A fortaleza de Santo Amaro, que resistiu aos piratas dos séculos XVI e XVII,...
Foto: Alberto Marques, publicada com a matéria
PATRIMÔNIO
O forte de Santos, restaurado?
Elaine Saboya
A notícia é boa, mas foi recebida com algum descrédito.
A Sphan - Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - está anunciando que foram aprovadas verbas para iniciar, "em breve", as obras de
restauração da fortaleza de Santo Amaro, na Baixada Santista, que é considerada "o principal monumento da arquitetura histórica militar em São
Paulo". Agora só falta o Ministério da Cultura liberar o dinheiro - dois milhões de cruzados.
"Vamos registrar a notícia, para cobrar depois", propõem as pessoas que há muito
acompanham a lamentável novela em torno da preservação dos monumentos históricos da Baixada Santista. Uma delas é o professor de Geografia Adamastor
Stoffel, que, num gesto de desespero, em outubro do ano passado, escreveu ao rei Juan Carlos de Bourbon da Espanha, pedindo sua ajuda para recuperar
o forte que o governo espanhol ajudou a construir (ele foi reconstruído depois pelos portugueses).
O apelo de Adamastor repercutiu na imprensa espanhola, o Consulado da Espanha pediu
informações detalhadas sobre a fortaleza, mas o governo brasileiro fechou-se num estranho silêncio. Sabe-se que o governo espanhol teria todo o
interesse em auxiliar na restauração do forte, a exemplo do que já fez no centro histórico de Havana e em outros países, preparando as comemorações
dos festejos do V Centenário da descoberta da América, que ocorrerão em 1992. No entanto, compreensivelmente, a Espanha não pode tomar a iniciativa
de intervir num assunto brasileiro.
A professora Wilma Therezinha de Andrade, uma das mais conceituadas pesquisadoras de
História do País, procura dar um crédito de confiança à Sphan, "um órgão de reconhecida competência técnica". Ressalva, porém, que os recursos
demoraram muito: "Agora, ficaremos numa atitude de cobrança, para recuperar o tempo e o monumento quase perdido".
Um dos mais céticos é o vereador Alcindo Gonçalves, de Santos. Ele integra uma
comissão de vereadores que acaba de concluir um dossiê sobre "a ineficiência da Sphan ao longo dos anos". Esse documento, contendo fotografias dos
monumentos tombados "mas abandonados pela Sphan", será encaminhado hoje ao ministro da Cultura Celso Furtado, ao presidente da Fundação Nacional
Pró-Memória, Joaquim Falcão, e ao secretário da Sphan, Ângelo Oswaldo Araújo.
Quem pesquisar nos jornais dos últimos 15 anos concluirá por que nem todos acreditam
na recuperação da fortaleza, também conhecida como fortaleza da Barra de Santos. Durante todos esses anos, a burocracia, a omissão e as indefinições
foram mais destrutivas para o monumento do que os implacáveis piratas dos séculos XVI e XVII.
Um novo capítulo - Nos últimos meses, porém, a comunidade está mais organizada
e disposta a exigir, cobrar, protestar como nunca. Além dos trabalhos das Câmaras de Santos e Guarujá, um movimento de pressão como nunca se viu na
Baixada foi acionado pelo professor Adamastor. Câmaras Municipais de diversas cidades paulistas, entidades culturais, profissionais e escolas somam
fileiras numa campanha visando pressionar o presidente Sarney para que peça ajuda ao governo espanhol.
Os envolvidos nessa corrente de solidariedade em torno da agonizante fortaleza de
Santos também se encheram de esperanças com a notícia de que a fortaleza Nossa Senhora dos Prazeres, construída na ilha do Mel, no Paraná, será
restaurada com recursos fornecidos pelo Banco do Estado do Paraná à Sphan. Uma das primeiras aplicações da Lei Sarney, em que os gastos são
descontados no Imposto de Renda do doador.
"Todos os recursos são bem-vindos", afirma Antônio Luís Dias de Andrade, diretor da
Sphan em São Paulo, referindo-se a uma eventual ajuda da Espanha ou de contribuintes. "Se algum governo estrangeiro quiser ajudar o Brasil na
restauração, devemos aceitar. Nada de falso orgulho" - sugere Wilma Therezinha de Andrade.
Enquanto o dinheiro não chega, a fortaleza vai gradativamente sumindo na paisagem.
