Em 1888, um oficial de navegação de nacionalidade sul-africana, um tal Hans Jorgensen, imediato do veleiro de dois mastros Guiding Star, descreveu a viagem de seu navio
até o porto de Santos para o carregamento de uma partida de café. Chegando ao porto santista em março daquele ano, o jovem oficial surpreendeu-se com a existência de mais de 50 embarcações ancoradas no estuário, algumas das quais aí estavam desde
alguns meses! A origem deste fato devia-se à disseminação de uma epidemia de febre amarela que naquela época assolava a região. À medida que as embarcações chegavam ao porto e aguardavam vaga para
carga ou descarga nos precários trapiches de madeira, seus tripulantes iam sendo contaminados pela doença, e assim, lentamente, não havia mais número suficiente de homens para levar os veleiros para fora. Abandonados por sua tripulação, estes
navios ficavam meses e meses fundeados, à espera de uma outra solução qualquer.
O Guiding Star teve melhor sorte, pois seu capitão conseguiu embarcar umas 600 sacas de café e, na falta de braços para carregar outras e considerando-se a precária situação sanitária da cidade e do porto,
decidiu zarpar rapidamente para longe daquele inferno.
O veleiro cruzou em seguida o Atlântico Sul e três semanas mais tarde escalou no porto da Cidade do Cabo (África do Sul). Depois de novo carregamento, o Guiding Star zarpou com destino a Batavia, capital da
ilha de Java (atual Jacarta), então possessão holandesa. A cerca de 500 milhas (926 quilômetros) de seu destino, o Guiding Star foi alcançado pela tragédia da doença. Inicialmente, morreram subitamente dois marinheiros; no dia seguinte, um
outro, com febre delirante, jogou-se ao mar e no terceiro dia o próprio capitão e dois outros marinheiros também faleceram.
A tripulação do pequeno veleiro era de tão somente dez homens e, nessa altura, só sobravam quatro: um cozinheiro francês, dois marinheiros ingleses e o próprio Jorgensen. Mais 24 horas transcorridas e só o jovem
imediato e um marinheiro estavam vivos.
Enquanto isso, o Guiding Star, verdadeiro navio-fantasma, derivava nas águas do Oceano Índico. Jorgensen só se recorda de que, imóvel em seu beliche, febril e aguardando a morte, viu de repente, entre torpor
sonolento e realidade, aparecerem dois homens robustos e o carregarem para o convés.
O Guiding Star acabara de ser localizado por um outro veleiro, o Lancefield, de bandeira norte-americana, e os dois homens eram seus marinheiros. Com o auxílio do Lancefield, o Guiding Star
foi levado até Batavia e lá, naquele porto, ao chegar, os dois marinheiros norte-americanos também foram vítimas do mesmo mal. Jorgensen, ainda vivo, deu o alarme da doença e as autoridades locais decidiram interná-lo em quarentena e pôr fogo no
Guiding Star, com carga e tudo o mais.
Entre 1890 e 1900, as diversas epidemias de febre amarela, varíola, peste bubônica, impaludismo (malária), disenteria, febre tifóide e outras doenças ceifaram em Santos milhares de indivíduos residentes ou de
passagem. As razões dos surtos dessas epidemias estavam na falta de um fiável abastecimento de água potável e na ausência total de uma rede de esgotos. Em 1899, foram feitos os primeiros trabalhos de construção de canalização de esgotos, sistema
ainda primitivo, que não resolveu o problema por inteiro.
A capacidade de transporte do Brésil era de 1.014 passageiros
Foto: reprodução, publicada com a matéria
Boicote - De 1887 a 1892, isto é, por cinco anos, várias empresas de navegação boicotaram a utilização do porto e seus navios foram desviados para o Rio de Janeiro. Uma das empresas que agiram assim foi a
Messageries Maritimes (MM).
Consciente dos graves perigos à vida de seus homens, a armadora deixou de escalar seus vapores em Santos a partir de 1888, tocando somente o Rio de Janeiro. Tal decisão perdurou por bem quatro anos e foi somente
após o aparecimento dos primeiros metros de cais de pedra e cimento da Companhia Docas de Santos que a armadora voltou ao porto santista, no final de 1892.
A lei de 7 de julho de 1887, aprovada pelo parlamento francês, regulamentava o acordo, assinado no ano precedente, entre o Ministério do Mar e os armadores franceses, a respeito da racionalização dos serviços
marítimos do país. Um dos itens desse acordo previa que o tempo de travessia e passagem entre a França e a bacia do Rio da Prata fosse reduzido de pelo menos seis dias, o que significava que os navios da Messageries Maritimes que percorriam a
Rota de Ouro e Prata deveriam navegar a uma velocidade média de 14 nós (26 km/h).
