ROTEIRO DA INSEGURANÇA - 12
Charge: Rica, publicada com a matéria
Insegurança é reflexo da opressão
(Não se pode separar a questão ambiental do modelo político)
Texto de Manuel Alves Fernandes e Lane Valiengo
I
Estamos todos indefesos. Cercados por gases poluentes que provocam deformações
orgânicas e venenos que contaminam o ar, a água, os alimentos. Convivemos diariamente com a poluição, com produtos tóxicos e explosivos, com
oleodutos que teimam em vazar seguidamente. A destruição deixou de ser apenas uma profecia dos antigos videntes ou maldição dos fanáticos. É a
realidade, a triste e irracional realidade da Baixada Santista, a região mais insegura, perigosa e explosiva de todo o planeta.
Na Baixada, a amostra da condição humana: como sonhar com uma vida melhor e acreditar
nos novos tempos que estão chegando, se permitimos que o nosso cotidiano seja transformado em um autêntico roteiro de horror, de medo, um Roteiro
da Insegurança?
Não basta ficar indignado. Não se trata somente de lamentar e amaldiçoar o perigo que
nos cerca e oprime. E ficar pacientemente esperando que os fins dos tempos cheguem à Baixada, na forma de uma grande e devastadora nuvem tóxica. Ou
alguma explosão em cadeia. Não adianta nada reclamar, denunciar e ficar aguardando que "as autoridades" resolvam os problemas: o fim da insegurança
só depende de nós mesmos, a responsabilidade é de cada um.
Quando se fala na necessidade de proteger o meio-ambiente, não significa apenas que as
árvores devem ser preservadas ou que o despejo de esgoto no Estuário deve ser interrompido, para sempre. E nem que as indústrias instalem os filtros
de proteção em suas chaminés. É muito mais: defender o ambiente, é, antes de tudo, defender a nós mesmos, defender nossos filhos, nossas famílias,
nossos amigos, nossas cidades. Defender, principalmente, a nossa integridade, o direito de cada um ser dono da sua própria vida. E não viver
eternamente como escravo da poluição.
II
A extrema insegurança da Baixada Santista é o reflexo da forma de vida que temos. Ou
melhor, que nos impuseram. Não se pode separar a questão ecológica da situação em que se encontra a população brasileira, os problemas não são
isolados. São as muitas faces da opressão, que juntas refletem o tipo de ideologia que se instalou a partir de 1964, a
ideologia do medo.
Enquanto o País hipoteticamente crescia, destruíam-se recursos naturais e, ao mesmo
tempo, se submetia o povo brasileiro a todas as formas possíveis de insegurança e sacrifícios sem fim. Que iam desde a miséria absoluta até a falta
de democracia. A única preocupação, além da tentativa desesperada de manter o poder, era crescer. Sem se importar com as conseqüências desse
crescimento, como envenenamento progressivo das populações, com as mortes por intoxicação ou explosões, com a anencefalia, a leucopenia e tantas
outras doenças. Sem se importar principalmente com a insegurança.
A necessidade de produção gerou o desprezo à manutenção, às normas de segurança, aos
princípios mais elementares de proteção à saúde dos trabalhadores. E à medida em que essa produção não era acompanhada pela preocupação com a vida
humana e com o ambiente, a poluição começou a sair das fábricas e atingir tudo o que estivesse por perto. Começou a destruir a natureza. Continuou
destruindo o homem. A natureza e o homem não eram importantes, importante era o "progresso".
Só que nunca houve realmente progresso: como falar em progresso quando aqueles que
trabalham, que sofrem todas as conseqüências das péssimas condições de trabalho e da contaminação do ambiente, não têm acesso aos bens que essa
produção gerou?
Enquanto a industrialização cresceu, se firmou, deu ares de potência ao País,
aumentava cada vez mais a legião de miseráveis, de famintos, de explorados, de marginalizados. Os filhos da poluição, os órfãos do desenvolvimento.
