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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - MALA
O famoso Crime da Mala (2)

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No dia 7 de outubro de 1928, no pátio do armazém 13 do porto santista, a polícia abriu uma mala endereçada a Ferrero Francesco, Bordeaux (França), que seria embarcada no navio Massilia. Nela, havia o cadáver de uma jovem. Feita a autópsia, verificou-se o aborto post mortem de um feto de seis meses. Uma menina. O crime foi assim noticiado na página 3 da edição de 8 de outubro de 1928 do jornal paulistano Folha da Manhã (ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: página 3 do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

Uma aventura interrompida

A mala sinistra

Desembarcada na São Paulo Railway, em Santos, e transportada para um dos porões do Massilia, descobre-se que o seu conteúdo era um corpo mutilado de mulher

A polícia santista se acha empenhada, seriamente, na descoberta de um crime sensacional cujos planos foram engendrados e executados nesta capital.

Trata-se de uma reedição do caso da "Mala Sinistra" que era mais de 2 anos celebrizou Miguel Trade, recentemente condenado a expulsão do território nacional.

Miguel Trade e sua história, são demasiado conhecidos.

O desfecho do drama que sua perversidade fomentou e executou, não fora bastante para um arrependimento.

Depois de uma liberdade que era um prêmio à sua regeneração, a própria justiça que o pusera em contato com a sociedade, se viu obrigada à medida extrema de sua expulsão.

Foi uma nuvem que passou.

São Paulo jamais poderia pensar na reedição de semelhante tragédia, quando ontem, em Santos, surge uma segunda

"Mala sinistra"

Na estação da Ingleza, fora desembarcada pela manhã a mala que levava a seguinte inscrição "FRANCESCO FERRERO BORDEOS" e que mais tarde era transportada para bordo do Massilia, a levantar feros no mesmo dia.

Um cheiro comprometedor - No local em que se achava a mala, era o ar irrespirável.

Entretanto, pouca gente deu pelo achado.

As desconfianças de um dos funcionários: o conferente do armazém 14, sr. Noé, observara que da mala em questão corria um ligeiro filete de um líquido escuro que mais parecia sangue.

O transporte - Cerca das 13 horas, apareceu na estação da Ingleza um rapaz de cerca de 28 anos de idade, trajando roupa azul, gravata borboleta, chapéu branco, botinas pretas de elástico, pouco bigode, barba raspada, estava regular.

Aí, dirigindo-se ao carregador n. 71, incumbiu-o de fazer o transporte da mala para o cais, o que foi feito no caminhão de chapa 1.549, fretado nessa ocasião para um serviço de seu colega de chapa 69.

Era grande o interesse do desconhecido, proprietário da mala, o qual auxiliava o menor movimento que se fazia com a mesma.

O embarque - Cerca das 14.15 horas, o Massilia atracava ao cais.

O estranho personagem da mala, alvo já dos olhares curiosos, não arredava pé.

Sentado sobre o volume, então já suspeito, sentiu-se como libertado de um grande peso, quando foi a mala transportada para o porão do vapor.

A denúncia - Pouco antes das 16 horas, a Polícia Marítima se comunicava com a Delegacia Regional, pedindo a presença da autoridade a bordo do Massilia.

Para lá rumou o dr. Armando da Rosa, em companhia dos drs. Roberto Catunda e Carlos Hummel, do Gabinete Médico Legal.

É que, ao ser removido o já suspeito volume, se acentuara o cheiro horrível que do mesmo se desprendia, e ainda, com uma agravante - o líquido que era a mais irrefutável das denúncias.

Um cadáver esquartejado - Aberta a mala, na presença das autoridades, foi encontrado um cadáver de mulher, completamente esquartejado.

Sobre os destroços de carne humana se encontravam roupas de uso, sapatos e meias, além de flores artificiais.

O mistério - Em torno do caso paira o mais impenetrável mistério.

Francisco Ferrero, o consignatário da mala sinistra, não foi encontrado a bordo.

Pelo menos, com esse nome, ou pessoa que se relacionasse com o mesmo, nada se constatou.

As investigações - A polícia santista se comunicou com a desta capital, sendo que o dr. Rebello Netto, chefe do Laboratório de Polícia Técnica, do Gabinete de Investigações, seguiu para a vizinha cidade, onde vai dirigir as pesquisas.

Uma prisão - Durante a confusão, foi preso a bordo um passageiro de 3ª classe, José Ferreira, de nacionalidade portuguesa, contra o qual recaíram algumas suspeitas.

Verificou-se logo, porém, serem as mesmas infundadas.

Às 17 horas, o Massilia, sem outra novidade, deixava o porto de Santos.

Prossegue a polícia nas investigações, que se estendem a esta capital.

Uma pista - Entre os objetos e peças de vestuário encontrados no interior da mala, é de se salientar um lenço com a inicial "R", bordada.

Em torno desse particular corria em Santos o boato de que não se devia abandonar a possibilidade d estar, de novo, Miguel Trade envolvido em uma façanha igual à que o celebrizara.

Teria entrado no país, clandestinamente, onde deixara sua noiva, Rosa de tal, e querendo levá-la consigo, consumara aquele crime.

A inicial "R" é bastante significativa e justificava, em parte, o boato.

Na edição do dia seguinte, 9 de outubro de 1928 o mesmo jornal Folha da Manhã destacou o tema na primeira página e nas páginas 8 e 9:


Imagem: primeira página do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

Os grandes crimes

Mais sanguinário que as próprias feras!

