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DIA DE ANCHIETA
Anchieta médico (3)

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Em 1965, a Comissão Nacional para as Comemorações do Dia de Anchieta (9 de junho) promoveu um amplo debate entre intelectuais e pesquisadores nacionais e estrangeiros sobre a figura de José de Anchieta, e dessas conferências resultou o volume Anchietana, publicado naquele ano pela Gráfica Municipal - Divisão do Arquivo Histórico - Departamento de Cultura, da Secretaria de Educação e Cultura/Prefeitura do Município de São Paulo. Um exemplar dessa obra rara pertence ao Arquivo Histórico Municipal de Cubatão, e é dele transcrito o texto abaixo.

Vale a ressalva de que, desde a época em que esta conferência foi apresentada, surgiu uma nova compreensão entre os estudiosos a respeito dos povos indígenas: os pesquisadores já não classificam os silvícolas como incultos, e sim como povos possuidores de todo um universo cultural diferente da civilização européia - não inferior, apenas diferente.

Anchieta e a arte de curar

Dra. Carlota Pereira de Queiroz [*]

Numa terra virgem, habitada por seres humanos segregados da civilização e exposta às ambições e ao desregramento de delinqüentes deportados e de ambiciosos exploradores das suas riquezas naturais, foi decisiva a influência dos padres da Companhia de Jesus. Foram eles, indubitavelmente, os fundadores dos alicerces da civilização brasileira.

Descoberto o Brasil em 1500, não tinha Portugal noção da sua grandeza. Expedições exploradoras se sucederam nos primeiros anos, mais sequiosas de tesouros do que da posse da terra. Mas, os olhos dos seus comandantes se extasiavam diante das belezas e das riquezas que encontravam.

Era preciso impedir que países estrangeiros delas se apoderassem. Por mais numerosas que fossem essas expedições, como os quatrocentos colonos de Martim Afonso, a reação dos habitantes naturais da terra, com os quais não podiam entrar em entendimento, e a configuração da mesma, com uma extensão enorme de costas e um interior inexplorado, de difícil penetração, dificultavam a missão da Mãe Pátria Portuguesa de velar pelo seu novo pupilo. Eram grandes os perigos que corria, entregue a esses aventureiros gananciosos.

Nova tentativa foi ensaiada, a divisão em quinhões que compuseram as chamadas capitanias hereditárias, doadas por El-Rei D. João III a nobres e fidalgos portugueses, que nelas deviam se estabelecer e fundar colônias, garantindo a posse para a Coroa. A resistência dos índios, as dificuldades de colonização, a distância das novas terras entre si, contribuíram para que fracassasse esse novo sistema desagregador. E em 1549 procurou a unificação com um governo geral, mandando para desempenhá-lo Tomé de Souza e escolhendo para sua sede a capitania da Bahia, a primeira alcançada pelos descobridores, que foi por muitos anos a Capital do Brasil.

Com Tomé de Souza teve o rei a feliz inspiração de enviar ao Brasil os padres da Companhia de Jesus, a nova ordem religiosa criada por Dom Inácio de Loyola e que tinha por escopo tudo fazer pela glória de Deus e para maior grandeza da Igreja Católica. Recebiam como os missionários da Índia um cruzado em ferro (cerca de 2 tostões) para a mantença e 5$600 para vestir.

Frei Fidelio Primeiro O.M.C., no seu livro sobre Capuchinhos em Terra de Santa Cruz ocupa-se do Apostolado dos Jesuítas dizendo: "Foram eles os criadores da nossa civilização, garantidores da integridade do solo, ameaçado pela cobiça estrangeira". Afirma ainda: "Maior glória e felicidade trouxe ao Brasil a Cruz dos Missionários do que a bandeira dos conquistadores portugueses".

Era D. João III, na opinião do historiador protestante Robert Shouthey, "o grande benfeitor dos jesuítas, seu primeiro, seguríssimo e mais útil amigo. Principiavão a dar-lhe cuidados as almas dos seus súbditos brasileiros".

E no dizer do grande vate:

"O bom religioso, verdadeiro
Glória vã não pretende, nem riqueza"
(Lusíadas - Camões - Canto X)

Combater a reforma iniciada por Lutero, com o fim de quebrar a unidade da Igreja Romana, era o objetivo dos Jesuítas. E que campo de ação teriam eles mais propício do que esta imensidade de terras, onde tudo estava por fazer? onde os desmandos dos primeiros colonizadores a tinham transformado numa terra de ninguém? e a presença dos indígenas, selvagens e afastados de qualquer religião, dominados por crendices e abusões, vítimas da exploração dos primeiros habitantes, eram o material de que necessitavam os padres para a sua missão de converter os ímpios, de não deixar que fossem seduzidos pelas novas doutrinas?

