ROTEIRO DA INSEGURANÇA - 7
Baixada carece de recursos para segurança
A Baixada Santista se transformou numa autêntica "área de insegurança nacional":
apesar de ser a região mais insegura do mundo, não recebe recursos para a implantação de esquemas de defesa ambiental. Enquanto faltam equipamentos,
técnicos, veículos, barcos etc., continuam ocorrendo "acidentes" totalmente evitáveis.
A verdade é que a febre do desenvolvimento, responsável principal pela implantação das
indústrias, não trouxe junto a preocupação com a segurança. Agora, quando a situação é caótica, faltam meios para a proteção da população. A Cetesb
anuncia quatro projetos específicos para a Baixada e resta torcer para que haja disposição e verbas para a implantação dos planos. A Unidade
Sindical pretende promover um amplo debate sobre o tema.
As indústrias vão sendo implantadas na região
sem qualquer planejamento sob o aspecto segurança
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria
Baixada, uma 'área de insegurança nacional'
(Faltam verbas - e disposição - para a implantação de esquemas de defesa ambiental)
Texto de Manuel Alves Fernandes e Lane Valiengo
Fotos: Araquém Alcântara
O ar sem poluição, o Estuário sem esgoto e mercúrio
(além de outros metais pesados), as ruas sem carretas carregando explosivos, o mar sem o óleo dos navios, os oleodutos longe de núcleos
habitacionais. E as indústrias trabalhando dentro da máxima segurança possível. Tudo isso será apenas um sonho?
Já que a Baixada Santista é obrigada a conviver com os muitos perigos que existem
atualmente - e que a tornam a região mais insegura do planeta -, deveria receber pelo menos uma compensação. Que seria exatamente a garantia de que
um novo incêndio como o de Vila Socó não acontecerá de repente, matando outra centena de pessoas. Ou talvez
milhares. Ou, pior ainda, destruindo toda a região.
Mas não é o que acontece. Apesar de toda a insegurança, a Baixada não recebe atenção
proporcional, tanto a nível de definições quanto de recursos - materiais e humanos - necessários para tornar o Roteiro da Insegurança um
pouco menos ameaçador. A febre do desenvolvimento a qualquer preço trouxe para cá as indústrias, os gases venenosos, os caminhões com produtos
inflamáveis e tóxicos, os oleodutos. Mas não trouxe junto a segurança, esquecendo que existe um custo social que não pode ser simplesmente
desprezado.
A Baixada não recebe verbas para montar, no mínimo, um esquema eficiente de defesa
ambiental. A Cetesb, por exemplo, não conta com número de funcionários proporcional aos riscos existentes. E nem ao menos possui um barco para
fiscalizar a região. E os Bombeiros, conforme reconhece o comandante, coronel Nilauril Pereira da Silva, ainda estão longe do ponto ideal em termos
de equipamentos, "apesar de estarmos avançando bastante".
O Conselho de Defesa do Litoral não possui base em Santos e não há equipamentos para
um combate imediato a derramamento e óleo no mar, mesmo sabendo-se que esses derramamentos são freqüentes.
O próprio coronel Nilauril lamenta. "Segurança é investimento caro e não tem retorno".
Talvez seja por isso que só se fala em segurança depois que as tragédias aconteçam. Mas mesmo assim só imediatamente em seguida aos "acidentes":
bastam algumas semanas para que ninguém mais toque no assunto. E a necessidade de medidas "urgentes" é inteiramente esquecida. Até que outro
"acidente" ocorra.
A Baixada não é apenas a região mais insegura e explosiva do mundo, é também a mais
discriminada, a que mais sofre com a omissão geral que tem caracterizado as decisões políticas no Brasil. Não deixa de ser curioso o fato de que
Santos e Cubatão tiveram suas autonomias cassadas, passando a ser "áreas
de segurança nacional". Apesar do título imposto pelo Governo Federal, essa intervenção não se caracterizou, em nenhum momento, pela implantação
de esquemas efetivos de segurança e muito menos por verbas, para que os municípios pudessem se preparar para a difícil convivência com as
instalações industriais, com o tráfego de produtos perigosos, com o recebimento de inflamáveis, com a estocagem de venenos altamente tóxicos.