Um indivíduo estrangula a esposa, retalha o cadáver e encerra-o numa grande mala de viagem – Com que inaudita ferocidade o desumano reeditou o Crime da Mala

As visões do Apocalipse não foram simplesmente o tormento de uma fantasia oriental que o misticismo desorientara em Patmos. As cenas horrorosas desse vidente vão sendo traduzidas em fato pelo homem moderno. Sempre, o ódio, a vingança, a crueldade, o cinismo, transformaram-se nos cinco dedos do homem assassino, que se crispam no punhal mais afiado, no revólver mais certeiro, para matar com requintes de demônio incubado no corpo humano, a primeira vítima da sua fúria.

S. Paulo,que ainda há pouco teve uma recordação apavorante do inesquecível "Crime da Mala", ao ver em liberdade Miguel Trad, vem desde ontem sendo abalado, violentamente sacudido por essa reedição da sangrenta execução de Farhat. Repete-se a tragédia com os mesmos pormenores da outra. O discípulo guardou bem a lição do sírio tenebroso e a executou, superando o mestre em perfeição de técnica e de crueldade. Deveria ter sido criança esse monstro de agora, quando Trad espantou o mundo com a sua ferocidade de estrangulador, para que em sua imaginativa se fixassem tão profundamente os pormenores do velho crime. Seguiu os meandros deixados pelo predecessor no requinte da impiedade, avançando um pouco mais no quase êxito da empresa macabra.

Nada o demoveu da sua tentativa: lutou com a vítima; dominou-a violentamente; estrangulou-lhe a vida na garganta em convulsões espantosas a que assistiu com procurada volúpia; cerceou-lhe as articulações; forçou o tamanho da estatura; esquartejou-a para que coubesse na pequenez da mala escolhida. Acompanhou-a até Santos; velou como um cão de fila a presa até os últimos momentos. A carne putrefata tresandava horrivelmente; o sangue manchava o pavimento, a denunciar o crime. Ninguém suportava a exalação espantosa e, entretanto, o monstro velava, assentado sobre o caixão da vítima. Só desapareceu, quando a boca enorme e escura dos porões do Massilia tragou a carga tormentosa.

A mão, porém, da Justiça, impeliu para a luz da vida o fardo tenebroso que os punhos assassinos do facínora tentavam sepultar nos abismos insondáveis do Atlântico. Num momento, os homens todos estremeciam ante o horror do achado apocalíptico e como que arrastados pelo horror do crime, puseram-se em diligências para a captura do monstro, para a completa elucidação da monstruosidade inacreditável.

Entre José Pistone e Miguel Trad há um pormenor de crueldade que diminui a figura horrível do matador de Faraht para avultar o perfil hediondo deste facínora moderno: aquele estrangulou um homem que pôde sustentar combate, que pôde oferecer defesa e só baqueou porque a traição o venceu; este, esquartejou um corpo quase inerme de moça, que nunca teria podido opor-se ao desgraçado senão impulsionada pelo instinto violento da conservação da vida. Matou como um covarde, como um vilíssimo sicário que levou a sua infinita ruindade na fraqueza de um corpo de mulher.

Trinta anos, o máximo da penalidade que lhe pode aplicar a lei brasileira, não representam nada para tamanho cinismo. Seria necessário reeditar também a Idade Média e,superando aqueles mestres dos requintes vingativos da Inquisição, preparar a José Pistone o máximo que nos pudessem fornecer todos esses velhos tormentos aperfeiçoados e sintetizados num só, num único apenas. – Quem poderá imaginar o que haveria de ser? Só o próprio assassino, porque igual a si mesmo, só ele próprio. A Mão que paira acima das cabeças desnorteadas dos homens saberá colhe-lo entre os seus dedos inexoráveis e nessa palma, da qual nenhum monstro ainda escapou, encontrará mais este a vingança de que se tornou réu satânico, infernal.


O criminoso José Pistone

Imagem: detalhe da página 1 do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

As primeiras informações – A divulgação da notícia de que em Santos havia sido descoberta uma mala de viagem, dentro da qual existia, mutilado, o cadáver de uma mulher, que estava para ser embarcada para bordo do Massilia, despertou no espírito público, como é fácil de imaginar, intensa curiosidade. A extraordinária coincidência de detalhes desse acontecimento com os daquele que passou à história com o nome de "Crime da Mala", e que tanto celebrizou a esquisita figura de Miguel Trad, contribuiu grandemente para que todas as atenções se voltassem ao noticiário dos jornais, em que vinham as primeiras diligências efetuadas pela polícia do vizinho porto de mar.

Sendo o único jornal da manhã, que circula às segundas-feiras, a este coube, em primeiro lugar, pôr a população de S. Paulo a par do que se tinha passado em Santos e do que estava fazendo a nossa polícia. Tanto assim que a nossa edição de ontem foi consideravelmente aumentada em sua tiragem, havendo entre os pequenos vendedores de jornais verdadeira disputa, por serem os primeiros a arrebatar das mãos dos nossos empregados os pacotes da Folha da Manhã, destinados à venda. Logo depois saíram outros jornais, que tiveram igualmente grande procura, sendo de notar-se que foi a Gazeta que publicou as primeiras fotografias, mostrando pormenores do que fora a perversidade com que agira o criminoso.