E assim se iniciou a missão dos Jesuítas no Brasil.

A sua vinda chegou a despertar protesto por parte dos padres já existentes e que aqui tinham vindo com os primeiros colonizadores. Para evitar rivalidades, foi criado em 1551 o primeiro bispado brasileiro, a fim de manter a autoridade eclesiástica, tendo sido nomeado D. Pedro Fernandes Sardinha. E graças a essa providência tiveram os Jesuítas influência decisiva nos destinos da nova colônia.

Eduardo Prado, na sua erudita conferência do terceiro centenário da morte de Anchieta, em 1897, disse: "Na evangelização do Novo Mundo a obra da Igreja foi uma obra de civilização e de humanidade e os seus principais operários foram os Jesuítas".

Entre os padres chegados havia um irmão, Vicente Rodrigues, que tinha a profissão de enfermeiro. Já previam os Jesuítas que além da missão religiosa teriam também de se ocupar de males físicos.

O segundo governador, Duarte da Costa, chegado em 1553, trazia nova leva de jesuítas e juntamente com eles um Irmão, José de Anchieta, com 20 anos incompletos, de constituição franzina, e que por estar sempre adoentado era enviado ao Brasil, pela excelência do seu clima, já proclamado. Tendo feito estudos em Coimbra, foi Anchieta um autodidata em assuntos de catequese e de educação. Pedagogo e sociólogo nato, além de consagrado a Deus, sentiu logo os problemas que teria de enfrentar.

Humilde, iniciou a sua obra de educador, de mestre, de médico, de lingüista, de catequista, de pastor de almas. Só um gênio poderia ter tirado do nada um esboço de civilização, como ele conseguiu fazer. E, ao comunicar ao Reino a sua nova vida, assim se exprimia: "Vivemos nesta Índia Brasílica sob a obediência do Reverendo em Cristo Padre Manoel da Nóbrega". Num golpe de vista sentiu que a nova colônia seria para Portugal a "Índia Brasílica", um repositório de riquezas. Mas, como conquistá-la, enfrentando os nativos do lugar, de hábitos selvagens, avessos a qualquer contato social, falando linguagem indecifrável para ele e seus companheiros, inabordáveis e esquivos?

José de Anchieta
Detalhe de quadro

Claro que não seria só tratando dos seus males físicos, para o que ele próprio dispunha de parcos recursos, assunto já bastante debatido por estudiosos da nossa História. Procuramos encarar essa arte de curar de que lançou mão o grande Apóstolo sob novo aspecto, de que vemos dar um ligeiro esboço.

Sentiu logo como agir diante desses cérebros rudimentares, desses adultos infantis, que iam despertar para a vida civilizada. Missão mais difícil do que a de um Froebel ou de uma Montessori que, ao criar um novo sistema para as escolas maternais e os jardins da infância, encontravam cérebros infantis evoluídos e que já assimilavam no contato com um mundo civilizado.

Tratava-os como crianças. Presenteava-os com canivetinhos, espelhos, gaitas, campainhas e chocalhos. Adestrava suas mãos ensinando a fazer flautas de bambu, tambores de pele, copos de cuia e rosários com as contas para aprenderem a rezar.

Iniciar os selvagens nessa nova vida era já arte de curar, porque era civilizá-los, livrá-los de um estado de atraso mental, tirá-los de uma condição de inferioridade que os reduzia a pobres escravos braçais. E o que era essa inferioridade, senão uma deficiência curável, recuperável? A prova é que o engenho do Padre Anchieta encontrou o caminho para adaptá-los à realidade, para ensinar-lhes um novo modo de viver.

Lançou mão de todos os recursos. Sentindo que a falta de comunicabilidade era talvez o maior fator, na impossibilidade de os compreender e de se fazer compreendido, aproveitou-se dos seus conhecimentos de lingüística, profundo conhecedor do latim, a ponto de ter sido professor dos próprios padres da Companhia, para penetrar nessa língua selvagem e chegar até a dominá-la.

