A PERDA DO CASARÃO
A tranqüilidade dos Pires
foi duramente atingida por um fato inesperado. Depois da aquisição do casarão branco, como ainda lhe restasse uma quantia razoável, papai tornou-se
sócio da firma cafeeira Bezerra Paes & Cia.
Por ser ainda muito jovem, não teve o cuidado de investigar sobre a situação econômica
da mesma. Não tardou a estourar a grande bomba, a falência da firma.
Chegaram a aconselhar meu pai a colocar o imóvel como bem de família, impedindo sua
venda para pagamento de suas dívidas. Mas meu pai era honesto demais e julgava que isso seria como fugir às responsabilidades como sócio da empresa.
Foi uma perda dolorosa desfazer-se da casa que adquirira com o fruto do seu trabalho
digno, na firma onde atuara anteriormente. O casarão foi vendido para o Asilo de Inválidos de Santos, então presidido pelo
dr. Antenor de Campos Moura.
Neste momento, sinto-me transportada ao passado e imagino a decepção sofrida por meu
pai. Com apenas 35 anos, mas realizado na vida, conquistando o progresso econômico e profissional através da dedicação ao trabalho, via sua
conquista se desfazer, à semelhança de um castelo de cartas de baralho. Quanta desilusão deve tê-lo castigado nesta triste etapa...
Mas seu espírito estava fadado a não se abater, a superar obstáculos e procurar novos
caminhos. O seu perfil de grande lutador, de homem de fibra, viria a revelar-se na continuidade de sua existência. Não tardaria a se reerguer dessa
triste etapa. Ele tinha a certeza de que vale a pena lutar, vale a pena sonhar.
E dos sonhos que acalentava, do grande estímulo que lhe vinha ao fitar sua bonita
família, nascia a esperança, essa energia sutil, quase imperceptível, que o impelia a novas conquistas, que o incentivava a adotar experiências
diferentes, a buscar novos horizontes.
Com essa simbiose de sentimentos ele enfrentou novas lutas e realizou seus sonhos. No
decorrer de sua vida, portou-se como um grande guerreiro, não temendo nenhuma luta. Foi um vitorioso, superando todas as adversidades.
O APOIO DE MEUS AVÓS
Com a venda do casarão,
meus pais foram residir na casa de meus avós maternos, Maria de Lima Barros e Jorge Tude Estanislau de Barros, em uma casa térrea, muito grande,
situada na Rua Braz Cubas, nº 158.
Maior ainda era a generosidade de meus avós, que acolheram meus pais com seus nove
filhos, com todo carinho, tudo fazendo para que eles se sentissem bem, depois de perdido o conforto da casa da praia.
Meu avô era alto funcionário da firma Queiroz dos Santos, sendo uma pessoa muito
benquista por todos. Para dar idéia do conceito que gozava perante seus subordinados, transcrevo aqui as palavras dirigidas por eles, pela passagem
de ano.
"Ilmo. Sr. Jorge Estanislau de Barros
Os trabalhadores de ensaque da Casa Queiroz dos Santos não poderiam deixar
despercebido o vosso nome, e reconhecendo a nobreza de vossa alma sempre talhada para o bem, vêm nestas humildes palavras trazer efusivos parabéns
de Boas Festas e Feliz entrada de Ano Novo.
E ao mesmo tempo desejam que os trezentos e sessenta e seis dias do no de 1916
sejam de venturas e felicidades, não só ao ilustre chefe, como à Exma. família de quem é orgulho.
São palavras simples de trabalhadores, mas homens conscientes e reconhecidos, que
admiram o preclaro cidadão que na vida pública tem sido um padrão de glória, como chefe de família, um exemplo e incentivo para os moços. Queira
aceitar os nossos protestos de alta estima e consideração.
Santos, 1915-1916"
Essa prova de dignidade de meu avô, divido com vocês, meus leitores e amigos. Com que
felicidade conservo esse cartão no arquivo da Família Pires!
Vovó Mariquinhas, como a chamávamos, fora casada em primeiras núpcias com Joaquim
Estanislau de Barros, irmão de vovô Jorge, que faleceu com problemas cardíacos aos 33 anos, deixando três filhas, Zulmira, Maricota e Eliza. Vovô
Jorge passou a zelar pelas sobrinhas e pela cunhada, com ela se casando, e de cuja união nasceram Leonor e Julieta (Etinha).
Mas ele jamais fez qualquer distinção entre elas. E ainda criou Maria de Souza, filha
de compadres seus que faleceram na epidemia da febre amarela, a quem sempre chamamos de Tia Maria. Era assim que nós a considerávamos.