Às derradeiras horas da tarde, a reportagem da Folha da Noite conseguira, ao cabo de um dia de trabalho intenso e profícuo, assenhorear-se de preciosas informações, colhidas em fontes diversas, mas todas seguras. Foi assim que, tendo cabido, como dissemos, à Folha da Manhã divulgar em primeiro lugar o fato, coube à Folha da Noite ser o primeiro jornal a espalhar por todos os cantos da cidade, em linhas gerais, a descrição de como se passaram os fatos, desde o momento em que fora adquirida a mala sinistra, até àquele em que a polícia se viu convenientemente armada para deitar mãos ao bárbaro e desumano indivíduo, que acaba de escrever o seu nome de forma indelével e impressionante nos anais da criminologia.

Os trabalhos da técnica policial – Uma das primeiras providências tomadas, ontem, pela polícia, foi enviar para Santos o dr. Rebello Netto, diretor do Gabinete de Técnica Policial, o qual fez a sua viagem de automóvel, pela estrada de rodagem, levando em sua companhia pessoal especializado, inclusive fotógrafo que, no necrotério do Saboó, apesar do mau tempo que então reinava, conseguiu bater algumas chapas, reproduzidas, hoje, em nossos clichês.

O dr. Rebello Netto deu início ao seu trabalho pouco depois das dez horas, no necrotério daquela necrópole, sendo nisso auxiliado pelos drs. Roberto Catunda e Hugo dos Santos Silva, médicos legistas da delegacia regional de Santos.

Um quadro horrível – A abertura da mala e o exame dos pedaços do cadáver atraíram ao cemitério santista elevado número de curiosos, que a polícia mal pôde conter, estabelecendo, para isso, à porta do cemitério, um cordão de isolamento de maneira que, no local onde os técnicos da polícia trabalharam, apenas tiveram entrada os funcionários da delegacia regional e os representantes da imprensa.

Aberta a mala, foi horrível o espetáculo que aos curiosos se deparou. Sobre o mármore frio de uma mesa puderam eles ver o cadáver disforme e arroxeado da infeliz vítima, mal coberto por um pano de cores vistosas. Ao lado, a mala sinistra, que era de couro amarelo e estava toda forrada de papel por dentro. Dentro dela, um sem número de objetos, principalmente de pequena valia.

Entre os objetos que se viam na mala, notavam-se uma caixa de pó de arroz Coty, um vidrinho com pastilhas higiênicas, uma seringa, um vidro de extrato, um cobertor de lã, um lençol de linho, um travesseiro sem fronha, com os fundos verde e amarelo, uma almofada, uma porção de retalhos de fazenda e peças de vestuário.

O cadáver nada mais apresentava de vestuário, além de um pequeno colete de lã, que agasalhava apenas o busto, e uma camiseta de tricô. Calçava meias de seda, sustentadas abaixo da curva da perna por ligas de elástico, sem enfeites.


A mala trágica com o seu precioso conteúdo

Imagem: detalhe da página 1 do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

A propósito da necrópsia – Um detalhe surpreendente que desde logo impressionou os que se encontravam ao lado dos funcionários da polícia, por ocasião da necropsia, foi o que os médicos legistas assinalaram. É que a desditosa vítima da emocionante tragédia estava grávida de quatro ou cinco meses, tanto assim que durante a noite, dentro da mala, o feto fora expelido, naturalmente. Os médicos o encontraram ao lado do corpo, logo que procederam à abertura da mala.

Sobre esse pormenor tivemos oportunidade de conversar, à noite, com o dr. Rebello Netto. Este técnico achava que o caso, não só pelas circunstâncias particulares da forma por que se revestiu, como por outras razões, à perícia médica se afigurava dos mais interessantes. Acrescentou-nos então que a causa-mortis deveria ter sido a asfixia, provocada por um pequeno movimento de mão, que não chegara a deixar vestígios exteriores no pescoço. A peritagem concluíra desde início por tal causa, mas não encontrou internamente sinais que comprovassem as suspeitas. É que os tecidos e os vasos sanguíneos nada indicavam que pudesse confirmá-las. E como desejássemos saber de que forma entendiam os peritos que fora produzida a asfixia, respondeu-nos o dr. Rebello Netto:

- Esta pergunta foi objeto de cuidadoso exame dos peritos, que afinal, por exclusão, concluíram por um movimento de mão criminosa, apertando o pescoço, apesar da falta de caracteres exteriores.

Observou ainda o dr. Rebello Netto o fato de oferecer grande fragilidade a ossatura da vítima que, apesar da idade, ainda apresentava aquele tecido em muitas regiões na sua forma cartilaginosa.

Com relação ao feto, informou-nos o dr. Rebello Netto que ele estava no seu sexto mês de gestação.

Inquérito no Massilia – Não foram só as polícias de São Paulo e de Santos que se empenharam na descoberta do estranho caso. O comandante do Massilia, segundo a Cia. Chargeurs Réunis, proprietária daquele vapor, comunicou ao dr. Armando Ferreira da rosa, procedeu a uma rigorosa enquete a bordo do vapor, no intuito de auxiliar os trabalhos de investigação que deveriam ser feitos.

Acrescentava a informação que o inquérito promovido pelo comandante do vapor constava de várias peças, entre as quais numerosas declarações prestadas por passageiros, principalmente da terceira classe, visto como era nessa que deveria ser transportada a mala sinistra.