Passava noites de vigília preparando manuscritos que esses olhos infantis acabaram por assimilar, como nos cérebros das crianças conseguimos imprimir a imagem das letras e das palavras. Desse trabalho insano, preparado desde 1560, resultou a Arte da Gramática da Língua mais usada na Costa do Brasil, feita por ele e impressa em Coimbra, em 1595. Tendo se assenhoreado da língua, procurou compor poemas e diálogos, mais acessíveis a essa mentalidade primária. E os índios se extasiavam, vendo nele um ente superior.

Aproveitando-se dos pendores dos naturais para a música, revelados no ritmo das danças, na ressonância dos seus instrumentos musicais de simples percussão, com sons onomatopaicos e monótonos, repetidos, passou a compor melodias simples para os versos que ideara. E assim como se atrai uma criança para um mundo letrado, abriu para a luz esses cérebros atrofiados por falta de função.

Foi, incontestavelmente, a missão de um pedagogo genial, a que se juntou a de um mestre. Como civilizá-los, sem esse primeiro recurso? O que adiantaria dar-lhes casas, roupas, alimentos, remédios, de que não saberiam fazer uso? Com o instrumento da língua, dar-lhes-ia também as primeiras noções de comunicabilidade.

O convívio na escola, a disciplina adquirida, o respeito ao próximo, foram as primeiras lições de socialização. E as cartas que escrevia para o Reino, dando contas de sua missão e relatando aos companheiros as dificuldades que encontrara, compõem um verdadeiro Livro Sagrado do Brasil Colônia, uma Bíblia, por assim dizer, em que revela os costumes, a religião, a história desse povo inculto, que aqui veio encontrar errante e que, como um verdadeiro apóstolo, conquistou para Cristo.

Nessas cartas, mais elucidativas do que a de Pero Vaz de Caminha, a qual foi também incontestavelmente um poema descritivo da beleza, das riquezas, das possibilidades da terra de Santa Cruz, através de um golpe de vista genial, vem também a descrição mais completa da terra que chegou a penetrar, do seu clima, da salubridade, da fertilidade, da sua fauna e da sua flora, com conhecimentos de verdadeiro naturalista. Além de primeiro geógrafo, descrevendo a terra, foi o primeiro sociólogo, estudando os hábitos e costumes dos seus habitantes.

Com sua bondade, Anchieta iniciou um programa de catequese, arrancando os índios da barbárie, ensinando-os, cuidando da saúde do seu corpo e da sua alma, dando-lhes conhecimento do que é natural, do que é dignidade humana, preparando-os para se apossarem de uma terra que eles próprios desconheciam, apesar de serem seus habitantes. De viverem nela, de usar de seus recursos para fazer suas habitações, para tirar fogo, para se alimentarem com seus produtos, com a carne de animais e até de seus semelhantes. Foi Anchieta o primeiro bandeirante, que, penetrando selvas a dentro nessa terra, ao encontro dos índios, tomou conhecimento da imensidade do Brasil e concorreu para sua integração territorial. Os seus trabalhos constituem até hoje os documentos de que lançamos mão para refazer esse período inicial da nossa vida.

Na criação do mundo brasileiro ele representou o papel de um verdadeiro patriarca do Velho Testamento, transplantado para este novo Paraíso e que, sem a longevidade de um Matusalém ou de um Noé, durante a sua curta vida terrena conseguiu mudar a condição humana dos habitantes do Brasil.

A sua arca foi a cabana de proporções exíguas, "feita de madeira e palha", como ele escreve aos Irmãos em Portugal, "onde estamos sendo algumas vezes 20 pessoas, com 14 passos de comprido e 10 de largo, que nos serve de escola, dormitório, refeitório, enfermaria e cozinha", e em que resguardou de perigos a futura raça brasileira.

Por essa descrição sentimos os cuidados de que cercava aquela gente, dando as possíveis noções de higiene, de civilização, de conforto, de sociabilidade. E foi assim que, na sua curta vida, Anchieta criou um mundo novo, o qual assim descrevia: "Esta nação se estende muito por terra a dentro. Seguem-se outras inumeráveis até o Peru" (referência à América Espanhola, anteriormente desvendada aos olhos do mundo). "Esta Piratininga", de onde escreve, "está 24 graus para o meio dia e desde a primeira habitação dos portugueses, que é em Pernambuco, é de trezentas légoas povoada de índios", foram as lições que nos deixou.

Que missão gigantesca se impunha, na sua incapacidade física, na sua pouca idade, na sua saúde precária, de educar e civilizar essa gente tão primitiva e tão inacessível!