Visitá-la é como entrar no cenário de um filme de horror. Só que o perigo é real. Vultos esquivos acompanham os visitantes mais corajosos que se
aventuram a conhecer o que restou do monumento. As quatro vigias de onde se avista Santos, São Vicente e Guarujá se transformaram em banheiros e
dormitórios mal cheirosos de drogados e marginais. O mato e o lixo cobrem o pátio, os canhões cheios de ferrugem e invadem o prédio em ruínas.
Antes de inspirar sentimentos cívicos e de evocar os fantasmas dos piratas derrotados
em sangrentas batalhas, a fortaleza da Barra desperta vergonha. A burocracia e a omissão dos órgãos governamentais tirou-lhe toda a dignidade. "Eu
evito vir aqui, fico envergonhado", diz o professor Adamastor Stoffel. "Essa história de preservação do monumento histórico no Brasil está virando
piada", desabafa Wilma Therezinha.
Mas, afinal, quem são os culpados por esse estado de coisas? Houve dezenas de planos,
trabalhos na Assembléia Legislativa, declarações de boas intenções, início de obras misteriosamente suspensas. E desculpas, acusações mútuas, jogo
de empurra. Ora falta dinheiro, ora faltam projetos definidos de utilização do forte. Quando sobram projetos, os recursos somem. Quando existem os
dois fatores, as indefinições adiam as obras, enquanto as autoridades são substituídas por outras. E tudo volta à estaca zero, num círculo doentio e
interminável.
... vem sendo derrotada pela ação do tempo
Foto: Alberto Marques, publicada com a matéria
"Temos dinheiro" - No limiar deste novo capítulo temos dinheiro e pelo menos um
projeto. O diretor da Sphan em São Paulo, Antônio Luís Dias de Andrade, afirma que estão previstos dois milhões de cruzados para as obras
preliminares de contenção e estabilização da fortaleza da Barra de Santos. "E os trabalhos, que deverão durar seis meses, serão iniciados nos
próximos dias, assim que o Ministério da Cultura liberar a verba já aprovada", informa Andrade.
O forte ainda está sob jurisdição da Marinha, que em agosto de 83 fez um convênio com
uma entidade particular, a Sociedade dos Amigos da Marinha (Soamar), para que esta restaurasse o monumento. Depois de arrecadar contribuições em
material e em dinheiro de empresários, a Soamar desistiu da empreitada, porque a Sphan não concordou com seus propósitos de transformar o Forte num
clube social, garantindo visitas ao público apenas nos fins de semana e feriados.
"A visitação pública tem que ser assegurada, é nossa primeira exigência em todos os
monumentos restaurados. O Forte não pode ser privatizado. No final de 86, nós pedimos ao Serviço do Patrimônio da União e à Marinha que
transferissem de novo a fortaleza para a Sphan. Ainda não obtivemos resposta", afirma ainda Antônio Luís de Andrade. "Mas, apesar de o monumento
estar ainda sob jurisdição da Marinha, nada impedirá - promete Andrade - de iniciarmos as obras assim que os recursos forem liberados".
Outra etapa vencida: Sphan finalmente anunciou que está pronto um levantamento
arquitetônico e arqueólogo das ruínas. Isso foi necessário, porque as reformas da Fortaleza feitas há alguns anos sem nenhum critério mudaram muito
a fisionomia original do forte. Há cerca de dez anos, ela ostentava nas paredes internas pinturas carnavalescas de gosto duvidoso, feitas pelo
Círculo Militar de Santos. O abandono do forte, que técnicos da Sphan atribuem às indefinições de responsabilidades geradas durante o convênio com a
Soamar, fez desaparecer toda a decoração de carnaval.
O desleixo também fez sumir as telhas e até as escadas que davam acesso ao pavimento
superior e ao pátio. Nos últimos meses, favelados chegam de barco e carregam tudo o que podem. "Não tem importância", justifica Andrade. "A
cobertura de telhas teria que ser alterada mesmo, porque foi feita sem nenhum cuidado, alterando o desenho original. Os danos sofridos pelo forte
não são tão graves assim. O importante é que todas as pedras e a estrutura estão de pé.
Plano de Ocupação - Plano de utilização futura do forte também não falta. O
antropólogo Olímpico Serra, técnico do Ministério de Cultura em Brasília, fez um amplo projeto para a ocupação das fortalezas abandonadas nos 8.500
quilômetros de costa brasileira, depois de restauradas. Ao ser mencionado esse projeto, encaminhado em janeiro ao Pró-Memória, Antônio Luís de
Andrade argumenta que os planos não podem ser impostos de cima para baixo. Defende a necessidade de se discutir um projeto "com a comunidade e a
Prefeitura de Guarujá".
