dormi nos galhos de um pé de laranja. Foram 15
dias dormindo no mato, cozinhando numa lata", recorda, gesticulando bastante.
Em novembro de 1967, já dispunha de meio alqueire de terra pronto para plantar. Por nove meses, não largou a
foice da mão. Ficou 10 anos sem saber o que era um domingo. Esse ano, tirou as primeiras férias em 16 anos de Vale do Quilombo. E, satisfeito,
aponta os quatro alqueires de terra cultivados. Produz banana, jaca, laranja e cana.
"Passei muitos dias sem ter o que comer. Nem um tomate podre que fosse meu para dar pros filhos. Hoje, eu
tenho aí à vontade para o povo comer. Tô muito satisfeito", afirma com o seu sotaque baiano bem marcado, enquanto prepara um café no fogão
a lenha, com a ajuda do amigo Francisco Moura, companheiro de tantas horas.
Não se esquece de dizer que os filhos o ajudaram muito, e seu rosto curtido do sol se enche de satisfação quando
fala sobre a esposa, Náia. Pena que ela não estava por perto para ouvir o que ele afirmou: "Abaixo de Deus, quem me ajudou foi ela. Quando um
homem tem uma mulher trabalhadeira, vai para a frente". E sai, sorridente, correndo para pegar água na fonte, porque a comida está queimando no
fogo. |