"De compleição franzina", escrevia Fernão Cardim para o Reino, "o Brasil lhe foi destinado pelo bom clima", fama que já tinha e que ele próprio proclamava nas suas Cartas informativas. Encarecia esse clima, do qual era um beneficiado, dizendo: "Não se pode facilmente distinguir nem marcar o tempo certo da primavera e do verão". Sugeria que o Provincial de Portugal enviasse para cá todos os "opilados (sic) e meio doentes porque a terra é boa e se curariam com os trabalhos e bondades da terra como temos experimentado nos enfermos que de lá vieram". Conhecia por experiência própria...

"Por outras cartas vos tenho escrito de minha disposição, a qual cada dia se renova, de maneira que nenhuma diferença há de mim a um são, ainda que algumas vezes não deixo de ter algumas relíquias das enfermidades passadas, porém não faço conta delas que se não fossem. Até agora tenho estado em Piratininga em a qual estarei porque a terra é muito boa, e porque não tinha purgas nem regalos de enfermaria muitas vezes era necessário comer folhas de mostarda cozidas e outros legumes da terra... Parece que saro e podeis ver minha disposição pelas cartas que escrevo. Toda Quaresma comia carne, agora jejuo toda. O mesmo digo do Irmão Gregório que veio por doente e ainda não está tão são como eu, todavia não quer dar-me a vantagem".

O que queria, o que ambicionava, era curar essa gente, não só de suas doenças, de seus males físicos e morais, mas sim de todas essas insuficiências que os deixavam à margem da civilização. Outra dificuldade se lhe deparava, fazer o colono português, livre de peias, desregrado, reconhecer também a autoridade eclesiástica.

Em tudo isso consistia a sua arte de curar.

Além de primeiro pedagogo, de primeiro mestre, de primeiro geógrafo, de primeiro sociólogo, de primeiro historiador, Anchieta foi também o primeiro médico do Brasil, mas não médico na significação restrita da palavra, com a função de só curar males físicos, para o que seriam parcos os seus recursos pessoais.

Era muito mais ampla a sua arte de curar, ele próprio o dizia: "Em uma certa aldeia de índios a que vim com alguns sacerdotes aplicar a medicina da alma e do corpo a um enfermo..."

Como aplicar essa medicina, que já era um ensaio de medicina psicossomática, nesses seres incultos, nômades, que não tinham sequer a idéia de posse, de se fixar na terra, de Pátria, de amor ao próximo, de respeito aos seus semelhantes e com os quais não tinha nenhum ponto de contato?

Para atingir o seu objetivo, teve de se sujeitar a trabalhos bem diversos das suas funções de religioso. Sangrava, pensava feridas, dava mézinhas para ajudá-los, para conquistá-los, porque eles próprios não sabiam se acudir uns aos outros, expostos agora a novas moléstias importadas com o convívio dos colonos.

A respeito das plantas e das mézinhas que usava, é rica a literatura médica e profana. O que não resta dúvida é que os próprios índios devem ter ensinado aos padres as propriedades curativas de muitas plantas do País, porque delas lançavam eles mão. Purgantes, lambedores (xaropes) para tosse, plantas que davam alívio à dor, aos males do estômago, às disenterias, às febres e até às depressões, como procede hoje a terapêutica moderna.

Escrevendo aos enfermos em Portugal, assim se exprimia: "Dai graças ao Senhor que vos fez participantes de seus trabalhos em que mostra o amor que nos tem. Estas mézinhas materiais pouco fazem e aproveitam. As medicinas são trabalhos e tanto melhores quanto mais conformes a Cristo".

Donde se conclui que o que buscava era sempre a graça divina. Era a ajuda de Deus, com a qual dava cabo das moléstias também.

Essa a sua arte de curar.

Quando grassavam epidemias, ele se desdobrava porque os processos usados pelos índios na cura eram igualmente bárbaros. "No tempo que estive em Piratininga servi de médico e de barbeiro" (a esses profissionais era atribuída a função de sangrar).

Da epidemia de priorizes (pleurises?), conta que sobreviveram alguns de que se não esperava mais vida, era o mesmo que acometer e derribar, privar dos sentidos e dentro de três ou quatro dias levar à sepultura.