Wilma Therezinha alerta sobre o perigo de se ficar discutindo projetos de utilização
futura pela comunidade, sem partir para uma ação. "Isso é muito vago", diz. E o vereador Alcindo Gonçalves completa: "Debate com a comunidade é
muito bonito, democrático, mas correremos o risco de ficar cem anos discutindo sem se chegar a uma conclusão. A Sphan deve tomar a iniciativa do
debate e das obras, e rápido. Ela é a dona da casa, é a responsável pelo monumento tombado".
"Corremos o risco" - insiste Alcindo - de restaurar a fortaleza e depois abandoná-la,
como aconteceu com a Casa do Trem, em Santos.
"Por falta de uso, esse monumento já teve duas restaurações: uma em 76 e outra em 82.
Hoje ela serve de abrigo a favelados que perderam suas casas numa enchente. Se continuar assim, ou permanecer vazia e fechada, a Sphan terá de
restaurar a Casa do Trem de novo".
Que isso não ocorra com a fortaleza por falta de planos. O antropólogo Olímpio Serra
quer transformá-la num centro de pesquisas de Etnografia e Arqueologia navais, cobrindo a área do Litoral Paulista. O projeto global, avaliado em
4,5 milhões de cruzados, para todo o País, visa "levantar nosso patrimônio histórico e marítimo, passando por embarcações, desde jangadas e
estaleiros até as jazidas arqueológicas que estão sendo saqueadas ao longo da costa e vendidas em leilões", conforme denuncia Olímpio Serra.
"Restaurar, num certo sentido, é fácil", constata o antropólogo. "Lamentável é
transformar uma fortaleza ou qualquer monumento num restaurante ou clube social, ou mesmo num museu morto. Nosso programa, se aprovado, dependerá de
conjugação de esforços e muitos recursos, que teremos que buscar fora, em outros órgãos. Estamos pedindo Cz$ 500 milhões à Pró-Memória".
Durante quatro séculos, defendendo o Brasil das invasões
Foto: Alberto Marques, publicada com a matéria
A História do Brasil, presente no que ainda resta do forte.
Que ninguém duvide da importância da fortaleza da Barra de Santos para os nossos
antepassados. Nada menos do que o padre José Anchieta escreveu ao rei Filipe II da Espanha, em 7 de agosto de
1583, sugerindo a construção de fortes na costa brasileira (estávamos sob domínio espanhol). A carta falava em naus destroçadas, em tempos
"contrários e bravos", em "galeões ingleses que pelejaram com as naus de São Vicente".
Bem antes, em 12 de maio de 1548, Luís de Góis, um simples colono (ou povoador, como
se dizia na época) da Vila de Santos, atreveu-se a escrever a D. João III de Portugal, falando sobre os perigos dos corsários e das terras do Rio de
Janeiro, "contaminadas" pelos franceses.
Em 1583, depois do ataque de Edward Fenton,
corsário inglês, à Barra de Santos, o rei Felipe II da Espanha e I de Portugal autoriza a construção da fortaleza, no morro do Góes. Ela fica pronta
em 1590. Em 1615 ela reprimirá, com seus canhões, piratas holandeses. Em 1710, os
franceses. Durante o século XVII, ela teria servido como presídio político para os inimigos da coroa portuguesa.
O forte foi restaurado em 1885, mas desmoronou. Em 1955, foi reconstruído pelo Círculo
Militar de Santos. A unidade militar fora desativada em 1911, quando suas últimas baterias foram transferidas para a fortaleza de Itaipu, na Praia
Grande. Hoje pouco resta do seu conjunto arquitetônico, formado por um quartel, a capela, a casa do comandante e o paiol de pólvora. A imagem de
Santo Amaro foi salva a tempo: está no Museu de Arte Sacra de Santos. Os azulejos da parede estão sumindo.
Em 1969, houve o tombamento pela Sphan. Em 1981, pelo Condephaat. Em julho de 1979, o
então prefeito de Guarujá, Jaime Daige, anunciava a restauração, com recursos da prefeitura. As obras não começaram porque a Capitania dos Portos
pretendia instalar ali uma unidade da Polícia Naval. Em janeiro de 1984, os jornais anunciavam: "Começa a restauração da fortaleza. Pedreiros já
trabalham". Era a promessa da Soamar, que teria apoio da Sudelpa e da Delegacia Regional da cultura. No entanto, mais uma vez, nada se fez. |