"Vento vermelho", de Manabu Mabe
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Vento Vermelho
Um mural para a capela de Sto. Amaro da Barra Grande
Um dia, recebemos do IPHAN uma solicitação especial:
Mabe foi convidado para produzir uma obra para a parede de fundo da Capela de Santo Amaro na
Fortaleza da Barra Grande, há mais de quatrocentos anos assinalando a entrada do
Porto de Santos, junto ao Canal da Barra. Sentimos imensa alegria em compartilhar deste projeto com o IPHAN.
Recordo-me da visita ao local, da chegada à cidade de
Santos e da travessia de barco que durou cerca de dez minutos até o ancoradouro. Caminhamos pela escadaria de pedras, olhamos ao redor: a
natureza é generosa e a vista maravilhosa.
Finalmente chegamos ao local, muito maior do que havíamos imaginado. Durante toda a
visita, as informações sobre o monumento nos iam sendo relatadas. Dentre elas, uma em especial nos chamou a atenção: as grossas paredes desnudas
foram construídas com cal de conchas e pedras. Chegamos respeitosamente a tocá-las, pois eram de uma beleza inigualável.
Percorremos todos os meandros e caminhos e por fim entramos na Capela. Abrigados pelas
históricas paredes, sentimos a brisa fresca entrando pela única janela e apreciamos a vista deslumbrante do mar. O ambiente era perfeito. Mabe
gostou muito e logo começou a conceber o quadro que iria produzir, confidenciando-me: "eu me empenharei muito para poder deixar minha obra neste
lugar tão maravilhoso".
Mabe não mais retornaria à capela. Porém a sua obra deverá fazer parte deste lindo
cenário para sempre.
Desejo, de coração, que este mural, dignamente concebido por Mabe, possa ser apreciado
por inúmeras pessoas e, assim como ele, transmita a alegria de viver.
02/04/98
Yoshino Mabe
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O canto do cisne do velho mestre
A restauração da Fortaleza da Barra Grande empreendida
pelo IPHAN, com amplo apoio de entidades da Baixada Santista, permite-nos hoje vislumbrar a verdadeira dimensão de sua presença histórica na entrada
do porto de Santos. Do severo maneirismo do primeiro século, passando pela sinuosidade do barroco denunciado no portal da cortadura e na fachada da
capela, até as arcadas ecléticas do alpendre do quartel, o monumento sintetiza a evolução do gosto estético no Brasil até o fim do século XIX.
Como o restauro é um processo crítico de releitura do monumento, ganhou corpo a idéia
de introduzir a marca da contemporaneidade na história da antiga fortaleza, não como imitação do passado, mas como contribuição artística que
simbolizasse a sua nova função social. Pensamos nos vitrais modernos de Chagall e Soulages em igrejas medievais, na belíssima pintura contemporânea
do teto da Ópera Garnier de Paris, iniciando assim a escolha de uma linguagem artística que valorizasse a arquitetura da antiga Casa de Pólvora
convertida em Capela em 1742.
Neste espaço interno retangular despojado de ornamentos, imaginamos ocupar toda a
parede do fundo com um amplo mural artístico de 20 m² de área. Tínhamos dois desafios a enfrentar para a execução da proposta: encontrar um artista
brasileiro internacionalmente reconhecido na arte dos grandes espaços pictóricos, e a tradicional falta de recursos financeiros.
Um espaço destinado à meditação, contemplação e musica induzia-nos quase a imaginar no
mural uma composição mabeana. Um sobrenome, quando instintivamente transformado em adjetivo, passa a conotar um estilo e a caracterizar um
mestre. Assim, em 21/03/97 convidamos Manabu Mabe, maestro da cor e dos amplos espaços, autor do mural para OEA em Washington e do pano de palco do
Teatro de Kumamoto com 200 m², entre tantas outras obras, a conhecer a Fortaleza da Barra.
O velho mestre, ainda enfraquecido pela cirurgia de transplante que havia sofrido,
aceitou o convite e ao atravessar de barco o Canal da Barra na entrada do porto, foi tomado de um entusiasmo juvenil diante deste monumento.
Aquelas seculares muralhas, antes que a densa urbanização ocupasse a orla marítima
depois da Segunda Guerra, representavam o primeiro marco que se avistava para quem chegava ao Porto de Santos - o início do Brasil.
As lembranças quase adormecidas do dia 02/10/1934, a ingenuidade dos dez anos de
idade, o convés do La Plata Maru, o contato com a nova terra cuja nacionalidade posteriormente abraçou, motivaram o entusiasmo de Mabe, que
prontamente ofereceu sua arte como gratidão ao país que o acolheu, no local onde inúmeros corsários, marinheiros, viajantes e imigrantes que como
ele ali aportaram.
Manabu Mabe concluiu o estudo do painel em mosaico para a Capela de Santo Amaro, pouco
antes de falecer em setembro passado: sobre um fundo escuro, penumbra para meditação, surge uma mancha iluminada, vento vermelho, rasgando o fundo
negro da esquerda para a direita, seguindo a luz e a brisa natural que entra pela única janela do ambiente, dissipando-se à direita em cores e
grafismos mabeanos, é "a linguagem da cor parecendo linguagem musical" conforme definiu P. M. Bardi (N.E.: Pietro Maria
Bardi, então curador do Museu de Arte de São Paulo - MASP).
Esta música a cores foi o "canto do cisne" do velho maestro Manabu Mabe, sua última
grande obra legada a todos - Patrimônio Histórico Nacional.
Mabe e o "Vento vermelho"
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Um monumento multicultural
Iniciada ainda no século do descobrimento do Brasil, a
Fortaleza da Barra Grande representa, em seus quatro séculos de história, as complexas relações do Brasil com o mercado internacional.
A invasão da Vila de Santos em 1581 pelo corsário
inglês Edward Fenton motivou a construção da Fortaleza projetada pelo engenheiro genovês Giovanni Baptista Antonelli, sob ordens do almirante
espanhol Diogo Flores Valdez. A unificação das coroas de Portugal e Espanha por Felipe II em 1580 e o conflito entre este e a Inglaterra, em parte
representam a gênese deste monumento militar.
Praticamente inativa no século XVII com o deslocamento dos conflitos internacionais
para a região caribenha, a Fortaleza foi radicalmente reformada e ampliada no início do século XVIII, pelo engenheiro militar francês Jean Massé a
serviço da coroa portuguesa, sob a égide da descoberta do ouro em Minas e Goiás pelos paulistas. Ao contrário das fortificações projetadas sob os
rígidos esquemas geométricos, divulgados pelos tratadistas militares a partir da Renascença, a da Barra Grande se acomoda na topografia acidentada
do sítio à semelhança das implantações medievais.
A Capela de Santo Amaro da Barra Grande, com sua fachada barroca, foi construída em
1742, projetada pelo Brigadeiro Silva Paes aproveitando as instalações da antiga Casa de Pólvora - um depósito de armamentos e munições convertido
em espaço de meditação. Foi reformada indevidamente na década de 50 deste século (N.E.: século XX),
quando acrescentaram piso de ladrilho, telhado com tesouras e azulejos imitando igrejas nordestinas. Em 1990 encontrava-se arruinada, restando
apenas o arcabouço das paredes perimetrais.
As obras de restauração em andamento, executadas pelo IPHAN
(N. E.: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) com a colaboração da Unisantos,
recuperaram a unidade formal da capela, com piso e caixilharia de madeira, forro em gamela, telhado assentado sobre caibro armado, além dos
elementos decorativos da fachada. |