Como não dispusessem os médicos nem de sangradores e sequer de lancetas, o próprio Irmão José, no que foi acompanhado por outros, aguçou o seu canivete de aparar penas (as penas eram de pato) e com ele sangrava os índios. Sendo a prática de sangrar contra os princípios religiosos, porque fazia correr sangue, consultaram Santo Inácio de Loyola sobre a conveniência de a aplicar, ao que ele respondeu que "a tudo se estende o bojo da caridade".

E a propósito refere Anchieta: "As sangrias são aqui mui necessárias porque é muito sujeita esta terra a priorizes (sic) máxime em os naturais quando o sol começa a declinar para o Norte, que é em dezembro e daí por diante, se não acudíssemos com sangrias, assim temos melhor entrada para dar a entender no que lhes leva a saúde de suas almas". Sempre procurando fazer esse uso da arte de curar.

De outra epidemia falam-nos as Cartas de Anchieta, das "câmaras de sangue", nome popular dado às câimbras de sangue, de que diz terem morrido muitos, "tanto que parecia pestilência". "Têm nos dado muito trabalho porque de dia e de noite não cessávamos de os acudir com os remédios que possuíamos, máxime em Piratininga, em que os Irmãos são médicos espirituais e corporais. Bem se havia mister para os sangrar, curar e confessar". (Devia ser disenteria bacilar, porque falavam em febre).

A arte de curar, como vemos, visava sempre a salvação do corpo e da alma. Das bexigas diz que "quando ainda brandas facilmente saram", mas descreve outras, terríveis, em que se cobre todo o corpo de uma lepra mortal "e ocupa logo a garganta por dentro e a língua, de maneira que com muita dificuldade se podem confessar e em três ou quatro dias morrem". Outros que vivem "quebra-se-lhes a carne com podridão e acodem logo as moscas". Costumavam os jesuítas cortar carnes com tesouras e alguns se salvavam. Só a caridade cristã, com o seu espírito de bondade e de humildade, poderia procurar dar alívio a doenças tão repelentes.

A sangria diz ter sido a medicação mais empregada nesses casos também, e o índio dificilmente se deixava sangrar. Na sua primitividade, usava de métodos bárbaros pensando se aliviar. Faziam covas longas, do tamanho de sepulturas, onde acendiam fogo, punham paus atravessados por cima, cobriam de ervas e deitavam-se, esperando que o fogo os curasse, mas acabavam morrendo assados.

Fundação de São Paulo, tela de Oscar Pereira da Silva, acervo do Museu Paulista
Foto-reprodução: Rômulo Fialdini, em História do Brasil, ed. Folha de São Paulo, 1997, S.Paulo/SP

Após a luta com os Tamoios, em São Vicente, uma epidemia de bexigas rebentou também e Jorge de Lima, no seu interessante livro sobre a figura do nosso Apóstolo, diz: "O general dessa nova batalha foi Anchieta. Ele tinha aprendido os remédios da terra e com eles foi mezinhando os pestosos e com lanceta sangrando, mas com rezas e a ajuda de Cristo deu cabo da maligna, tendo o desprazer de ver o pessoal todo marcado de cicatrizes e o cemitério cheio de cruzes". Donde concluímos que já havia o hábito de enterrá-los cristãmente num cemitério - o que concorria, também, para a sua civilização.

Falam as cartas de Anchieta de uma outra moléstia que denomina "cancro" e que parece nada ter de comum com a que hoje se conhece com esse nome. Pelo menos, os remédios que indicam para curá-la não agiriam hoje favoravelmente, pela sua violência. Basta mencionar que aqueciam o barro e aplicavam "nos braços do cancro", como diziam, até que o morto caísse por si.

Com suas práticas mais humanas e mais eficientes, os jesuítas se impunham e se faziam respeitar, usando dessa força como um poder sobrenatural. Anchieta refere-se à cura de feridas com auxílio do mel ou da resina de uma árvore que parece ser copaíba, mas afirma que saram facilmente com a proteção divina.

"Os índios me tinham muito critério porque eu lhes ocorria a suas enfermidades e quando algum enfermava logo me chamavam, aos quais eu curava a uns com levantar a espinhela, outros com sangria e outras práticas segundo requeria sua doença e com o favor de Cristo Nosso Senhor achavam-se bem". Conta de um ao qual teve de abrir a mão com uma lanceta e o braço inchou, tomando mau aspecto. Os índios apavorados e receando contágio vieram pedir que o curasse, mas nenhum quis ao menos procurar mel no bosque para a cura e precisou lançar mão de azeite. Dava-lhe de comer de suas mãos porque o doente estava impedido de o fazer. Os índios se maravilhavam com a sua dedicação e "junto com isso lhes trabalhava eu para curar a sua alma".

