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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - INSEGURANÇA
Fogo! A Baixada Santista corre perigo? (B-06)

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De 16 de dezembro de 1984 a 1º de janeiro de 1985, o jornal santista A Tribuna publicou uma série especial de reportagens, Roteiro da insegurança, sobre os riscos a que estavam expostos os habitantes da Baixada Santista.

Esta matéria foi publicada no dia 23/12/1984:
 
 

ROTEIRO DA INSEGURANÇA - 6


As lembranças do incêndio fazem parte do cotidiano
Foto: João Vieira, publicada com a matéria

As tragédias na Baixada
(Marcas que o tempo não apaga da memória do povo)

Texto de Kátia Giulietti e Leda Mondin
Fotos: João Vieira e Arquivo

Não é por falta de alerta que tudo pode acontecer. Tem sido dito e repetido diariamente que o Porto, Santos, Cubatão, a Baixada Santista inteira podem explodir a qualquer momento. Há quem desdenhe, não acredite, considere puro exagero e exercício de imaginação falar em uma comunidade inteira virando cinzas e destruição.

Mas a explosão da Baixada é algo tão previsível quanto duas outras tragédias ocorridas aqui mesmo, bem perto: em 1967, vai para os ares um gasômetro da Cidade de Santos, Serviços de Eletricidade e Gás S/A; há poucos meses, Vila Socó é engolida pelo fogo.

A população desconhecia, mas a Cia. Santos bem sabia das precárias condições do reservatório de gás que mantinha bem no meio de uma zona residencial. E o que dizer de Vila Socó? Que dizer dos dutos da Petrobrás? Não é só a casa do vizinho que pega fogo. As vítimas dos sinistros bem sabem.

I

O sol está forte. O tanque cheio de roupa e o bebê, sentado no chão, não pára de chorar. Quitéria enxuga o suor da testa com a palma da mão ensaboada e o rosto acaba ficando mais molhado. Olha para as peças de roupa, para a criança e, à sua frente, vê a colocação de tubulações enormes. À direita do tanque de roupas, os tocos pretos insistem em trazer-lhe à memória a tragédia que não consegue esquecer.

Quitéria Maria da Silva mora na casa nº 243 da Vila São José, em Cubatão. A primeira localizada defronte à Via Bandeirantes, na faixa que o fogo não engoliu. Considera-se escolhida por Deus. "Nasci de novo. Foi um milagre". Mas confessa que tem, agora, uma vida mais triste e uma marca que o tempo não está conseguindo apagar.

Larga a roupa molhada no tanque, segura o bebê no colo e fala daquela madrugada trágica como se ela mesma não acreditasse tê-la vivido. "Senti o forte cheiro da gasolina, mas pensei que pudesse ser o bujão de gás vazando. Estava meia adormecida e só despertei com o vozerio dos vizinhos. Era muito barulho. Gritavam lá de fora pra gente sair. Já deveria ser meia-noite (de 24 para 25 de fevereiro deste ano). Chamei filhos e cunhados. Só meu marido ficou. Corremos para Cubatão (em direção ao Centro). Voltei e vi, já a uma hora da manhã, o fogo e os bujões explodindo. Nem acreditei quando vi meu barraco em pé".

O choro do bebê a traz de volta ao presente e, com ele, o tanque cheio de roupas para lavar. A vida continua. Mas não será como antes. "Tenho muita vontade de sair daqui", diz, desolada. Os olhos se enchem de lágrimas quando tenta responder se conseguirá esquecer daquela noite. "Não dá, não. Às vezes não durmo. Qualquer alvoroço na rua me deixa com medo e penso - meu Deus, é o fogo". Pede licença, pois a roupa suja a espera. Olha para as obras de aterro da área destruída e conclui: "Podem construir as casas em cima da tragédia. Não adianta, ninguém vai esquecer".