A polícia em Santos e em São Paulo – Ao mesmo tempo em que o dr. Armando Ferreira da Rosa, delegado regional de Santos, informado de tudo o que se passara a bordo do Massilia, empregava toda a sua atividade no descobrimento do misterioso condutor do volume sinistro, aqui em São Paulo o Gabinete de Investigações espalhava por onde lhe parecesse necessário os seus auxiliares, no sentido de alguma coisa apurar, que pudesse servir de auxílio aos trabalhos da polícia santista, ou que viesse desfazer todas as dúvidas que pairavam em torno do caso.

Quem assumiu a direção das investigações foi o dr. Carvalho Franco, porque a essa autoridade é que está confiada a delegacia de Segurança Pessoal.

Um diálogo – Depois que a Folha da Manhã começou a circular, não raro pelas ruas se encontravam grupos de pessoas que, diante do impressionante fato, não se continham e paravam a comentar, a dar uma opinião, a pedir uma explicação. Exatamente de um desses leitores é que partiu o fio da meada que a polícia, ao cabo de algum tempo, conseguiu desfazer, com muita felicidade. Foi no Largo Paysandú.

Um ex-inspetor de segurança, que por ali passava, ouvindo dois indivíduos estranhos a conversar com o jornal na mão, e com ares de que se achavam muito preocupados com que liam, recordou-se dos seus velhos tempos e sentiu de novo pruridos de Scherlock. Aguçou melhor o ouvido, olhou de um lado para outro, como que não quer nada, e muito sorrateiramente se foi aproximando dos dois desconhecidos. De repente sorriu. É que lhe chegara aos ouvidos uma frase que, ele bem sabia, dizia tudo:

- Veja você. E fui eu que vendi esta mala…

Tendo já perdido o hábito de descobrir crimes e de apanhar criminosos, o velho inspetor de segurança fez o que na gíria policial que bem conhece, se chama uma "mancada". Em vez de seguir o indivíduo ou mesmo de o deter, o antigo inspetor, precipitado, partiu como uma bala rumo ao Gabinete de Investigações, onde entrou afobado, a contar o que tinha ouvido. Só não disse, porque não sabia, quem era o vendedor da mala, e onde poderia ser encontrado.

Onde a mala foi vendida – Mas não teve grande importância a gafe praticada pelo antigo agente de polícia. A diligência da autoridade policial que estava presidindo ao inquérito e os esforços ingentes de seus auxiliares supriram perfeitamente a falha do desajeitado sherlock. Diante dessa interessante informação, o dr. Carvalho Franco mandou que seus investigadores percorressem as fábricas de malas da cidade, indo em primeiro lugar, e de preferência, àquelas que ficavam nas imediações do local em que os dois desconhecidos indivíduos estiveram palestrando sobre o caso narrado pelos jornais. Algumas horas depois, graças a esse expediente, estava a polícia informada de que a mala encontrada em Santos, contendo o cadáver de uma mulher e a seu preço, fora adquirido na fábrica instalada na Avenida S. João nº 111.

A compra da mala – Quem esteve na referida fábrica de malas, a semana passada, e aí a comprou, foi o próprio indivíduo que a transportara daqui para Santos e em cujo encalço andava a polícia. Ele entrou na casa com muita naturalidade, fez com que lhe mostrassem várias malas de viagem, e escolheu aquela, cujo preço pagou, ordenando que a remetessem imediatamente para a Rua Conceição nº 31, 3º andar, apartamento 5. Isso na quinta-feira, à tarde. Horas depois, de acordo com o que tinha prometido, o estabelecimento mandou um dos meninos que tem a seu serviço levar o objeto comprado ao lugar determinado pelo freguês.

O menor que se encarregou desse trabalho conta que ao chegar já encontrou à sua espera o comprador, o qual, abrindo-lhe a porta do apartamento, evitou que ele entrasse, recebendo a mala à entrada e dali mesmo despachando-o, depois de lhe haver posto na mão, como propina desse trabalho, uma moeda de quinhentos réis.


A mala

Imagem: detalhe da página 1 do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

Os moradores do apartamento – O prédio n. 34 da Rua da Conceição é de três andares e explorado como casa de apartamentos. Moram lá várias famílias e rapazes solteiros. A guarda da casa está confiada a vários empregados do proprietário, estando encarregado dos serviços da portaria o indivíduo Francisco José Ferreira, que, em virtude das suas funções na casa, pôde prestar à polícia informações que serviram para melhor orientar as diligências.

O apartamento n. 5, do 3º andar, para onde deveria ter sido enviada a mala, como de fato foi, está, há tempos, alugado ao sr. Ramiro Franco, que ali reside em companhia de sua mulher, d. Maria Sitrangulo de Oliveira. Foi esse casal que, há coisa de um mês, alugou a sala onde afinal veio a ser perpetrado o crime horroroso que ontem empolgou a cidade e está agora completamente esclarecido. E quem a tomou de aluguel foi o indivíduo José Pistone, empregado no comércio.

A prisão do criminoso – De posse dessas informações, estavam as autoridades policiais, já então fortemente esperançadas do esclarecimento do crime nos seus mais pequeninos detalhes, à procura de José Pistone, quando um outro pormenor sobre este lhes chegou ao conhecimento. É que José Pistone tinha aqui em São Paulo um parente: José Perrotti, residente à Rua Barra Funda, 88.