E enquanto não há recurso algum para que se crie um sistema de vigilância, acontecem
casos como o da barcaça Gisela, que derramou mais de 500 toneladas de óleo no Estuário, recentemente. Tratava-se de uma chata, sem as mínimas
condições de segurança, que permaneceu durante longo tempo junto ao Terminal da Alemoa. Até que o óleo caísse no mar, poluindo as praias, os
mangues. Tornando o Estuário ainda pior do que já é.
Oficiosamente, sabe-se que, diante da absoluta falta de condições, existe um esforço
no sentido de atuar em conjunto, no combate às agressões ao meio-ambiente. E que envolve, de certa forma, a Cetesb, os Bombeiros e a
Capitania dos Portos. Há também o Plano de Auxílio Mútuo e a Cipa da Codesp. Em qualquer
dos casos, é muito pouco para uma região tão explosiva e tão ameaçada como a nossa.
Agora, a Cetesb anuncia quatro projetos específicos para a Baixada Santista, para o
levantamento dos oleodutos, das rotas utilizadas pelas carretas com cargas perigosas e das áreas de armazenagem dos produtos e, finalmente, a
implantação de um esquema de atendimento a acidentes. Sinal de que pelo menos começa a existir certa preocupação.
Mas não são os planos que devem ser discutidos: o que importa realmente são os meios
para executar estes planos. Para que se inicie realmente um programa de prevenção e combate a acidentes ambientais, diminuindo a insegurança que nos
assola, serão necessários recursos, equipes técnicas, equipamentos, veículos, barcos, laboratórios etc.
Como habitualmente a distribuição de verbas é política, quem garante que haverá
dinheiro para tanto?
E há ainda um aspecto importante: a Baixada Santista, pelo grau elevadíssimo de risco
que apresenta, colocando em perigo permanentemente mais de um milhão de pessoas, deveria merecer prioridade absoluta, tanto a nível federal quanto
estadual. É aqui que estão os maiores problemas, é aqui o local em que a vida humana vale cada vez menos, está cada vez mais ameaçada.
"Nenhum bombeiro do mundo conseguiria combater o isocianato na Índia. Bombeiro nenhum
do mundo conseguiria apagar o incêndio da Vila Socó", sentencia o coronel Nilauril, com a experiência de quem assistiu as cenas dramáticas de gente
correndo e se atirando nas valas, fugindo - sem conseguir - do fogo.
Pois se não há como combater as tragédias - o que fazer quando houver um grande
vazamento de amônia, que mata quase que instantaneamente? -, só há uma saída: é evitar que as tragédias aconteçam. E para tanto é preciso que, ao
lado das palavras, venham os atos. Que venham os recursos, verbas, equipamentos, pessoal técnico. Tudo, enfim.
Antes que não reste mais nada, só lamentações.
Caminhões de todas as regiões cortam a Baixada com uma infinidade de produtos
químicos.
Mas nem por isso, as autoridades são comunicadas sobre as cargas
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria
Unidade quer mobilização
A Unidade Sindical está organizando um amplo debate sobre a
insegurança da região, com a participação da comunidade e autoridades. Entre outros tantos assuntos, será discutido "como
boicotar uma empresa que polui, que estoca materiais perigosos".
Este é o depoimento de Uriel Villas Boas, presidente da Unidade, a respeito das
múltiplas ameaças existentes na Baixada:
"Em primeiro lugar, a cada dia ficamos mais preocupados
com a comprovação de que vivemos cercados por um lado pela poluição; de outro pelos inúmeros produtos inflamáveis, que a qualquer momento podem nos
levar pelos ares. E o mais grave é que as autoridades do setor, como os bombeiros, a Cetesb, são conhecedores do problema e pouco podem fazer, seja
em razão da legislação não lhes dar muita cobertura, seja em função da deficiência dos equipamentos de que dispõem. Acresça-se a isto o fato de que
há uma desinformação generalizada, seja a nível e opinião pública, seja a nível do trabalhador, que manipula, que lida com tais produtos, como o
isocianato de metila ou o benzeno.
