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SANTOS DE ANTIGAMENTE - PINACOTECA - LIVROS
Memórias do Casarão Branco (04)

Clique na imagem para ir ao índice deste livroHerança da época áurea das exportações de café pelo porto santista, e uma das primeiras casas não-geminadas de Santos, a edificação que desde o final do século XX abriga a Pinacoteca Benedito Calixto, e foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Santos (Condepasa) foi por várias décadas propriedade da família Pires.

Sua história foi contada pela escritora Edith Pires Gonçalves Dias, nesta obra publicada em 1999 e depois reeditada, com 130 páginas, impressa pela Mazzeo Gráfica e Editora Ltda., de Santos/SP. O livro foi composto e editado por Sonia S. Silveira, com capa de Carmem Silvia de Paula Cabral, revisão de Manuel Leopoldo Rodriguez Montero e contracapas de Orlando de Barros Pires e Maria Isabel Pires Isique. A autorização para esta primeira edição eletrônica foi dada pela autora a Novo Milênio, em 30 de julho de 2010. Páginas 33 a 43:

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Memórias do Casarão Branco

Edith Pires Gonçalves Dias

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RECOMPRA E REFORMA

Em 1921, papai foi procurado pelo corretor de imóveis Pérsio Martins, oferecendo-lhe novamente o casarão, pelo mesmo preço que fora vendido ao Asilo dos Inválidos.

Essa instituição terminara a construção do imóvel onde se encontra até hoje (N.E.: após a edição original deste livro, mudou-se para o morro da Nova Cintra, com o nome de Casa do Sol), próximo ao Orquidário, adequando-se melhor às suas finalidades.

Hoje sabemos que, em breve, estarão se fixando em aprazível terreno no Morro da Nova Cintra, com instalações mais modernas e condizentes com as necessidades dos idosos e com um conforto maior. Tudo evolui e é necessário acompanhar a marcha do tempo, dos avanços tecnológicos e do progresso. Esta é a lei, que atinge  tudo e a todos.

Papai fechou negócio pelos mesmos cento e cinqüenta contos de réis. Mas a casa estava em estado deplorável. Depois de feita uma avaliação exata pelo engenheiro dr. Maurílio Porto, o mais conceituado na época, constatou-se que somente as paredes seriam aproveitadas.

Portas, janelas, aparelhos sanitários, fiação elétrica, tudo foi retirado, permanecendo apenas as paredes, bastante sólidas. Dizem que as madeiras estavam impregnadas de percevejos, insetos minúsculos, porém danosos. Naquele tempo não havia os inseticidas. Foi tudo queimado no fundo do terreno.

Iniciou-se então a reforma, que levou dois anos. Além de ser um trabalho muito grande, papai queria que fosse restaurada com o que de melhor houvesse em matéria de acabamento.

Com os acréscimos laterais, o jardim de inverno e a entrada para automóveis, bem como a duplicação da escada para o terraço, a casa perdeu a sua forma quadrada e tornou-se bem mais harmoniosa.

Os vitrais coloridos foram confeccionados na Casa Conrado, firma que até hoje existe em São Paulo, especializada nesse artístico trabalho, usando materiais importados. Os mármores foram todos de Carrara.

Graças à competência de todos que trabalharam na recuperação do imóvel, ele pode ser hoje apreciado em sua originalidade.

A PARTE BAIXA

O estilo usado em toda a decoração foi o art nouveau. O mobiliário foi todo confeccionado pela marcenaria de Nicácio Costillas e Filho, verdadeiros artistas no ramo de móveis.

A sala de jantar em cabriúva, madeira de lei, toda entalhada com motivo de frutas, trabalho reproduzido nos rodapés de toda a sala. Compunha-se de grande mesa oval com poltronas arredondadas, estofadas em fino couro marrom. O móvel destinado às louças e cristais tinha seis metros de extensão.

No centro, um grande espelho; de cada lado, um móvel com gavetas, encimado por grande quadro decorativo, entalhado à mão por Nicacio Costillas Júnior. Terminava com cristaleiras altas, com várias prateleiras.

Na parede fronteiriça, um étager, móvel com portas e prateleiras internas, os lados arredondados. Era encimado por grande espelho, ao invés de quadro entalhado.

Uma porta de vaivém, ou seja, de molas, toda entalhada e ornada com uma parte em vitral colorido, vedava a passagem para a copa.

No canto oposto, um relógio dentro de móvel todo entalhado, acompanhando os demais, com pêndulos e correntes em dourado. As suas badaladas eram emocionantes.