Para lá partiu imediatamente uma pessoa, a sindicar do paradeiro daquele personagem. Informando-se então de que realmente José Pistone era relacionado por laços de parentesco com o sr. José Perrotti e àquela hora deveria estar na Rua Ypiranga, n. 30, na Pensão Grasso, cujo proprietário é seu amigo, para lá se dirigiu o auxiliar da polícia, onde encontrou o morador da sala alugada no apartamento n. 5, do prédio da Rua da Conceição n. 34. Foi então efetuada a prisão do indivíduo procurado, o qual exatamente nesse momento estava a tomar uma automóvel, em companhia do proprietário da pensão.

Uma vez transportado para o Gabinete, e apresentado ao dr. Carvalho Franco, àquela autoridade Pistone declarou ser efetivamente o assassino da mulher, que era sua esposa, cujo cadáver pretendera transportar na mala apreendida em Santos.

O criminoso e a vítima – José Pistone é italiano, natural da cidade de Canelli, conta 28 anos de idade, mede 1 metro e 68 cm de altura, tem olhos azuis e cabelos castanhos. É filho de Carlos Pistone, morador até agora em sua terra natal. Esteve algum tempo em Buenos Aires, e de lá chegou recentemente, trazendo em sua companhia sua esposa, que se chamava Maria Féa Mercedes, era loira, tinha 21 anos de idade, magra, de estatura regular. Como seu marido e assassino, Maria Féa era italiana. Eles tinham se casado na Itália.

A polícia e a reportagem – Tendo até ao momento da prisão de Pistone guardado o mais rigoroso sigilo a respeito das investigações a que vinha procedendo – o que não impediu que a reportagem da Folha da Noite lograsse, lançando mão dos recursos ao seu alcance, inteirar-se minuciosamente do que a polícia vinha fazendo, nem tampouco que o crime fosse por ela noticiado em todos os pormenores – uma vez recolhido à sua guarda o bárbaro assassino aquela autoridade permitiu que os representantes da imprensa junto à sua delegacia pudessem inteirar-se de tudo aquilo que já havia sido divulgado pela nossa companheira da noite, e dos detalhes por escassez de tempo os nossos auxiliares não haviam conseguido obter.

As declarações do criminoso – As declarações do criminoso foram assim prestadas em presença das reportes dos diversos jornais da capital.

Pistone falava de uma maneira mais ou menos agitada, tendo um tique nervoso que o fazia constantemente levar as mãos à boca, cujo lábio superior se arrepanhava levemente. Expressava-se mal em português, tendo falado quase que só em italiano.

Assim mesmo, interrogando-o com paciência, conseguimos, pouco a pouco, que ele nos contasse a sua história toda.

A vinda para a América – Casando-se na Itália, logo depois resolveu vir para a América, tentar fortuna, como tantos dos seus patrícios. Escolheu para ponto de suas atividades a capital da Argentina, tendo lá chegado com algumas economias, que montavam a 40.000 liras italianas.

Lá, porém, a sorte, ao que declarou, não lhe foi favorável, visto como, ao cabo de algum tempo, sem que tivesse grande trabalho, constatou que a sua pequena fortuna estava reduzida quase que à metade, pois que só  lhes restavam 22.000 liras de todo o dinheiro que trouxera de sua pátria. Resolveu também, de acordo com sua esposa, tentar novas terras.

Embarcou então para o Brasil, aqui chegando em meados de julho deste ano, indo hospedar-se no hotel d'Oeste.

Não ficou, porém, muito tempo naquele estabelecimento. Desejoso de ter na realidade um lar, ou pelo menos uma residência onde pudesse estar mais à vontade, José Pistone alugou a sala do apartamento da Rua Conceição.

Conseguiu então colocar-se na Casa Pistone, naquela mesma rua, n. 58, onde trabalhava já há algum tempo, estando ao que parece muito satisfeito.

Uma rusga do casal – Logo que foram morar na Rua da Conceição, Pistone entregara à esposa 15.000 liras, que era o que restava de suas economias, com as quais pretendia mais tarde fazer um peculiozinho. Dias depois, tomando a resolução de depositá-las na casa onde trabalhava, pediu o dinheiro à esposa. Esta, meio contrafeita, das 15.000 liras só lhe trouxe 12.000, dizendo que certamente perdera o resto. Interrogada com aspereza pelo marido, Maria Féa nada adiantou sobre o destino das 3.000 liras.

A questão ficou nesse pé. Mas no espírito de Pistone uma pequena desconfiança ganhava terreno. Que teria feito a esposa do dinheiro desaparecido?


Imagem: página 8 do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

O crime – Quinta-feira passada, mais ou menos às 11,30 horas, deixou o trabalho, encaminhando-se para sua casa, com a intenção de ir buscar a esposa para irem almoçar, como era de costume, num restaurante das proximidades.

Acabava de abrir a porta do quarto que ocupava naquele apartamento, quando um homem saltou da sua cama, onde estava ainda deitada sua mulher, e escapuliu pela escada abaixo, sem que ele, atônito, pudesse fazer o menor movimento.

Em seguida, sua esposa, sem que ele nem sequer a interrogasse, pôs-se a gritar que não tinha culpa, chorando copiosamente.

Alucinado – é ele ainda quem o narra –, sem calcular o que fazia, atirou-se sobre ela, ainda na cama, e estrangulou-a. Em seguida, procurando acalmar-se, fechou a morta e, deixando-a sem vida sobre o leito, partiu para o escritório, trabalhando até tarde.