III
Só que antes era praticamente impossível falar em poluição. Quem resolvesse denunciar
era considerado quase criminoso, atentado contra a segurança nacional. A segurança humana? Quem se importava?
Até 1983, para a Cetesb, não havia poluição em Cubatão, não havia perigo algum. Assim
como, para o Governo, não existia insegurança, tudo era feito com a "melhor das boas intenções". Assim como não se encontrava nenhum traço de
mercúrio e outros metais perigosos no estuário. Assim como a fumaça de Cubatão não atingia a população de toda a Baixada. O Brasil sempre foi uma
ilha de tranqüilidade, mesmo que os alimentos estivessem contaminados por defensivos agrícolas, pelo Temik, pelo agente laranja. Mesmo que, em
Tucuruí, toneladas de desfolhantes químicos estivessem agindo.
Para completar, uma ameaçadora chuva ácida permanece sobre nossas cabeças. Assim como
durante longo tempo a espada do arbítrio também esteve.
Só que já passamos por todas as situações possíveis e imagináveis de exploração, de
opressão, de privação. Já assistimos todos os exemplos de impunidade - enquanto pequenos furtos nas ruas são punidos com torturas físicas ou
linchamentos, os responsáveis pelo massacre da Vila Socó conseguem ficar livres até do processo contra eles. E quem polui, quem ameaça a vida da
população, continua poluindo e ameaçando.
E assim como chega de mecanismos políticos viciados e opressores, chega de
irresponsabilidade, chega de agressões criminosas ao meio-ambiente. Chega de insegurança. Já passamos muito tempo ameaçados.
Assim como teremos, em breve, um novo modelo político, precisamos de leis, Que a
insegurança seja crime realmente. E punido. Que se possa agir legalmente contra a poluição irresponsável.
IV
Mas para que tudo se modifique, é preciso que cada um assuma a parte que lhe cabe.
Canalizar a indignação que se manifesta através do protesto dos ambientalistas e, agora, trabalhadores, além dos muitos telefonemas de pessoas
revoltadas com as denúncias apresentadas neste Roteiro da Insegurança. Para que esta comunidade tão ameaçada deixe de viver de forma
oscilante, para que nunca mais aconteça uma Vila Socó.
Defender a ecologia é agir politicamente. Não a política de caça aos votos ou troca de
influências, de conchavos e busca por cargos. Não a política superficial que tanto conhecemos. Mas, sim, a política maior, a política da vida. É por
isso que a ecologia está na raiz de todas as questões: sem dar condições mínimas de vida para o povo, não há como falar em normalização democrática,
ideologias, partidos, poder. A única forma de poder aceitável é aquela que existe para tornar a existência dos carentes mais digna, mais leve. Mais
humana.
As leis da evolução natural do homem foram quebradas a partir do momento em que ele
acreditou que o mundo sempre existiu para ser "aproveitado". E aproveitadores não faltaram, buscando o lucro acima de tudo. O lucro financeiro, o
lucro pessoal, o lucro compulsivo. Além de não perceber a insanidade dessa busca insaciável pelo poder e pelo lucro frágil, esqueceram que todos têm
direitos à vida. A velha história do pão repartido.
Quebrando a cadeia da evolução, o homem selou o seu destino, que seria certamente
marcado pela devastação, pela aridez. É pensando em dominar outros homens que se criam armadilhas como a da insegurança: tudo é feito e planejado (e
a poluição da Baixada foi muito bem planejada) para manter as pessoas sempre em estado de tensão. Assim não há discernimento e equilíbrio
suficientes para que se perceba a realidade.
V
Mas, mesmo diante de tantas mentes poluídas, os olhos estão começando a se abrir. A
população hoje recebe outra carga de informação, além de sentir na pele os efeitos do modelo político que tivemos nos últimos 20 anos. A ideologia
do medo está chegando ao fim.
Para terminar com a insegurança que nos assola (e para criar uma nova sociedade) é
preciso que deixemos de ser cúmplices - pelo silêncio e pela omissão - da poluição, da degradação do ambiente.