II

Depois da tragédia da Vila Socó, provocada pelo vazamento de 700 mil litros de gasolina do oleoduto da Petrobrás, que se incendiaram sob os barracos da favela, das palafitas sobre o mangue, muita gente foi embora. Os sobreviventes da faixa devorada pelo fogo sumiram. Os que lá ficaram (somente os que tiveram seus barracos salvos) não têm notícias daquelas pessoas. Maria das Dores, cunhada de Quitéria, moradora do mesmo barraco, fala com uma certeza impressionante: "Eles podem ter ido embora. Mas não esqueceram. Não somos apenas nós aqui, que olhamos essa área arrasada da vila, que nos lembramos do fogo triste".

Diferente de sua cunhada, que remói as lembranças e fala delas de uma forma até resignada, Maria das Dores revela uma revolta incontida e xinga todo mundo, mostrando descrença em tudo. "O prefeito falou na televisão que morreram 90 pessoas. Foi muito mais. Por que é que querem esconder? E essas casas? Só acredito vendo. As autoridades estão esperando é que a gente esqueça de tudo. E o pessoal da Vila Nova que mora em casa de tijolo? Tinha uns que passavam de ônibus e gritavam: 'Tinha que queimar tudo'. Ah, se eu escuto uma coisa dessa não sai um vivo daqui. Eles pensam que não tem perigo lá também? Eu posso não saber de tudo, mas sei que todas as cidades por aqui podem explodir. E, nessa hora, não vai ser só favelado, não, que vai morrer".

Das Dores perdeu um primo que, por sua vez, perdeu quatro filhos e a esposa. "Quanta gente caiu no mangue! Morreram, e ninguém sabe. Outros fugiram. Minha mãe ficou doente, desde aquela noite do fogo triste. Não pode sentir nenhum cheiro parecido com gasolina". Ela fala e começa a tremer, explica: "Naquela noite não tremi. Nem chorei. Parecia que não era eu que estava ali olhando aquele fogaréu e os botijões explodindo. Hoje é que lembro de ter ouvido gritos. E de um rapaz que disse que ia pegar o dinheiro do seu pagamento, tentar salvar o salário do fogo. E não voltou mais. Naquele dia não tremi. Hoje não posso falar nisso que tremo e me dá uma raiva, nem sei direito do quê".

A jovem cunhada de Quitéria tem uma explicação racional para o fato de o barraco onde mora não ter sido atingido pelo "fogo triste". O barraco vizinho (devorado pelo incêndio) tinha sido comprado poucos dias antes da tragédia. Os novos proprietários pretendiam fazer aterro em toda a sua volta. Tinham jogado aterro entre a sua casa e a de Quitéria. Esse pouco aterro impediu que a gasolina entrasse sob a moradia onde Maria das Dores, Quitéria, filhos e marido dormiam.

III

A tragédia da Vila Socó abalou mais gente do que se possa imaginar. Se para os moradores da Baixada Santista ela é uma lembrança dolorosa, para os moradores de Cubatão deixou verdadeiras neuroses, além da certeza de que segurança é algo que não possuem.

Logo depois do incêndio, o forte cheiro nas proximidades dos tanques da Basan deixou uma população em pânico. Moradores da área saíram de casa de madrugada, só retornando quando não mais sentiam o cheiro. Dois meses depois da tragédia de Vila Socó, o estouro de um transformador na Avenida Nossa Senhora da Lapa levou muitas mulheres para a pista da Via Bandeirantes, chorando e gritando: elas temiam a repetição do sinistro da Vila São José. Em outubro, um garoto de 4 anos incendiou o colchão da cama do barraco número 11, da Travessa Nossa Senhora Aparecida. A primeira reação da população: fugir. O barraco ficou totalmente destruído. Ninguém se queimou. Mas poucos conseguiram dormir. Era o medo da tragédia, novamente.

IV

Quem vem de outro município pode observar que, depois da tragédia, os moradores reagem de forma diferente, bem mais nervosa, a qualquer risco de acidente, por menor que seja. Numa rua movimentada, no centro comercial de Cubatão, dono de um bar sente cheiro de gasolina. Sai de trás do balcão. Olha para todos os lados e percebe que, estacionado em frente ao estabelecimento, um fusca está com vazamento no tanque de gasolina.