Acabado o seu serviço diário, foi à casa de malas, fez a sua compra, e foi esperá-la em casa. Recebeu-a, tornando a sair imediatamente.

Uma noite em claro – Nessa noite, segundo acrescentou, não pôde dormir. Não voltou para casa, tendo ficado a passear pelas ruas da cidade, até que rompesse o dia.

Era sua ideia, disse ele, suicidar-se, acompanhando sua esposa na morte.

Na sexta-feira foi trabalhar, permanecendo o dia todo fora de casa.

Voltando, à tarde, é que tratou de dar execução ao plano que arquitetara quando comprou a mala. Cuidadosamente meteu dentro dela o corpo já frio e rijo de sua mulher. Como, porém, devido à rigidez cadavérica, ele não pudesse entrar na mala, lançando mão de uma navalha, José Pistone seccionou-lhe as pernas, na altura dos joelhos.

Isto feito, tornou a sair de casa, passando de novo a noite em claro.

Só no sábado à noite é que, chamando um carregador, contratou com ele a condução da mala para a estação da Luz, onde ela deveria ser despachada para Santos.

A mala foi levada até aquela estação no autocaminhão n. 716, de propriedade do chofer Vicente Caruso.

Em Santos – Chegado à vizinha cidade, José Pistone deixou uma valise, que levara consigo, num café próximo à estação, ficando a perambular pelas ruas – pois, disse, desde que praticara aquele crime, o sono o abandonara por completo.

No dia seguinte pela manhã, domingo, tratou de voltar à estação, a fim de retirar a mala. Foi então que ele chamou os carregadores ns. 69 e 71, a fim de que eles efetuassem o transporte para bordo do Massilia, pois que o despacho já estava completamente regularizado nos escritórios da Chargeurs Réunis, tendo Pistone disposto tudo de maneira a que nenhum empecilho viesse impedir a marcha regular dos seus planos.

Depois que a mala foi levada para bordo, ficou ele ali no cais. Disse que era sua intenção esperar que o vapor partisse, a fim de se atirar ao mar.

A volta da mala para terra – Foi, porém, enorme a sua surpresa, quando viu que, depois de um grande corre-corre pelo cais, a mala era de novo trazida para fora, sendo imediatamente cercada por grande número de curiosos.

Acercou-se também, esperando pelo que ia acontecer.

Viu chegar as autoridades e viu quando a mala foi aberta.

Assistiu à sua retirada da mala e consequente remoção para o cemitério do Saboó.

A volta para S. Paulo – Acompanhou de perto as diligências da polícia santista, sendo que só ontem, às 16 horas, lembrando-se de que tinha aqui em São Paulo muitos negócios a tratar e vários documentos que deviam ser enviados à sua família, voltou para esta capital, pela estrada de rodagem, tendo contratado um automóvel pelo preço de 200$000.

Esse automóvel foi deixá-lo na casa n. 30 da Rua Ypiranga, onde reside um seu amigo, de nome Grasso, proprietário daquela pensão.

Entregou-lhe todos os documentos que possuía, bem como o recibo do depósito de 12.000 liras que estavam na Casa Pistone, da qual ele era empregado.

Disse que sua intenção era suicidar-se. Foi porém impedido pela chegada da polícia, justamente na ocasião em que saía para um automóvel, a fim de chegar até ao Rio Tietê, onde pretendia afogar-se.


A fábrica situada à Avenida São João onde foi adquirida a mala sinistra

Imagem: detalhe da página 8 do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

Suspeita infundada – Como é natural das ocasiões como esta, levantam-se a propósito de tudo as mais absurdas suposições. Ontem ainda, diante de um caso tão misterioso e ao mesmo tempo tão interessante, sob todos os pontos de vista, não houve quem não tivesse a sua pouquinha de dúvida, que não levantasse esta ou aquela suspeita. Uma tinha a justificá-la toda uma longa série de coincidências. Era a que admitia a possibilidade de ter esse crime sido praticado pelo mesmo autor do primeiro, registrado em idênticas circunstâncias pela nossa polícia. Assim foi que o nome e o caso de Miguel Trad vieram com muita insistência à baila.

Não se sabe bem de onde, nem quando, o certo é que apareceu e divulgou-se logo a informação de que entre as pequeninas peças de roupa encontradas na mala, uma havia trazendo a inicial "R". Ora, a pobre moça com quem Miguel Trad, saindo da cadeia e dando expansão a todos os seus vícios, afinal se casara meses atrás, chamava-se Rosa. Daí o ter muita gente admitido que o estrangulador de Farah tivesse regressado sub-repticiamente lá do estrangeiro para onde foi deportado, e aqui tivesse perpetrado, desta vez contra sua própria esposa, um novo e bárbaro crime, em tudo semelhante ao primeiro.

Mas essa hipótese não deu muito trabalho à polícia, porque a argúcia do antigo sherlock não tardou a pôr as autoridades no caminho exato do criminoso.

Outra suspeita – Falou-se também em que a vítima da ferocidade do então desconhecido criminoso não era outra senão uma pobre moça, que ganhava a sua vida trabalhando como corista da Companhia Velasco, atualmente nesta capital. E isso, porque todos os traços fisionômicos dados pelas informações coincidiam perfeitamente comos da corista referida. A polícia chegou a impressionar-se com a coincidência e a dar ouvidos às sugestões apresentadas neste sentido. Tanto assim que andou a investigar, mandando ao Teatro Santa Helena um de seus auxiliares, ao mesmo tempo em que outros, lá em Santos, tratavam de se informar a respeito no Coliseu Santista. Mas nem aqui nem lá lograram os agentes informes que valesse a pena prosseguir nas indagações.