E deixar de ser cúmplice significa, entre outras coisas, exigir que aqueles que
possuem algum tipo de poder comecem a se preocupar realmente com a insegurança. Que os discursos sejam deixados de lado e a Baixada Santista receba
todos os recursos de que precisa. Tanto para se equipar para o combate a novas tragédias quanto para criar condições de evitar novos incêndios,
novos vazamentos de gás, de petróleo.
Mas a conscientização de cada um deve começar na sua vida diária. No trabalho. Se os
estivadores se recusarem a descarregar produtos tóxicos enquanto não existirem todas as condições de segurança, para eles e para a
comunidade, teremos então a possibilidade de combater a insegurança e evitar a destruição total da região. Se cada funcionário das indústrias de
Cubatão entender que em suas mãos está a tranqüilidade de mais de um milhão de pessoas, e denunciar qualquer irregularidade, desde os habituais
vazamentos até as condições inadequadas de trabalho; se os transportadores de cargas perigosas tiverem a dimensão do perigo que as suas carretas
representam; e se os políticos deixarem de lado o imobilismo, é possível ao menos diminuir o risco que representa cada ponto do Roteiro da
Insegurança.
Mais ainda: a situação só será outra realmente quando cada pessoa se transformar em
fiscal da sua própria Cidade. Defendendo a Cidade contra todas as ameaças, desde políticas até ambientais.
VI
O próximo passo é discutir: o que realmente queremos? Que tipo de vida, de Cidade, de
relacionamento e de políticos queremos?
Esse debate passa pela definição daquilo que precisamos para formar uma nova
sociedade. Se precisamos de tantos produtos químicos, de tanta violência e desrespeito ao ser humano. Se queremos que nossas crianças encontrem o
caos em vez de opções mais saudáveis. Se aceitamos viver sentados em cima de milhares de bombas atômicas e se queremos passar pela mesma tragédia de
Bhopal. Ou pior.
Agora mesmo, em Samaritá, em
Guarujá e na Alemoa, os novos núcleos industriais estão surgindo, em formação. Serão
modelos reduzidos (ou, quem sabe, cópias perfeitas) de Cubatão. A mesma Cubatão que nasceu da insensibilidade,
que cresceu sob a síndrome do desenvolvimento tecnológico sem o acompanhamento paralelo do desenvolvimento social. Para evitar novos
vales da morte, é preciso atitudes coerentes porém ousadas, exigindo que estes núcleos estejam assentados sob o
lema primeiro da segurança e respeito às vidas humanas que certamente neles viverão.
Ao mesmo tempo, é fundamental a revisão de todas as instalações industriais já
existentes. Consertar o que permanece errado, apesar dos riscos evidentes, das muitas denúncias e tragédias.
E para completar, que o Estado - e também a comunidade - tenha acesso e poder de
polícia dentro das engrenagens industriais. Pois uma única fábrica poluidora é assunto para toda a população, afeta a vida de milhares de pessoas.
Assim como, na nova Constituição, que virá certamente, será obrigatório que a questão ambiental seja amparada, de maneira sensível e corajosa.
Só para lembrar: o normal seria que não fosse preciso provar que a poluição existe, é
real e ameaçadora; o ideal seria que houvesse um grande esforço para mostrar que a poluição não é necessária.
VII
O Roteiro da Insegurança termina, mas só nas folhas do jornal. Ele continua
presente a cada minuto, cada segundo. A ameaça é constante e muito pior do que se poderia imaginar.
Planos são anunciados, promessas são feitas. Como sempre. A realidade só deixará de
ser tão amarga e angustiante quando ninguém mais se assustar com nomes como isocianato, hexano, amônia, xileno. Ou anencefalia, leucopenia. E
Vila Socó.
Pois quando isso acontecer, viver na Baixada Santista não será tão perigoso como hoje.
Saberemos então que a sensibilidade e a compreensão ainda existem. E poderemos então pensar no futuro. Não estaremos mais indefesos. Estaremos
livres. |