O dono do bar entra correndo, pede para ninguém fumar ali perto, pega um balde de água e a joga sob o carro, na guia e na calçada. Fica em frente ao bar olhando quem se aproxima com fósforos ou cigarro aceso, avisando a todos: "Cuidado, esse carro está vazando gasolina". Perde praticamente a tarde toda de seu dia de trabalho. Até que o proprietário do veículo chega e leva o perigo embora dali.

Mais calmo, em seguida explica que, apesar de não residir na Vila Socó, depois da tragédia passou a ter medo de tudo o que possa representar algum risco de incêndio. "Não sei como aquele pessoal pode continuar morando lá. Eu passei de longe, no dia seguinte da tragédia. Não tive coragem de olhar os corpos. Não tive coragem de ver as fotografias dos jornais, nem assistir o que a televisão mostrou. Não perdi ninguém conhecido. Mas pensei em meus filhos e acho até que estou deixando pra eles o meu pavor. E, um dia, quero ir embora. Acho que a cidade ficou triste depois da tragédia. Mas sei também que não adianta ir pra outro lugar. A dor que a gente sente no peito não vai passar, onde quer que a gente esteja".


Vila Socó, um exemplo do que pode ocorrer na Baixada
Foto: arquivo, publicada com a matéria

A noite em que o gasômetro explodiu

"Se eu passar por uma experiência do tipo, de novo, prefiro morrer. Na hora. Pensei que fosse o fim do mundo. Sempre imaginei o fim do mundo sem dor. E estava doendo. Uma sensação horrível. De morte. Pensei que tudo estivesse morrendo. Minha mãe gritava muito. Muito. Ouvia os gritos com nitidez. Achava que ela ia morrer. E que eu também. Apenas esperava a minha hora".

(Uma forte explosão estremece Santos. Labaredas de 100 metros de altura se formam. O céu fica esverdeado. São exatamente 3h03 de 9 de janeiro de 1967. O barulho ensurdecedor é ouvido também em Guarujá e São Vicente. O fogo quebra a escuridão. Medo. Pânico. Incompreensão. Debilidade geral. Estupefação. Assombro. Ninguém consegue despertar do pesadelo. Simplesmente porque não é um pesadelo. Um gasômetro da Cidade de Santos Serviços de Eletricidade e Gás S/A - CSEG -, na Rua Marechal Pêgo Júnior, 114, voou pelos ares).

"As coisas acontecem muito rápido e, ao mesmo tempo, bem devagar, porque se tem noção de tudo. Para a gente, que vive o momento, acontece em câmara lenta. Vi o teto subindo, feito coisa de desenho animado. Só que era real. No instante seguinte eu já me percebi embaixo da cama. Meus pais não conseguem explicar como tiveram exatamente o mesmo reflexo, ao mesmo tempo: puxaram eu e minha irmã (dormíamos todos no mesmo quarto) para baixo da cama. Quatro pessoas embaixo de uma cama de casal. E então só se ouvia o ruído de telhas, paus, tijolos caindo. O mundo desabando. Tudo voou para depois cair. E minha mãe gritando. Sempre. Sem parar. Sensação de impotência. Por que estava acontecendo aquilo? Por que com a gente?"

(Pensamentos confusos na mente de um menino de 11 anos de idade, espremido embaixo de uma cama, à espera da morte. Ouvindo o fim. Hoje, aos 28 anos de idade, Ricardo - que prefere não revelar nome completo - conserva as velhas imagens. Tão claras e precisas que o fazem reviver tudo e sentir a mesma dor).

"Aos poucos meu pai abriu um buraco entre os escombros, por onde, com muita dificuldade, saímos. E, em meio à destruição, bati os olhos num céu forrado de estrelas. Noite bonita? Nossa velha casa não agüentara um vento mais forte, pensava eu, até descobrir que poucas coisas ao redor dela escaparam intactas. Pior: descobri que a morte não perseguia apenas a minha família. Vi homens, mulheres e crianças, vestidos ou sem roupa, correndo desesperadamente. Caindo, esbarrando-se, gritando, chorando. Lutando pela sobrevivência. Cada um para um lado, direções desencontradas, diferentes. Feito barata tonta. Só então soubemos que o gasômetro explodira. Falava-se que o mesmo ocorreria com os outros gasômetros".