Nos seis espaços vazados da sala de jantar para o corredor, para o jardim de inverno e sala de visitas, havia vitrais coloridos.

Essa mobília, quando saímos do casarão, esteve guardada algum tempo. Depois foi desmembrada. Uma parte, compondo uma nova mobília de sala de jantar, encontra-se com um sobrinho residente em Ribeirão Preto, Jorge de Azevedo Pires. Tenho em minha casa um móvel também remanescente desse mobiliário.

A sala nobre era no estilo Luiz XV, com dois consoles e grandes espelhos, onde se viam cordões de flores entalhados em madeira, cadeiras muito graciosas forradas em fino tecido com suaves flores.

Havia uma montra bem espaçosa, para exposição de pequenos objetos de porcelana, peça que está comigo e onde guardo minha coleção de xícaras de café.

O jardim de inverno foi decorado com mobília em fino junco. As cadeiras e sofás, estofados com gobeline. Plantas ornamentais completavam a beleza desse acolhedor ambiente.

A sala de música tinha uma decoração de acordo com sua finalidade. Os motivos usados eram liras musicais, que ornavam o encosto das cadeiras e a barra pintada no alto das paredes. Havia um sofá embutido num móvel que se compunha de dois armários laterais para músicas e discos.

Completava o cenário, com toque romântico, uma conversadeira, composta de duas cadeiras conjugadas, uma para cada lado. Num canto, o piano de cauda; e em outro, uma radiola, que podíamos ouvir usando fones de galena.

Quem a trouxe para papai, foi seu irmão Antônio, que residia no Rio de Janeiro. Sendo então uma novidade, havia uma grande disputa para usar os referidos fones e deliciar-se com as músicas transmitidas pelas estações de rádio.

Ao lado da sala de música e com porta de comunicação, estava o escritório dotado de escrivaninha com grande poltrona de espaldar alto. Armários para livros, grande cofre dentro de um móvel com porta de suspender. À toda volta, havia lambri de madeira.

Completava a decoração um grande sofá e duas poltronas confortáveis em couro marrom. As almofadas eram de penas, o que as tornava muito macias.

Quando começaram os noivados, esse era o local escolhido pelos noivos, que ali ficavam durante o serão, sempre acompanhados de "elefantes", termo usado para designar os seus acompanhantes. Ao centro havia uma mesa de fumantes em metal amarelo, com vários objetos adequados ao seu uso, sempre brilhando!

No fim do corredor havia uma sala de estar com cadeiras confortáveis, uma vitrola que funcionava dando corda com uma manivela. O velho piano Pleyel, que pertencera aos Dick, e um grande armário, onde mamãe guardava tudo que empregava par confeccionar trabalhos manuais.

Ali era guardada uma caixa com cartões postais colecionados durante nos e que servia de distração quando estávamos doentes, presos ao leito. Era como um ritual. Ao lado dessa sala, um banheiro completo.

Quando vovó Philomena vinha, com tia Lucinda, passar uma temporada conosco, essa sala transformava-se em dormitório, uma vez que vovó tinha dificuldade em subir escadas.

A sala de almoço, toda envidraçada, era clara e arejada. Na parede que dava para a copa, havia uma janela tipo guilhotina. Na hora de servir as refeições ela era suspensa, ficando uma bancada de mármore, onde a cozinheira colocava as travessas que a copeira, por sua vez, servia aos comensais. Seu mobiliário era composto de mesa, cadeiras e um guarda-louça bem grande, onde eram acomodadas as louças de uso diário.

Completando essa parte de serviço tão importante no desenrolar da vida de uma família, estavam a copa, a cozinha e a dispensa.

A copa era dotada de uma grande pia, geladeira e uma mesa de mármore, presa à parede, para colocar utensílios, pratos com frutas etc.

A dispensa era um cômodo espaçoso. No centro, uma mesa onde as crianças faziam refeições. Participar da mesa dos adultos, só depois de completar quinze anos.

De um lado, um armário com tela, para a guarda de latarias e guloseimas. Do outro, depósitos em forma de balcões, para feijão, arroz, açúcar etc., sendo tudo comprado em grande quantidade.

No teto havia quatro ganchos de onde pendiam as correntes que mantinham suspenso um grande tabuleiro, onde eram colocadas frutas para amadurecerem.

A cozinha era bem diferente das de hoje. Havia um fogão a gás de rua, de quatro bocas, usado apenas para fazer café, ferver leite, mingaus etc.

A comida era feita no grande fogão a lenha, com chapas de aço que, após o uso, eram polidas, mantendo-se sempre com grande brilho. A pia era de ferro esmaltado e os armários para guarda de utensílios eram de madeira e pintados de branco.