Autoridades, curiosos e mala sinistra

Imagem: detalhe da página 8 do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

A fechadura da mala – Em Santos tudo quanto pudesse de alguma forma ter relação com o fato merecia cuidadoso exame e profundas reflexões, tanto dos funcionários da polícia, quanto dos repórteres e até mesmo do povo em geral. Não escapou a lides perseguidas, por exemplo, a fechadura da mala, em que se encontrara o cadáver.

Examinada detalhadamente a mala, não faltou quem desse logo por uma coisa estranha: é que a fechadura não era provavelmente a que tinha sido colocada pelo fabricante na referida mala. É de metal amarelo, forte, e já usada, e por consequência – concluía-se, a mala não poderia ter sido adquirida recentemente. Demais, a fechadura, segundo afirmavam todos os técnicos entendidos em fechadura, era de pura e legítima fabricação americana.

Mulher estrangeira… Fechadura americana… Não se trataria por acaso de um crime de que houvesse sido vítima uma senhora de nacionalidade americana e que porventura estivesse faltando na colônia dos Estados Unidos domiciliada em São Paulo? Essa pergunta andou por muitas bocas e ficou como outras, mais ou menos assim, sem resposta nenhuma, até a noite, quando, afinal, de tudo se veio a saber.


O prédio n. 34, da Rua da Conceição, em cujo 3º andar se verificou a tragédia

Imagem: detalhe da página 8 do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

Uma noite em Santos – Como acima dissemos, entre outras coisas, afirmou José Pistone, nas suas declarações à polícia, que desde o momento em que estrangulou a sua mulher, não pôde mais conciliar o sono e que tem passado as noites ao léu, vagando pelas ruas. Não deve ser verdadeira essa alegação, como várias outras contidas no mesmo depoimento. Contra essa, pelo menos, está a informação de alguns inspetores da polícia santista, que asseguram ter o assassino pernoitado na noite de domingo no Hotel Roma, à Rua São Leopoldo,onde se apresentou como nome suposto de José Rossi. Domingo pela manhã, ao retirar-se do hotel, José Rossi, que outro não era senão o assassino, pagou a importância dobrada pela sua hospedagem.

O chofer que trouxe o criminoso -  O chofer que trouxe o criminoso de Santos para esta capital é um dos mais conhecidos da vizinha localidade. Conduz o automóvel de chapa 848, que faz ponto na Rua Frei Gaspar. Chama-se Firmino de tal e é mais conhecido tanto em Santos como na roda de seus colegas desta capital pela alcunha de "Leão".

Durante a viagem, o chofer nada observou no passageiro de seu automóvel, que lhe pudesse sugerir a ideia do facínora que conduzia. Apenas quando eles passavam por São Bernardo, José Pistone desceu do automóvel e se dirigiu ao restaurante, para comer alguma coisa. Nesse momento, o chofer notou que ele estava visivelmente nervoso. Ignorando porém o que se passava, não ligou maior importância ao caso.


Imagem: página 9 do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

Precauções do assassino – José Pistone, depois que praticou o delito, procurou acautelar-se o mais possível, para evitar que a polícia viesse a descobrir o seu horripilante crime. Assim, por exemplo, procurou aparentar sempre a maior calma possível. E em Santos, tendo de mandar a mala para bordo do Massilia, como se sabe, só o fez 15 minutos antes da hora determinada para a partida do vapor, na esperança de que, no atropelo da hora, o volume sinistro passasse despercebido.

O transporte para bordo – Daqui para Santos, José Pistone, como dissemos, viajou no mesmo trem em que fez transportar a mala. Para despachá-la usou até de um estratagema muito hábil. Para evitar maiores complicações com a estrada de ferro, comprou para si uma passagem de primeira classe e uma poltrona das que se usam em determinados trens daquela estrada. A sua passagem tinha o número 4276. Apresentando essa passagem, com esse número apenas conseguiu ele fazer despachar a mala, sem ser necessário prestar à estrada outros esclarecimentos. Era um passageiro e a mala o acompanhava.

Em Santos, José Pistone chamou o carregador n. 69, que se chama Lucas Corrêa, bem como o de n. 71, Albino Francisco de Oliveira, e os dois transportaram a mala para fora da estação, onde chamaram um caminhão, de n. 1549, que se dirigia ao cais. Nesse caminhão Pistone fez a viagem, sempre acompanhando a sua mala, sentado ao lado do chofer.

Quando chegou ao cais, puxou da sua carteira e tirou uma cédula de 50$000, que deu aos carregadores para trocarem e se pagarem do serviço efetuado. Em seguida, dirigiu-se a uma loja da Rua Xavier da Silveira, onde adquiriu certa quantidade de corda, com a qual amarrou a mala, de maneira a fazer uma laçada em forma de X.

Como até então o Massilia não houvesse ainda entrado, José Pistone sentou-se sobre a mala e nessa atitude permaneceu até que chegasse o vapor, em cujo porão fez depositar a mala, para o que, subindo só ao navio, lá contratou três indivíduos de nacionalidade russa, aos quais encarregou dessa tarefa.