Havia também uma agregada da família, Sinhá Blandina, filha de escravos libertos, que
vivera em casa de meus bisavós. Muito apegada aos Barros, passou a viver com eles até 1905. Quando mamãe teve a Valentina, Sinhá Blandina disse à
minha avó:
- "Sinhá Mariquinha. Eu vou para casa de Sinhazinha Zulmira, que, com tantos filhos,
precisa mais de minha ajuda".
E, sob o olhar complacente e comovido de vovó, ela se foi em definitivo para o seio de
minha família.
Tia Maricota faleceu com apenas 15 anos. Tia Eliza casou-se em 1917 com Augusto
Medeiros Bulle. Tia Leonor casou-se com Alvaro Pinto da Silva Novaes Filho, que ficara viúvo com oito filhos, em 1942. Ela acabou de criá-los com
profundo amor e eles a consideravam como verdadeira mãe. Tia Etinha casou-se em 1921, com Dante Micheline, que se mudou para Vitória, capital do
Espírito Santo.
A casa de meu avô, na Rua Braz Cubas 158, onde meus pais e
irmãos foram acolhidos, foi posteriormente a residência de Alexandre de Mello e Faro. Muito amiga de sua filha Judith, ali fui muitas vezes.
UMA TEMPORADA EM SÃO PAULO
Em 1914 nasceu o Olavo, o
décimo dos Pires. Nesse ano, papai foi a Londres, em plena guerra, para tratar de negócios na matriz da firma em que trabalhava, a Brazilian
Warrant.
Durante a estadia em casa de meus avós, Jorge e Arnaldo tinham aulas particulares com
a professora da. Carolina de Souza Dantas, e as minhas irmãs, com da. Cafuncha Pereira da Cunha.
Em 1915, papai resolveu mandar os rapazes para o Mackenzie College, e as moças para o
Colégio Stafford, considerados os melhores estabelecimentos de ensino da época, ambos com internato. Jorge cursaria Engenharia e Arnaldo o Curso de
Comércio. O Colégio Stafford oferecia um curso de oito anos, saindo as alunas com grande capacidade e conhecimentos.
Quando Beatriz terminou o curso, decidiu seguir o Magistério. Teria de cursar a Escola
Normal Caetano de Campos, na Praça da República, em São Paulo. Mas um problema se fez presente, não havia internato. Naquela época, uma moça não se
deslocava sozinha para estudar em outra cidade. Mamãe, com apenas 36 nos e 10 filhos, bastante corajosa e compreensiva com o idealismo da filha,
resolveu mudar-se para São Paulo. Seria também uma maneira de estar perto dos filhos internados.
Foi na capital que nasceu o Orlando em 1916 e eu em 1919. Costumo dizer que nasci em
São Paulo por acaso. Mas hoje sou bastante feliz por Santos ter me adotado como filha, outorgando-me o título de "Cidadã Santista", aos 12 de
outubro de 1988. Afinal, eu já era sua filha, pelo espírito e pelo coração.
Acredito que o fato marcante dessa temporada da família em São Paulo tenha sido a
epidemia de gripe espanhola, em 1918. As escolas foram todas fechadas. Cinemas e lojas cerraram suas portas. Os fornecedores de gêneros alimentícios
não faziam mais entregas. Mamãe conseguiu em tempo, da melhor maneira possível, abastecer a dispensa, principalmente de leite condensado, que não
poderia faltar numa casa com tantas crianças.
Ensinaram mamãe a pendurar, no pescoço de todos, um saquinho com pedras de cânfora,
que devia ser aspirado várias vezes ao dia. Simpatia ou não, o fato é que funcionou e ninguém da família Pires teve a tão fatídica gripe. Contavam
meus irmãos que, muitas vezes, estavam olhando a rua, através da vidraça dos janelões da Alameda Cleveland nº 15, e viam passar carroções
transportando os mortos, tal o elevado número.
Quando Beatriz terminou o curso normal, mamãe decidiu retornar a Santos. A esse tempo
as moças não estavam mais internas. No internato, a Eliza, que chamávamos de Zica, teve tifo e, como seu estado era bastante grave, o dr.
Luiz Campos Moura, médico que a assistia, levou-a em seus braços para a casa de mamãe. Receosa de que pudesse se repetir essa situação, mamãe
decidiu deixá-las externas. E assim permaneceram até o final do curso.