"Como cidadão, fico preocupado em saber que não tenho a quem recorrer. Estamos
desprotegidos em termos de legislação, em termos de fiscalização efetiva. E sofremos a cada dia uma agressão, seja pelo vazamento de benzeno da
Cosipa ou de óleo no Estuário.
"E mesmo as autoridades pouco contribuem. Como reagir diante da atitude do delegado de
Polícia do Vale do Ribeira, que liberou um caminhão contendo amônia, mesmo sabendo que a Cetesb estava tomando providências? Irresponsabilidade do
moço? Ou ele, de certa forma, agiu bem?
"Quando daquela verdadeira pantomima armada para mostrar à opinião pública que o
tristemente danoso isocianato de metila é transportado 'com toda a segurança', o que constatamos? Que nem todo aquele aparato garantiria
nada. Os bombeiros, a Cetesb, a Defesa Civil, a imprensa, todos nós que estivemos lá, contribuímos para que a Union Carbide aparecesse como uma
empresa preocupada com a segurança. E uma análise fria levou-nos à conclusão de que nem mesmo o transporte foi feito com segurança. Não vimos se os
tambores estavam mesmo protegidos, pois o contêiner saiu do navio para a carreta e daí para a fábrica, sem uma fiscalização efetiva.
"E o isocianato é apenas um dentre centenas ou milhares de produtos de alta
periculosidade. E os outros? Quantos são? Quais são? Ninguém diz, é um segredo de estado. E temos então os vazamentos de nafta, de gasolina, de
benzeno, de amônia, pelo menos os que ocorrem em vias públicas. Não vemos o que acontece dentro das indústrias, onde tudo é encoberto.
"Agora, não podemos apenas ficar preocupados, precisamos fazer alguma coisa. A
poluição ambiental, essa estocagem de produtos inflamáveis, os riscos que sofremos, não têm um efeito imediato, a não ser quando acontece alguma
tragédia, como a Vila Socó. A opinião pública, traumatizada, faz manifestações, reclama, vai aos jornais exigir providências. E tudo cai no
esquecimento. Quem se lembra do benzeno que vazou na Serra, poluindo mananciais, matando tudo em volta?
"Este é um aspecto que dificulta o encaminhamento de uma luta nessa área. Mas tudo tem
um começo. No nosso caso, constatamos que na Cosipa havia um vazamento de benzeno em sua coqueria. Que, além de poluir o ambiente, poderia causar
uma tragédia, caso houvesse um incêndio. Mas a poluição veio seguida de contaminação e prejuízo à saúde dos trabalhadores. O efeito foi imediato.
Houve uma intensa mobilização, muitos exames médicos no Sindicato dos Metalúrgicos, assembléias com grande participação. A coqueria passou por uma
reforma, com a interdição da unidade poluidora. Quer dizer, houve uma mobilização, que trouxe resultados positivos.
"Por que não fazer isto a nível de comunidade? Esta é uma proposta, que visa atingir o
seguinte objetivo: hoje, a comunidade está mais ou menos informada dos problemas. Mas não tem mecanismos de encaminhar suas lutas. Propomos então a
realização de um debate. Já marcamos a data. Vai ser no dia 19 de janeiro, começando às 9 horas, no Sindicato dos Metalúrgicos. Vamos convidar,
inicialmente, o secretário de Meio-Ambiente, a Cetesb, a Secretaria do Trabalho, médicos, advogados, para que debatam com as entidades populares, os
sindicatos, os estudantes, fazendo uma exposição do que existe de produtos agressivos, dos males que causam, da legislação, se é que ela existe.
"Em seguida, tiraremos propostas de luta. Vamos discutir como boicotar uma empresa que
polui o ambiente, que estoca materiais perigosos, por exemplo. Ou pensar em impedir, de maneira pacífica, a entrada ou saída de tais produtos, seja
no Porto ou nas fábricas.
"E vamos também fazer uma campanha de divulgação das conclusões do debate. Vamos
envolver os prefeitos, os parlamentares, os órgãos do Governo. Não vamos querer que eles resolvam os problemas. Nós queremos, sim, que eles atuem
dentro da sua jurisdição. E o façam com o apoio da comunidade.
