Em outras partes desta Rota de Ouro e Prata já foram narradas as origens, a evolução e as histórias de alguns navios das armadoras francesas Compagnie
Maritime des Chargeurs Reunis (CR) e Compagnie de Navigation Sud-Atlantique (CNSA). Em 1916, a CR assumia o gerenciamento da CNSA e
de sua frota, passando assim, esta última a ser uma extensão jurídica da primeira mencionada, embora tivesse conservado o nome e as próprias cores. Onze anos mais tarde, em 1927, a CR passou para o
controle da Compagnie Cyprien Fabre, tradicional armadora francesa baseada em Marselha. E nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, foi a vez da Compagnie des Messageries Maritimes (MM) passar para
o controle acionário da Chargeurs Reunis.
Com o decreto governamental de fevereiro de 1948, que visava a reorganização da marinha mercante hexagonal para o período pós-bélico, a Messageries Maritimes recebeu o status jurídico de
companhia para-governamental, saindo dessa maneira do Grupo Fabre.
Este breve relato das diversas vicissitudes jurídicas das armadoras francesas que serviram a Rota de Ouro e Prata dá boa idéia da complexidade e do inter-relacionamento que sempre marcaram a evolução dos negócios
do transporte marítimo da França.
No contexto global da modernização da frota mercante desse país, necessidade quase prioritária após os anos destrutivos do conflito 1939-1945, as armadoras mencionadas passaram a receber subsídios diretos e
indiretos para a construção de novas unidades, seja para o transporte de passageiros, seja para o tráfego de carga.
Cais La Joliette, utilizado pela MM em Marselha
Foto: Messageries Maritimes
Cinco sábios - Surgiram, dessa maneira, entre 1950 e 1952, cinco transatlânticos de porte médio, capacidade mista, destinados a servir a rota entre a França e os países da costa Leste da América do Sul, três
levando as cores da CR e dois da CNSA. Este quinteto de navios, conhecidos como os da série Sábios, foram lançados ao mar entre 1948 e 1951, levando em suas proas os nomes de cinco personagens
famosos do mundo científico-cultural francês.
Receberam os nomes de Lavoisier, Claude Bernard, Laennec, Louis Lumiére e Charles Tellier e realizaram as suas viagens inaugurais respectivamente em
setembro e março de 1950, janeiro, agosto e outubro de 1952 - o primeiro, o segundo e o quinto sob as cores da Chargeurs Reunis, os dois restantes sob as cores da Sud-Atlantique, mas todos os cinco
englobados num mesmo pool de serviço.
Embora não fossem absolutamente irmãos-gêmeos, eram cópias diferentes do mesmo desenho de prancha e produtos de um único estaleiro, o Ateliers & Chantiers de La Loire, do Porto de Saint-Nazaire. As principais
características técnicas e operacionais do quinteto podem ser assim resumidas:
Três conveses de superestrutura, dois mastros, cinco porões de carga com capacidade para 8 mil metros cúbicos, dos quais 3,2 mil metros
cúbicos para produtos frigoríficos, dez paus de carga de cinco toneladas e dois de oito toneladas, seis lanchas salva-vidas. Dois
motores diesel do tipo Sulzer, com oito cilindros e potência total de 10 mil cavalos-vapor que, a 120 rotações por minuto, acionavam dois hélices e davam velocidade máxima de 17 nós. Casco preto e superestrutura branca.
Acomodações para cerca de 400 passageiros em duas classes e 150 tripulantes no total, dos quais cerca de 20 eram oficiais de navegação, de
máquina ou de serviços aos passageiros.
Linha de serviço entre Hamburgo e Buenos Aires, com escalas em Antuérpia, Le Havre, Vigo, Lisboa, Rio de Janeiro, Santos e Montevidéu na
ida e com Dunquerque substituindo Antuérpia na volta. Uma viagem redonda era completada em cerca de 40 dias.
Externamente possuíam as mesmas linhas e a única diferença maior estava na chaminé do Louis Lumiére, que a possuía de forma
arredondada e com acentuada inclinação em seu topo. |
Anos 60 - O quinteto dos transatlânticos serviu a Rota de Ouro e Prata durante toda a década dos anos 50, mas a partir de 1960 a rentabilidade operacional dos mesmos estava fortemente comprometida pela
acirrada concorrência.
