Todos reclamam, mas a prefeitura não alarga a Boris Kauffmann e nem tapa os buracos dessa rua
E a favela cresce nas águas
Não precisou mais do que isso: em pouco mais de seis anos,
centenas de barracos surgiram sobre as águas malcheirosas do Canal São Jorge. É a gente brasileira desafiando o legítimo direito de sobreviver,
buscando um cantinho, nem que seja no meio do mangue infestado de mosquito, ao lado dos porcos e dos ratos.
A população está cada vez mais pobre, tenta escapar dos aluguéis e a favela vai aumentando. A cada dia chegam
novas famílias, desesperadas, malas nas mãos, conforme constata Natal Miranda, o primeiro a morar no Caminho São Jorge. Ele viu milhares de
pessoas chegarem de uma hora para outra e não se conforma ao observar as fileiras de casebres contornando o canal, já atingindo as imediações do
antigo Matadouro.
Lá estão os trabalhadores braçais, a mão-de-obra barata que garante o lucro das empreiteiras. Desempregados?
Isso tem demais. Só se vê homens cabisbaixos, sem outra saída a não ser catar restos nos lixões ou ficar na beira do mangue, tentando pegar
caranguejos para vender na estrada. A maioria não sabe mais o que é um pedaço de carne.
Motivos não faltam para a Vila Alemoa ser conhecida como a filial do inferno. A umidade penetra pelas paredes
das casas e na época do frio os barracos tornam-se insuportáveis. Em cada um deles vive uma média de cinco ou seis pessoas, para não citar os
casos extremos daqueles que abrigam 18 ou 20 elementos.
Vejam só esse caso: na casa de Lourdes são 8 crianças, sendo que três dormem em camas e o resto no chão. E ela
deve fazer milagre para conseguir sustentar os filhos com um salário de Cr$ 10 mil mensais. A Afra sai para trabalhar e deixa quatro filhos
pequenos sob os cuidados da menina maior, de apenas 9 anos de idade. Dia desses, o rato roeu o nariz e a orelha da menorzinha, de dois meses de
vida.
A saúde vai embora, as crianças crescem largadas pelos labirintos dos barracos. Apesar de todos os
inconvenientes, um daqueles casebres pode custar até Cr$ 150 mil à vista. O aluguel de um quarto passa de Cr$ 10 mil. Especulação imobiliária até
em favelas? Sinal dos tempos...
É triste ouvir um senhor como o Robertinho, de fala mansa e sorriso aberto, contar que depois de velho virou
maloqueiro. "Mas a vida é assim mesmo", diz ele, conformado e relembrando seus tempos de cantor. Afirma que já cantou no Chão de Estrelas e no
Paraguai e numa dessas noites de boemia teve como parceiro ninguém menos que Nélson Gonçalves. Um outro orgulho: conheceu Ataulfo Alves.
Confessa, entre um sorriso e outro, que gostaria de ter continuado naquela vida de farra. Mas o casamento mudou
sua vida e hoje faz versos para se distrair.
Quantas histórias o pessoal da Vila Alemoa não tem para contar! Muitos causos são tristes, e os homens
tentam esquecer os maus pedaços debruçados em um dos oito botecos que existem junto à Rua Bóris Kauffmann.
As pessoas estão unidas na pobreza, mas não na prática. As forças se dividiram em torno de duas entidades de
representação: a Associação Pró-Beneficente e de Melhoramentos de Vila Alemoa e a Sociedade de Melhoramentos de Vila Alemoa.
A segunda é bem mais antiga e tem seu presidente, José Benevides, o Zé da Jaca, respeitado por ter
conseguido água, médico e merenda para a vila. Vai daí que em 1979 duas chapas concorreram na eleição para escolha da nova diretoria, uma delas
presidida por Zé da Jaca e a outra por Natal Miranda. O primeiro venceu, e o grupo que apoiava o outro decidiu criar uma entidade paralela.
E assim foi. Só que com isso fica claro que a capacidade de barganha diminuiu. Se os moradores não partem, todos
juntos, para a conquista de melhorias, fica bem mais difícil. Sabe como é: se o movimento não for forte e coeso, os políticos e administradores
continuarão a só fazer promessas e a procurar o povo apenas quando precisarem de votos.
A vida está dura e cresce o número de pessoas que procuram na favela um canto para morar
Desfavelamento não sai do papel
Quem não se lembra? Ao assumir o cargo, o prefeito Paulo
Gomes Barbosa fixou como prioridade máxima de seu governo a melhoria das condições de vida dos habitantes de baixa renda.
E não deixou por menos: seis meses depois lançou um projeto, em regime de urgência, objetivando o desfavelamento
da Vila Alemoa, Vila Gilda e Vila Progresso. A polêmica não poderia ser maior, pois o investimento envolveria exatamente Cr$ 2 bilhões 419 milhões
e 560 mil, de acordo com os cálculos da época (agosto de 1980).
Esse presente que Barbosa deu a si mesmo quando completou seis meses de gestão deu muito o que falar. Os
vereadores ficaram simplesmente atormentados diante dos números do projeto, coisa sem precedentes na história de Santos.
Na época, tudo parecia certo e definitivo. O prefeito vivia falando nesse tal desfavelamento utilizando três
segmentos abertos pelo Banco Nacional da Habitação (BNH): o Programa de Erradicação de Sub-habitações, o Promorar e o Programa de Lotes
Urbanizados (Profilurb). Mas, o que mudou de lá para cá, se não o tamanho das favelas, que ficaram muito maiores?
E é bom frisar que muitos favelados, apesar de viverem nas piores condições possíveis, na época se mostravam em
dúvida quanto à perspectiva de mudança. Guardavam um medo bastante justificável: muitos conjuntos habitacionais acabam se transformando em uma
imensa favela. São construídos com material de péssima qualidade e não garantem o teto seguro que todos procuram.
Insalubridade por insalubridade, muita gente se mostrava disposta a continuar na favela. Pelo menos, não teria
que arcar com dívidas para o resto da vida.
Agora ninguém mais pensa nisso, porque tudo indica que o desfavelamento não passará de um projeto. As famílias
que vivem sobre o mangue estão mais preocupadas com questões urgentes, como a instalação de creches e postos médicos. Planos bonitos não
interessam. E basta de promessas! |