A embarcação operou desde 1888 até meados da Primeira Guerra Mundial A história da emigração italiana para os países
sul-americanos não é o objeto principal deste trabalho e, portanto, não podemos lhe consagrar mais que um pequeno espaço, o suficiente para coligar este grande fenômeno de transumância (migração periódica), sem o qual não teriam existido centenas
de vapores que constituem o tema central de Rota de Ouro e Prata.
O movimento emigratório da Itália para o Novo Mundo pode ser dividido em quatro grandes fases, se considerarmos o ponto de vista do país de origem, e em uma dezena d fases distintas, se considerarmos, caso
específico do Brasil, os diversos movimentos históricos do País e, mais particularmente, os das províncias e estados do Sul receptores dessa emigração.
Sem entrar em particularidades, pode-se dizer que o primeiro grande período na ponta italiana foi de 1870 a 1901, que corresponde, respectivamente, aos anos da entrada em vigor da "taxa
governamental sobre os moídos".
Na ponta receptora brasileira, a este grande período italiano corresponderam dois: o primeiro, de 1870 a 885, e o segundo, de 1886 a 1902. No primeiro, assistiu-se à desintegração da escravatura e a lenta
substituição do braço escravo pelo do imigrante livre, sem, porém, qualquer política imigratória definida.
No segundo, consolida-se e expande-se o uso da mão-de-obra imigrante através da entrada regulamentada e de uma política de integração e distribuição dessa mão-de-obra.
Os emigrantes italianos, em Nápoles, aguardavam ansiosos o embarque nos navios.
Eram difíceis as condições de vida a bordo
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Diferenças sociais - A unificação política das diversas regiões italianas, a partir de meados do século XIX, acentuou as diferenças sociais já existentes em cada uma dessas regiões antes mesmo da Unita
(processo de união). As mais ricas e desenvolvidas aceleraram seu crescimento, enquanto nas mais pobres (econômica e culturalmente falando) deu-se o contrário.
A "taxa sobre os moídos" caiu como uma verdadeira guilhotina sobre essas regiões italianas menos favorecidas, pois a farinha era a principal base alimentar e fonte de renda da classe agrícola mais pobre.
Para os que não a produziam, a farinha encarecia de preço; para os que produziam, a taxa inviabilizava a venda.
Para complicar mais essa situação, o preço de oferta do trigo despencou, nos mercados internacionais, a níveis bem inferiores aos dos custos de produção da Itália.
A crise do trigo e da farinha foi o estopim do êxodo emigratório de então.
Não é por acaso que, nesta primeira fase da emigração peninsular ao Brasil, os que chegavam provinham, em sua grande maioria, das regiões produtoras de cereais: da Lombardia inferior, do Veneto padano e das
províncias meridionais do país, Campania, Lucânia e Calábria.
Nada para impedir - Face ao êxodo, o governo de Sua Majestade, o rei Vittorio Emanuele II, nada fez para impedir a saída em massa dos camponeses e pequenos proprietários agrícolas. Ao contrário, as
autoridades deixavam agir livremente as forças econômicas que os propeliam para fora do país.
Como conseqüência, em torno desse grande êxodo, criou-se (em ambos os pólos do tráfego, o emissor e o receptor) uma verdadeira indústria de aves de rapina, cujos únicos interesses e motivações eram explorar
a miséria existente, fomentando e gerenciando o "sonho das Américas".
Uma das principais ramificações dessa indústria do sofrimento humano foi o setor do transporte marítimo para além do Atlântico, pois emigrante era sinônimo de navio, o primeiro não existindo sem o outro.
Armadores sem escrúpulos e sem controle governamental transportavam, como gado, os infelizes emigrantes para as terras do Novo Mundo. Estes, já subnutridos, não encontravam refeições a bordo; os enfermos, durante
as viagens, não encontravam enfermaria; a promiscuidade e a falta de higiene nos alojamentos de estiva eram assustadoras.
Estes emigrantes do primeiro período italiano foram explorados pela indústria dos abutres do início até o fim, em todas as etapas do longo caminho, e a indiferença dos corrompidos responsáveis (ou
irresponsáveis) governamentais de então foi culpada pelas mortes de milhares desses infelizes no caminho das Américas.
Eram difíceis as condições de vida a bordo
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Início - Carlo Raggio, genovês de origem e residência, criou no porto lígure, em 1880, uma pequena amadora para o transporte de cargas.
Em fevereiro de 1882, conjuntamente com seus parentes, Edílio e Armando Raggio, e outros sócios do setor armatorial de Gênova, Repetto e Carrara, Carlo fundou outra empresa maior, a Societá
Italiana di Transporti Marittimi (SITM), que passou a ser proprietária do vapor Iniziativa, unidade mista, de cargas e passageiros.