(Naquela madrugada, Santos não dormiu mais. Havia cinco reservatórios de gás na Rua Marechal Pêgo Júnior, com capacidade de 1.648 metros cúbicos cada. O acidente fora com o de número 5. Quem garantia segurança? No prazo de quantos segundos os outros gasômetros virariam chamas? A população busca refúgio na praia, o único lugar que ficaria fora da zona de devastação. Era o que se dizia em meio à confusão...).

"Estávamos vivos, inteiros, apesar de tudo. Mas é triste, doído, de enlouquecer mesmo, não saber das pessoas que se gosta. Como estão. Onde estão. Se estão. Nunca mais vimos vários amigos".

(Nas imediações do gasômetro tudo virou ruínas. Estragos de grande monta foram registrados a uma distância de dois quilômetros. O deslocamento de ar provocou o destelhamento de várias casas. Portas e janelas voaram. Paredes racharam. Carros parados se precipitaram uns contra os outros. Até mesmo na orla da praia vidros de prédios se partiram. Não houve vítimas fatais. Pelo menos, essa é a versão oficial).

"Não acredito que ninguém tenha morrido. Impossível. Dos meus brinquedos só sobraram as bolinhas de gude. É terrível ver a sua casa destruída. Não dá para explicar esse sentimento. Recomeçar do nada. Como? Por onde? Sei apenas que, criança ainda, percebi bastante claramente que as coisas materiais não valem nada. Os móveis, a casa. Nada tinha valor. Tudo destroços. O importante era que nós quatro - eu, minha irmãe meus pais - vivíamos. O importante é a vida. Quantos sacrifícios mais serão precisos para que o homem perceba a importância da vida? Precisa acontecer gasômetro, Vila Socó? Quantas mortes mais?"

(Tentou-se abafar informações, mas denúncias sérias partiram de pessoas perfeitamente confiáveis, apontando as reais causas do desastre. O gasômetro não explodira por motivos escusos. Esquerdistas não aprontaram qualquer sabotagem, conforme se tentou fazer crer. O acidente não era obra de nenhum grupo clandestino interessado em tumultuar ainda mais os convulsos últimos anos da década de 60. Bem outro o motivo: o reservatório de número 5 estava corroído pelo gás e não apresentava qualquer segurança. O risco era tão alto que a CSEG iria interditá-lo nos próximos dias, segundo revelaram funcionários. Um fragmento do tambor comprova as denúncias: sua espessura não ia além de 1/4 de polegada, quando originalmente era de 5/6 de polegada. Mais: a poucos metros dos reservatórios de gás passavam cabos de alta tensão - seis mil volts -. Uma faísca perdida teria provocado tudo).

"Bem que as crianças poderiam ser criadas para um mundo melhor, onde a vida não fosse colocada em último plano. Onde a vida não tivesse um certo valor apenas enquanto mão-de-obra barata. O mundo é tão pequeno e mesquinho! Produtos químicos perigosos, inflamáveis, de tal poder de combustão, são transportados e manipulados como se fossem água. Não sabemos o que se descarrega em nosso porto. Nem temos o direito de conhecer o veneno que vai nos matar. Investe-se milhões de dólares em drogas que podem acabar com milhares de pessoas ao mesmo tempo, como ocorreu na Índia. O isocianato de metila está bem perto da gente, e não sabíamos. Poderia ter sido aqui. Nós, na Baixada Santista, não vivemos. Apenas sobrevivemos".

(Parecia que a bomba de Hiroshima caiu sobre Santos, repetem alguns. Mas, apesar da gravidade do episódio, os responsáveis pela explosão do gasômetro permaneceram impunes. Aliás, talvez fosse de se estranhar que houvesse punição...).

"Não me identifico porque não quero que as pessoas sintam pena de mim. As vítimas não são dignas de pena e sim as pessoas que detêm o poder e abusam dele. Que só conseguem enxergar o lucro fácil e imediato, mesmo que isso implique na morte de inocentes. Vida descartável. Repito: não quero que as pessoas sintam pena de mim. Quero que leiam, tenham coragem de ter medo e lutem por seus direitos".


Foram registrados estragos a dois quilômetros de distância
Foto: arquivo, publicada com a matéria