Em 1920, a família ainda em São Paulo, houve um surto de coqueluche, pelo que mamãe,
receosa de que eu, apenas um bebê, pegasse a tal de "tosse comprida", mandou-me para a casa da vovó, mas acabei ficando com tia Lilica e tio Bulle.
Eles não tinham filhos e apegaram-se demais a mim. Quando mamãe veio me buscar, eles
não queriam que ela me levasse de volta.
Alegaram que meus pais tinham doze filhos e podiam deixar-me com eles em definitivo.
Ao que papai respondia rindo: - "Só se quiserem ficar com o lote todo".
Dizem que tia Lilica, no dia em que saí de sua casa, não queria nem alimentar-se,
ficando em profunda tristeza. A verdade é que criou-se um vínculo afetivo muito grande entre nós.
Eu os considerava os meus segundos pais e até o fim de suas vidas dei-lhes muito amor
e carinho, com eles convivendo mesmo depois de casada, pois morei quase quinze anos em sua casa da Avenida Bartolomeu de Gusmão nº 66.
Usufruí também de estadias na fazenda que mantinham em Monte Verde Paulista. Padrinhos
de Vera Sílvia, por ela chamados de Didi e Dindinha, eram grandes criaturas, almas nobres, sempre prontas a amparar os menos
favorecidos.
DE VOLTA A SANTOS
Retornando a Santos, fomos
morar na Avenida Vicente de Carvalho nº 40, esquina da Rua da Paz. A esse tempo a família estava dividida em duas "castas": os "grandes", que iam de
Jorge a Valentin; e as "crianças", que iam de Beca até Edith, a caçula.
Devo declarar que, apesar de ser a caçula, quase inesperada, pois mamãe pensava que
não mais engravidaria, não me tornei presunçosa.
Passei realmente a ser o centro de atenção dos irmãos, o que retribuí sempre com
imenso amor e carinho, dispensando privilégios.
Na nova moradia, eram nossos vizinhos os integrantes da família Silva Pinto,
proprietária de várias casas nas cercanias.
A casa em que moravam foi preservada por muito tempo. Ali funcionou por muitos anos o
tradicional Instituto Braz Cubas, mantido pelas irmãs Teixeira, de quem guardo grata memória.
Meu filho Ciro Jr. ali estudou, até terminar o primário. Quem se lembra bem desse
tempo é minha querida amiga Miryam Pacheco de Barros Penteado. Muitas vezes ela passava de carro, levando seu filho Jonas para o Braz Cubas, e dava
uma carona para o Ciro Jr.
Eram nossos vizinhos os Castro Andrade, os Dutra Vaz, os Richter, os Bittencourt. Na
Rua da Paz residia da. Isaura Mattos. Seu filho Juca estava sempre em nossa casa.
Os "grandes" já estavam todos formados. Mas Beca e Sylvia freqüentaram o
Colégio São Luiz, situado à Avenida Conselheiro Nébias; depois se transferiram para o Liceu Feminino Santista, à Rua da
Constituição.
Papai já se recuperara do abalo financeiro que tivera e se tornara sócio da firma
Rodrigues Alves & Cia.
Dessa época, uma das lembranças mais caras e nítidas que tenho é do Gentil Mesquita,
rapaz alegre e simpático que chamavam de Catita.
Tinha eu de 2 a 3 anos e gostava de subir a grade do jardim para apreciar o movimento.
Ele passava sempre à mesma hora, com destino ao Gonzaga. Brincava comigo, fazia-me rir gostosamente. Às vezes, dava-me
balas. Habituei-me ao seu carinho e ficava ansiosa por vê-lo passar.
Ele se tornou um grande empresário, líder do grupo Mesquita. Casou-se com a saudosa
Pequetita, da família França, que há pouco partiu para as elevadas dimensões do espaço.
Foi nessa casa que Odete se casou com Gil Paulo Moreira, em 1922. No mesmo ano,
Arnaldo se casou com Sylvia Sandall.
Foi também nessa residência que se deu um fato auspicioso. Mamãe levara um tombo que
causou sérias conseqüências. Papai chamou o dr. Zezinho Fontes para examiná-la.
Ao entrar no quarto do casal, Zezinho deparou comigo, de pé no berço, agarrada às
grades, sorrindo para ele.
Num daqueles arroubos que lhe eram peculiares, Zezinho virou-se para mamãe e disse: -
"Da. Zulmira, segura as suas dores, pois vou fazer uns versos para os olhos azuis dessa menina."
E o fez, no papel do receituário. Acho que isso explica o culto que tenho à sua
memória. |