Dr. Carvalho Franco, delegado de Segurança Pessoal

Imagem: detalhe da página 9 do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

 

No Rio a polícia procede a importante diligência – A Agência Havas entregou-nos ontem, a propósito das diligências efetuadas no Rio de Janeiro pela polícia daquela capital com relação a esse hediondo crime, o seguinte telegrama:

RIO – O caso da mala misteriosa encontrada no porto de Santos, a bordo do vapor Massilia, que hoje chegou na Guanabara, produziu nesta capital a mais viva impressão.

A polícia e a reportagem dos grandes jornais puseram-se logo em grande atividade, procurando, uns e outros, desvendar o crime. Logo que atracou o Massilia e se tornou conhecido o achado macabro, as autoridades cariocas, tendo à frente o quarto delegado auxiliar, dr. Esposel Coutinho, tomaram as providências que lhes pareciam mais convenientes.

Assim é que foram detidos para indagações os passageiros romenos de nomes Estepinan Lizene, Amant Pnteleman, Armand Teramarin, Catharine Juckeliske; o marinheiro Flowey Delphonse e um casal que se destinava à Europa e que pretendia descer no rio, ele brasileiro, de 38 anos de idade, e de nome Francisco Ramos de Azevedo, e ela Blanche Hamard, de 40 anos, francesa.

Esse casal tornou-se suspeito à polícia por destinar-se a Bordéus, para onde também se destinava a mala macabra, e não haver dado explicações satisfatórias sobre o motivo que determinava a sua resolução, desembarcando no Rio.

Levado para a polícia também o casal, foram todos eles interrogados detidamente. Os romenos fizeram as seguintes declarações, que foram traduzidas por um intérprete:

"Um indivíduo moço ainda, bem vestido, muito claro e que parecis estrangeiro, estava acompanhado de uma mala à qual ligava especial atenção, falando com o chofer do auto transporte, em que viajara de S. Paulo para Santos, tendo combinado o preço do transporte da referida mala.

No porto, chegou-se ao motorista e mandou levar a mala para bordo. No navio, ao fazer o comissário a conferência da carga, achou a mais a mala com letreiro – "Ferrero Francesco" – e mandou que a levassem novamente para terra. Assim foi feito. Ao ser o volume colocado no cais, as pessoas que se achavam próximas começaram a sentir mau cheiro. "Esta mala leva carne apodrecida", teriam dito. Foi, então, dado ordens para se proceder a uma inspeção. Aberta a mala, dentro dela foi verificado um corpo de mulher, todo decapitado e com as pernas partidas. Dado o alarme, a polícia foi chamada, mas, quando compareceu, já o Massilia ia saindo".

A família de romenos foi depois desembaraçada pela polícia, tendo continuado a viagem a bordo do Massilia. As autoridades cariocas que procedem ao inquérito estão convencidas de que os romenos falaram a verdade e consentiram em permitir que a mala misteriosa fosse, com sua bagagem, por lhes serem dado uma gratificação em Santos e lhes garantirem que, em Bordéus, encontrariam a pessoa a quem entregassem aquele volume.

O marinheiro Flowy também foi libertado, voltando a bordo do seu navio, à tarde. Ele disse aos jornalistas, que o procuravam ouvir, o seguinte:

"Começava a entrada de bagagens par o porão – falou Flowy – quando, ao subir uma das lingadas, dela se desprendeu uma grande mala que foi bater no fundo do navio. É sempre mau presságio arrebentar a lingada, para nós outros, homens do mar. Quando não é contrabando, traz sempre um dia de azar a bordo. E continuou: - a mala era de grande resistência, estava cuidadosamente fechada com todas as presilhas de ferro mas, apesar disso, tinha em volta uma corda que firmava bem a sua tampa. Ao aproximar-me, senti, no entanto, um cheiro insuportável. Examinei-a, então, detidamente, e vi que de uma fresta, aberta com a violência da queda, escapava um líquido escuro. E era daí que se exalava o mau cheiro.

- E depois?

- A resposta é sabida – respondeu o marinheiro.

Flowy tinha pressa de regressar a bordo, livre já dos incômodos que lhe dera a polícia. Não disse mais nada.

A bordo do Massilia apurou a polícia o que se sucedeu a isso. O navio estava prestes a largar o cais. Daí o desembarque rápido da mala e as diligências apressadas a bordo, não sabendo desde logo a polícia paulista se a mala fora embarcada entre a bagagem dos romenos já aludidos em nossa notícia.

O comandante Charmesson, do Massilia, havia constatado que Ferrero Francesco, nome que se via na etiqueta da bagagem, não era passageiro de bordo.

Encontrava-se já em viagem o Massilia quando a polícia de Santos, nas diligências procedidas em seguida, havia detido o carregador n. 71, das Docas de Santos, chegando, efetivamente, à conclusão de que a mala fora para bordo no meio da bagagem da família romena.

O comandante do navio também foi ouvido pela reportagem, confirmando o depoimento do marinheiro Flowy.

O Massilia largou deste porto ao meio dia.

O casal suspeito que se dirigia a Bordéus e que desembarcou no Rio, composto do brasileiro Ramos de Azevedo e da francesa Blanche Hamard, foi posto em liberdade.


O Massilia, a bordo do qual a mala devia seguir para Bordéus

Imagem: detalhe da página 9 do jornal paulistano Folha da Manhã, de 9 de outubro de 1928

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