A um canto, uma pequena mesa, onde estava fixada a máquina de moer café. Este já vinha torrado do escritório de papai, mas só era moído na hora de coá-lo. Os móveis do departamento de serviço foram fornecidos por Kisabo Kanaima.

A PARTE ALTA

Bem ao centro do corredor do primeiro pavimento, estava a escada que levava ao segundo pavimento. Era toda em mármore de Carrara e o corrimão em ferro, um artístico trabalho feito pelo Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo.

No patamar que dividia os dois lances da escada, encimado por enorme vitral colorido, havia um cômodo, justamente em cima da entrada de carros. Era a sala de costura, mobiliada com o necessário para esse trabalho.

Ao término do segundo lance da escada, uma grade de ferro sanfonada, que ali foi colocada quando começaram a chegar os netos. Era para impedir que eles caíssem nos seus degraus.

Chegando ao segundo pavimento, o grande corredor de circulação para os quartos. Eram seis quartos amplos, sendo que o quarto do casal era acrescido pelo quarto de vestir. Um pequeno corredor abrigava dois banheiros. Naquela época não se cogitava de construir as suítes que oferecem a comodidade de ter um banheiro privativo para cada quarto.

Todo mobiliário dos quartos era no mesmo estilo, penteadeiras com gôndolas, cômodas, grandes guarda-roupas, camas, mesinhas com cadeiras, tudo numa harmonia perfeita. No quarto do casal, os móveis eram ricos, com aplicações de enfeites em bronze.

Essa mobília encontra-se com uma sobrinha residente em São Paulo, Sylvinha, viúva do dr. Alfredo Duarte Cabral, médico que se tornou conhecido em nossa cidade, como professor da cadeira de Urologia na Faculdade de Medicina de Santos, da Fundação Lusíada. Seu nome está perpetuado no quadro fixado no saguão de entrada do Hospital Ana Costa, onde também marcou presença.

Os móveis dos demais quartos foram divididos entre os familiares.

No referido corredor havia uma grande sapateira com portas de correr, para acomodar o enorme número de calçados.

Havia um armário com tampo de mármore, onde se encontrava um fogareiro a gás, para fazer um chá ou esquentar água em qualquer emergência. Nesse armário eram guardados medicamentos. Ainda nesse corredor, um divã completava a primorosa decoração.

JARDINS DO ENTORNO

Meu pai pensava em tudo que pudesse dar conforto à família. Na cozinha, por exemplo, havia um lampião a gás, para ser usado no caso de faltar energia elétrica. A água para banhos quentes vinha de um grande cilindro ao lado do fogão e que funcionava pelo sistema de serpentinas.

Na porta de saída da cozinha para o quintal, colocado nas ameias da beirada do telhado, havia um grande sino, cuja corda era acionada, chamando os serviçais para as refeições. Também servia para o chamamento de apenas um deles, objetivando a tratativa de algum assunto necessário. Havia uma espécie de código: conforme o número de batidas, o serviçal solicitado vinha rapidamente.

Todos os serviços de tapeçaria, cortinas e tapetes, foram de responsabilidade da Tapeçaria Catelli, famosa pelo bom atendimento e apurado gosto. É possível então imaginar o ambiente do casarão, enquanto nossa residência. Nesse contexto se inseria a beleza dos jardins que circundavam a casa. É chegado o momento de percorrermos mentalmente os jardins e a parte dos fundos do casarão.

Deparamos logo com uma edícula com telhado de ardósia. li eram os banheiros, para serem usados quando vínhamos da praia. Ninguém se atrevia a entrar na casa com areia da praia. A disciplina era uma marca da família Pires.

Mais para o centro do terreno, uma mesa e dois sofás de pedra, próprios para decoração de jardins. Muitos outros bancos semelhantes foram colocados em vários pontos do terreno.

As pérgulas dos lados direito e esquerdo da casa conservam a sua originalidade. Elas haviam sido muito danificadas, mas observando as fotos que forneci, os restauradores puderam recompor todos os detalhes e renovar sua beleza.

No local à esquerda, onde hoje existe um grande gramado, situava-se outra edícula com dois pavimentos. No primeiro havia duas garagens, o quarto dos jardineiros, uma grande sala de aula, lavanderia e dois banheiros. No segundo pavimento havia cinco quartos e um banheiro amplo. No corredor, um lavatório com grande espelho.

Papai pensava também no conforto dos serviçais. No último quarto viveu a Sinhá Blandina, até falecer com 102 anos.