No tráfego de passageiros, registrava-se uma substancial diminuição da corrente migratória acompanhada pela diversificação do transporte, com o aparecimento das primeiras linhas aéreas servidas pelos famosos aviões
Super Constellation, ambos os fatores diminuindo o número de indivíduos que atravessavam o Atlântico por via marítima. No tráfego de mercadorias, eram agora os navios de carga pura ou cargueiros especializados a absorverem praticamente todo o
volume de importação e exportação dos países do leste sul-americano.
Como conseqüência, a CNSA decidiu, conjuntamente com a Chargeurs Reunis, retirar-se por completo da linha para a América do Sul. Tal decisão incitou o governo francês a
utilizar sua influência na para-estatal Messageries Maritimes, a fim de que esta armadora voltasse a operar na Rota de Ouro e Prata.
MM retorna - Tal evolução de coisas provocou a venda, em 1961 e 1962, do Lavoisier e do Claude Bernard a armadores estrangeiros e o prosseguimento de suas carreiras
sob outras bandeiras e nomes.
O Louis Lumiére, o Charles Tellier e o Laennec foram adquiridos pela Messageries Maritimes - que, desta maneira, fazia retornar a sua famosa insígnia na Rota de Ouro e
Prata, na qual fora uma das primeiras e da qual se havia retirado 50 anos antes, em 1912. Os cascos dos três transatlânticos foram então pintados de branco e nas chaminés, agora também brancas, surgia o losango branco em fundo vermelho arvorando em
negro as letras MM.
Salvo assim, de qualquer outro destino que não as águas familiares da rota sulamericana, o trio de navios continuou a escalar nos portos de sempre. A Messageries Maritimes recebia do governo
importante subsídio para manter aberta tal linha, tratando-se mais de uma operação de prestígio do que uma verdadeira missão comercial auto-sustentável.
Por volta de meados da década, a direção da MM já havia assumido a decisão de substituir o trio por um único navio de passageiros, que, além de trazer modernidades para o serviço sul-americano,
traria certamente economia de custos. Surgiu dessa maneira o Pasteur, e sua entrada em serviço decretou a venda dos outros três antigos.
Descarga de navios da MM no cais La Joliette, em Marselha
Foto: Messageries Maritimes
Novos destinos - Foi a armadora Compañia de Navigación Abeto S.A., registrada no Panamá, que os adquiriu no decorrer de 1966, rebatizando-os como segue: Belle Abeto (ex-Laennec), Le Havre
Abeto (ex-Charles Tellier) e Mei Abeto (ex-Louis Lumiére). A Abeto S.A. propunha-se a utilizá-los no circuito de peregrinagem muçulmana do Extremo Oriente para a Meca islâmica e, após adquiri-los, ordenou transformações de
estaleiro.
O Belle Abeto recebeu novas acomodações para transportar 100 passageiros em segunda classe e 1.350 em terceira, esta última destinada aos peregrinos. Sua aparência externa continuou, porém, praticamente a
mesma, só que dessa vez levava o casco em cor cinza com faixa escura pouco baixo dos seus bordos e chaminé vermelha com o símbolo de uma âncora.
Afretado a uma companhia indonesiana, realizava viagens entre Jacarta e Jedá, porém, pouco se sabe do seu exato emprego a partir de 1967. O que se conhece, porém foi o seu fim. Em 29 de julho de 1976, encontrava-se
ancorado no porto japonês de Sasebo, aguardando embarque de combustível, antes de zarpar para Jacarta, quando irrompeu violento incêndio na casa de máquinas, que rapidamente se propagou para outros setores do navio.
Apesar da intervenção de nada menos do que 18 embarcações equipadas para a luta contra o fogo, o Belle Abeto ardeu por dois dias antes que adernasse e afundasse nas águas desse porto.
Os demais - O Le Havre Abeto e o Mei Abeto tiveram vidas mais longas, mas o fim foi inglório. A partir de 1980, foram desarmados e ancorados em Tanjunk Priok, uma área do Porto de Jacarta, onde
permaneceram enferrujando, sem nenhum tipo de manutenção e vítimas da obra de saqueadores.
Finalmente, em meados de 1984, foram vendidos a demolidores de navios operando no Porto de Chittagong (Bangladesh), para onde foram levados a reboque. Desaparecido em 1966, o Lavoisier,
do quinteto original da série Sábios, só nos resta mencionar o destino de Claude Bernard. Vendido em 1962 a uma armadora da República Democrática Alemã, denominada J.C Fichte, passou a ser utilizado no Mar Báltico, servindo o tráfego
costeiro da região sob controle soviético. Dezoito anos depois de sua compra, foi enviado para demolição no Porto de Karachi. |