Ora, até essa data, o único vapor da MM que podia alcançar tal velocidade era o Portugal, construído no mesmo ano da entrada em vigor da lei e em previsão das obrigações nela
contidas.
O Brésil, antes de 1903
Foto: Messageries Maritimes
Encomendas - Foi dessa maneira que a armadora se viu na obrigação de ordenar imediatamente dois outros vapores postais céleres para a linha do Atlântico Sul. Ambos foram encomendados em agosto de 1887 a dois
estaleiros diferentes: o Forges & Chantiers de La Mediterranée e o de La Ciotat. O primeiro estaleiro construiu um navio, que deveria ser batizado La Plata, e o segundo, outro, que deveria receber o nome de Brésil.
Porém, em agosto de 1888, antes do lançamento do segundo mencionado, o então imperador Dom Pedro II, acompanhado de sua família, desembarcou em visita oficial no solo francês e, entre outras programações, visitou o
estaleiro de La Seyne, onde se aprestava (concluía) o vapor que receberia o nome de La Plata. Devido a essa prestigiosa visita, a Messageries Maritimes decidiu então inverter os nomes previstos aos dois novos vapores, e assim o La Plata
virou Brésil (fora o navio em que simbolicamente Dom Pedro colocara um arrebite de ferro durante sua visita a La Seyne) e o inverso foi válido para o navio que a MM ordenara ao La Ciotat.
Ambos os transatlânticos haviam sido desenhados pelo célebre arquiteto naval francês Risbec, com casco de aço, proa (frente) lançada, duas chaminés e três mastros com seis caldeiras que, a 80 rotações por minuto,
permitiam obter velocidades médias de 16 nós (30 km/h).
Rebatizado como Dumbea, no porto de La Joliette, entre 1903 e 1905
Foto: Messageries Maritimes
Luz elétrica - Seus interiores foram decorados com um luxo até então desconhecido nos navios destinados a servir a linha Brasil-Prata, com profusão do uso de tapeçarias, sedas e veludos nos salões destinados
à classe superior. Esta primeira classe, no Brésil, tinha capacidade para 127 passageiros, e no La Plata, para 132. O total de passageiros que podiam ser embarcados era de, respectivamente, 1.014 e 967 pessoas. Os dois vapores foram
os pioneiros na introdução de luz elétrica na rota.
O Brésil foi entregue pelo estaleiro à armadora no início de abril de 1889 e no mês de agosto aparelhou de Bordeaux (França) para a sua viagem inaugural à América do Sul, escalando em Lisboa (Portugal),
Dacar (Senegal), Salvador (Bahia), Rio de Janeiro (RJ) e Buenos Aires (Argentina).
O Brésil permaneceu nessa rota até o ano de 1902, efetuando um serviço de linha impecável por qualidade e pontualidade. O único incidente desse período aconteceu em janeiro de 1890, quando, ao sair do porto
de Bordeaux, perdeu-se um de seus hélices, o que obrigou a armadora a cancelar aquela viagem que se iniciava e a colocar o transatlântico em dique seco para os devidos reparos.
Com nova pintura no casco, o Dumbea, deixando o porto de Marselha entre 1905 e 1908
Foto: Messageries Maritimes
Nova rota - Em 1902, o Brésil foi entregue ao seu estaleiro construtor para ser reformado, em vista de sua utilização na linha que a MM servia entre a França e a Austrália. O La Plata foi
também retirado da linha sul-americana com a mesma finalidade.
Ambos haviam se tornado dispensáveis na Rota de Ouro e Prata devido à entrada em serviço do novo Atlantique, e foram rebatizados respectivamente Dumbea e Nera
após as reformas. O Dumbea recebeu em 1905 aparelhagem de telegrafia sem fio e teve seus três mastros trocados por dois outros mais modernos. Permaneceu a serviço da MM nessa linha do Oriente até 1914, quando, com a eclosão da guerra, foi
requisitado para o transporte de tropas, realizando várias viagens no Mediterrâneo.
Em setembro de 1919, quando se encontrava em reformas que o transformariam novamente em transatlântico de linha, inclinou-se dentro do dique seco de Marselha (França) e foram necessárias sete semanas de trabalho
para colocá-lo na vertical.
Foi servindo a linha da MM para o Oceano Índico (Ilha Reunião-Madagascar), de 1922 até 1927, que o Dumbea (ex-Brésil) cumpriu sua última missão de utilidade, antes de ser vendido para demolição, no
mesmo porto onde fora construído e visitado, ainda no berço, pelo imperador do Brasil.
O Dumbea (ex-Brésil), antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial
Foto: cartão postal da coleção de J. C. Rossini
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