Logo depois dessa construção, havia um canil, um depósito de ferramentas e carinhos de mão, para uso dos jardineiros. Em seguida, uma cozinha completa, que dispunha de um forno caipira para assar pães, com uma dispensa anexa, para uso de mamãe, excelente dona-de-casa, que adorava fazer doces. Numa prateleira, enfileiravam-se grandes vidros, com doces de frutas variadas, colhidas em nosso pomar.

Em seqüência, desse mesmo lado, vários galinheiros, onde eram criados patos, perus e galinhas. Todo o restante do espaço entre eles e o muro dos fundos era ocupado pela horta. Todas as verduras consumidas em nossa casa provinham dessa horta. Bem no seu centro havia um grande tanque redondo com um repuxo que, girando rapidamente, molhava as verduras para que se mantivessem viçosas.

Havia ao lado da horta dois canteiros compridos só de morangos e, perto do muro, muitas bananeiras.

Do lado direito do terreno, depois da cozinha, havia um bonito conjunto de canteiros com flores variadas. A seguir, a quadra de tênis, com todas as exigências técnicas, até mesmo a cadeirinha alta acoplada no cimo da escada, para acoplar o árbitro.

Bem no centro do terreno, a avenida de jambolões, onde se encontravam vários bancos. A seguir, um grande roseiral, orgulho de nossa mãe, com as mais belas espécies da rainha das flores.

Em continuação, um grande gramado, onde eram colocados os arcos para o jogo de croquê. Hoje, pouca gente conhece esse esporte. Consiste em manejar martelos de madeira com cabos longos, com os quais se impulsionam bolas coloridas, que devem ultrapassar todos os arcos, até atingir uma trave com rede, semelhante à usada no futebol. Quem ali chega primeiro é o vencedor.

Ainda nesse espaço, uma barra fixa para exercícios físicos e, por último, a estufa onde mamãe colecionava plantas decorativas, em especial avencas e begônias.

A intervalos regulares, nesse espaço, perfilavam árvores frutíferas, que ultimamente foram sacrificadas, pela necessidade de transformar essa área em estacionamento para carros.

Bem no centro do muro dos fundos, um grande portão de serviço, para entrada de carros e carroças que traziam lenha para consumo da cozinha.

Ao citar esse portão ao fundo do terreno, vem-me à lembrança um fato ocorrido há cerca de 35 anos. Ao sair do Clube Internacional de Regatas, onde participara de um chá beneficente, tomei um táxi que ali fazia ponto.

O motorista era bastante idoso. Logo me perguntou: - "A senhora é da família Pires,não é?" Respondi que sim, bastante surpresa!

Então ele me disse que era o Afonso, do táxi 502, que fazia ponto no Miramar. Muito servira à nossa família.

Depois, fez uma revelação que eu desconhecia. Disse que mamãe o chamava para ir ao casarão, mas entrando pela porta de serviço.

Ele estacionava na avenida dos jambolões e mamãe, auxiliada pelo jardineiro, enchia o carro de mantimentos que distribuía para famílias necessitadas. Incrível! Eu jamais presenciara essa cena. Mamãe era realmente discreta no seu trabalho de assistência aos menos favorecidos.

Tenho certeza que seu gesto só não passou despercebido a Deus e que ela cumpriu o grande postulado: - "Fora da caridade não há salvação".

Uma curiosidade, ainda na seqüência da horta. Uma cratera, onde era enterrado o lixo, e assim, transformado em adubo.

Na entrada de automóveis, onde hoje está a inscrição Pinacoteca Benedicto Calixto, lia-se Villa Edith, idéia carinhosa de meu pai.

Antes de iniciar a narrativa de nossa mudança para o casarão branco, gostaria de fazer referência a dois fatos que foram muito comentados em 1922.

No primeiro semestre, o Brasil aplaudia entusiasticamente o grande feito de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Num "teco-teco", pequeno aeroplano, eles conseguiram fazer a travessia do Oceano Atlântico, saindo de Portugal e descendo no Rio de Janeiro.

No segundo semestre, comemorava-se o primeiro centenário da independência do Brasil. Em nossa cidade foi inaugurado o monumento da Praça da Independência, com grande festividade.

Nesse local, as ruas ainda não eram calçadas, era um areão. Não havia nem meio-fio. Armaram arquibancadas ao redor do monumento, onde ficaram os alunos de várias escolas. Eles entoaram o Hino Nacional e o Hino da Independência.

Foi dada uma salva de vinte e um tiros e, a seguir, foi retirado, pelas autoridades presentes, o pano que cobria a magnífica estátua, sob calorosa salva de palmas.

Francisco Costa Pires em 1923

Foto publicada na página 43 do livro