No mesmo ano, a SITM passou ordens para a construção de nove vapores mistos a diversos estaleiros do Rio Clyde, navios estes que entrariam em serviço a partir de 1883.
Rios e estrelas - Entre esses nove vapores, seis levaram os nomes de rios italianos e três, os de maior tonelagem, ficaram bem conhecidos na Rota e Ouro e Prata (Sirio, Orione e
Perseo).
Dois anos mais tarde, a SITM foi adquirida (junto com outra armadora italiana, a Rocco & Piaggio Co.) pela Navigazione Generale Italiana, passando assim seus 12 navios a fazer parte dos ativos
desta última.
Carlo Raggio, enriquecido com a venda da SITM, decidiu criar outra empresa de navegação, desta vez por conta própria e sem sócios. Surgiu, assim, a Ditta C. Raggio, fundada em Gênova no decorrer de 1887.
Nesse mesmo ano, foram por ela ordenados cinco pequenos vapores de carga a diferentes estaleiros britânicos, cargueiros que receberiam os nomes de pessoas da família: Carlo R., Fortunata R.,
Armando R., Edilio R. e Raggio.
Fama - Essas novas pequenas unidades ficariam famosas no tráfego da emigração em massa na última década do século XIX, e certamente por razões não muito louváveis.
Construídos para a função de cargueiros, foram rapidamente adaptados para o transporte, em estiva, de um grande número de pobres infelizes, aos quais restava uma única esperança na vida: alcançar o eldorado
latino-americano.
Afretados pela Ditta C. Raggio a outros armadores peninsulares, os cargueiros, transformados em navios de emigrantes, começaram a ligar Gênova a portos brasileiros e argentinos, transportando um número
incrivelmente alto de pessoas.
Em 1888, a La Veloce afretou os dois primeiros, isto é, o Carlo R. e o Fortunata R., colocando-os exclusivamente na linha emigrante para o Brasil.
No início da década seguinte, foi o armador Gavotti a afretar o par para a mesma finalidade.
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Na trágica viagem, pereceram no Carlo R. mais de 300 pessoas,
vítimas da epidemia de cólera |
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Tragédia - Numa das viagens de Nápoles a Santos, o Carlo R. foi protagonista de uma tragédia provocada pelas péssimas instalações de alojamento dos emigrantes e precárias condições de higiene.
Sob o comando do capitão Cremonini, zarpou do porto de Nápoles, tendo a bordo cerca de 1.400 emigrantes, com destino ao porto de Santos, onde nunca chegariam. Corria o ano de 1894 e na Itália existia uma epidemia
de cólera.
Logo no primeiro dia de navegação, surgiu o primeiro caso da doença, a qual, nas condições de apinhamento das estivas, encontrou terreno fértil para espalhar-se.
Equador - Ao alcançar a zona equatorial, dezenas de casos haviam se manifestado e inúmeros já eram os mortos. Ao chegar ao Rio de janeiro, o navio era um sanatório flutuante, com tantos doentes a bordo, que
as autoridades portuárias negaram o ingresso do vapor no porto.
Naqueles idos e em tais casos, o vapor epidêmico era obrigado então a dirigir-se para as proximidades da Ilha Grande, ao Sul da costa fluminense, onde permanecia ancorado, em quarentena, até a solução dos casos
individuais.
O Carlo R. foi ali parar em companhia de dois outros vapores que apresentavam a bordo os mesmos problemas. Estes eram o Remo e o Vicenzo Florio.
Retorno - As autoridades brasileiras, depois de algumas semanas, recusaram-se, muito justamente, a autorizar o desembarque de qualquer passageiro dos três navios e, assim, estes, depois de serem devidamente
abastecidos com carvão, água, víveres e medicamentos, tiveram que retornar à Itália.
Só naquela tragédia pereceram no Carlo R. mais de 300 pessoas, fato que obrigou as autoridades italianas à abertura de procedimento penal contra o comandante Cremonini, o afretador Gavotti e o armador Raggio,
os dois primeiros sendo condenados e o último, absolvido.
Esta triste experiência fez com que Carlo Raggio mudasse de idéia. A partir de 1898, reconstruiu seus navios para o tráfego exclusivo de carvão entre Cardiff e portos italianos, incorporando-os a uma nova empresa
por ele criada, a Societá Commerciale Italiana di Navigazione, e mudando seus nomes.
O Carlo R. foi denominado Hercules e utilizado nessa nova finalidade até 23 de maio de 1916, há 80 anos, data em que foi torpedeado e afundado por um submarino alemão a cerca de 70 milhas (130
quilômetros) a Sudoeste de Gênova, quando se encontrava em viagem de Glasgow a esse mesmo porto italiano. |