"Quando o portuário souber que um determinado navio vai atracar com produtos
perigosos, ele vai pensar duas vezes antes de meter a mão na carga. Se o trabalhador de uma indústria sabe que pode confiar numa entidade, ele vai
lá e denuncia o que está ocorrendo, como está sendo estocado ou manipulado determinado produto.
"Este é o nosso objetivo, conscientizar o trabalhador de que precisa defender-se,
defendendo a comunidade. E esta precisa defender-se também, participando da solução dos problemas.
"É claro que pensamos também na mudança de governo. E vamos aproveitar isso. Vamos
levar propostas a partir de nossas experiências, para que as cidades não estejam sujeitas aos riscos atuais. Acreditamos que é possível fazer alguma
coisa. Estamos tentando. Estamos discutindo o seminário numa primeira etapa. E não vamos parar nisto apenas. Vamos mais adiante, num trabalho
permanente, estimulados pelo conhecimento que vamos adquirindo, em função das discussões que estamos tratando a partir da questão benzeno-leucopenia,
na Cosipa".
Quinta-feira, no Sindicato dos Metalúrgicos, haverá nova reunião para discutir
detalhes do seminário.
Mais que a filosofia de segurança no trabalho, é preciso uma ação
Foto: Araquém Alcântara, publicada com a matéria
Cetesb tem projetos para a Baixada
A situação é gravíssima, é preciso reconhecer. Mas ainda não é o fim do mundo, ainda
há tempo para que se tomem as providências necessárias e, finalmente, fazer com que a Baixada Santista tenha um pouco mais de segurança, deixando de
ser a região mais perigosa do mundo. Essa é a opinião de Luís Antonio de Melo Awazu, coordenador de Operações do Conselho de Defesa do
Litoral.
A solução é o planejamento. Awazu revela que a Cetesb, dentro do Programa de Prevenção
de Acidentes Ambientais, elaborou quatro projetos específicos para a Baixada, exatamente com o objetivo de equacionar a questão da segurança.
O primeiro projeto é o levantamento de todos os oleodutos, depois o levantamento de
todos os sistemas de armazenagem de produtos perigosos; a seguir, levantamento das vias de transporte e, por fim, a adoção de um esquema de
atendimento a acidentes.
Além de permitir o acesso a informações vitais, os quatro projetos têm outra
finalidade, provavelmente mais importante: exigir uma postura mais responsável por parte de todas as pessoas envolvidas. "É preciso conscientizar
dos perigos e da necessidade de medidas se segurança, e não esperar que os acidentes aconteçam para começar a discutir".
Awazu reconhece que existe, na região, um "complexo muito sério envolvendo indústrias,
oleodutos, o próprio Porto". Mas ressalta a necessidade de se tentar conviver harmonicamente com isso. "Claro, sem permitir excessos. Alguém quer
instalar uma indústria? Muito bem, só o que esse alguém precisa saber que existe um custo social. E esse custo social é a segurança, é o respeito ao
meio-ambiente. Por que só nós, a população, nossas famílias, temos que arcar com os custos da industrialização?"
A responsabilidade existe e deve ser assumida, observa Awazu. "Toda a comunidade
precisa entender que não é só a Cetesb que tem essa responsabilidade. A responsabilidade é de todos, inclusive da comunidade. Não adianta nada
ficarmos brigando como Dom Quixote. É preciso que cada um seja o seu fiscal. E comece a gritar, exigir uma postura condizente com a situação. Ainda
é tempo de começar a botar a mão na massa, quebrando esses feudos que existem. E acredito que é possível".
Awazu reafirma a importância da implantação dos projetos para a Baixada e, ao mesmo
tempo, destaca a "tremenda contribuição que A Tribuna está dando com essa série de reportagens. É isso que estamos precisando, que cada um se
sinta responsável. Quem estiver operando uma válvula, numa empresa, precisa sentir a responsabilidade que tem e que diz respeito a toda a
comunidade. Atrás dele, existem milhares de pessoas, com direito à segurança, à vida". |