Sempre o seu maior objetivo na arte de curar.

Assim descreve a sua ação: "Andamos visitando várias povoações, assim de índios como de portugueses, sem fazer caso das calmas e chuvas, das grandes enchentes dos rios e muitas vezes de noite por bosques escuros".

E tudo isso pelo amor de Deus, pela causa da religião. Essa foi a sua grande obra em favor da Igreja, para conquista das almas.

Referia em suas cartas milagre que operou e a que assistiu, e que revelam o poder que tinha sobre os índios.

A uma criança acometida  de grave enfermidade e que não levaram ao feiticeiro, implorava a mãe: "Padre, cura-me". E termina: "Aplicado pelos nossos Irmãos um certo remédio, recobrou a não esperada saúde". A ação dos padres iniciava-se pelas crianças, sobre as quais gozavam de grande influência. O filho de um índio, aluno da escola, cujo pai fora buscar alívio com um feiticeiro para o seu mal, censurou-o dizendo que não mais entraria na Igreja se assim agisse.

Os próprios pajés, os feiticeiros que curavam e que eram os sacerdotes de Tupã, o seu Deus supremo, tinham grande respeito aos jesuítas. Diz Taunay, no seu livro São Paulo no Século XVI, que "às léguas fugiam os pajés dos padres". E o próprio Anchieta nos conta: "Nenhum deles comparece diante de nós porque descobrimos seus embustes e mentiras", conseqüência da ingenuidade com que agiam. Além de benzeduras chupavam o sangue da parte afetada do corpo e mostravam um pedaço de pau ou de osso, que diziam ser o corpo estranho extraído na operação.

Havia um índio cristão, casado legitimamente, que há muito se achava enfermo. "Fomos visitá-lo", diz o Padre, "a cinco milhas de Piratininga. Consolou-se muito, confessou com muita dor e contrição e o deixamos". Chegou um benzedor do sertão e assim por leviandade do coração, como pelo desejo de saúde, deixou-se esfregar e chupar segundo o rito dos gentios. E como não sentisse melhora, voltou a confessar o seu pecado.

"Curamo-lo", termina, "e daí a alguns dias tornou para sua casa, onde caiu a uma doença incurável e vindo a Piratininga morreu pedindo que o assistissem e enterrassem como cristão, recomendando-nos sua mulher e filhos". A influência dos jesuítas já produzia seus frutos. Depois de conquistar a alma para Deus, penetravam no seu coração, incutindo sentimentos de amor à família, de bondade para com seus semelhantes. Eram os princípios da cristandade.

A fé brotava naqueles entes primitivos.

De duas doentes assistidas por Anchieta, uma delas se restabeleceu dentro de poucos dias. Perguntando-lhe a mãe como estava, respondeu que ia mui bem e que não havia do que se admirar por que o Padre lhe tinha imposto a mão.

"Um índio, por mais féra que seja a sua natureza, trabalharemos com todo o cuidado pô-la domar". Aludia com essas palavras à selvageria dos habitantes da terra.

A maior luta de Anchieta foi contra a antropofagia, vício arraigado naquela gente selvagem e que até a vinda dos jesuítas não procuraram os colonizadores extirpar. Os índios tinham como maior glória comer a carne do inimigo, o qual por sua vez considera fim mais digno do que ser enterrado e suportar o peso da terra. Todos queriam participar do festim, homens e mulheres, velhos e crianças; constava de danças, cantos e libações com vinhos feitos de mandioca e milho fermentado.

Como incutir sentimentos cristãos nestes entes selvagens, que faziam da antropofagia uma festa religiosa?

Iniciavam os jesuítas a catequese pelos meninos, já os criavam na lei de Deus, e também pelas mulheres, mais dóceis e acessíveis, esperando que fossem influir no resto da tribo.

Esse mesmo poder exercia até sobre os membros da Companhia.

Do padre Gregório Serrão, que era enfermeiro no Colégio de Coimbra, mandado para o Brasil muito doente e tido por incurável, disse Anchieta por ocasião de sua recaída: "como quer que falte a mézinha corporal superabunda a celestial, com a qual se curam enfermidades ainda que perigosas, assim que em breve convalesceu e foi para as suas ovelhas".

O padre Luiz de Grã, que morreu nonagenário em Pernambuco em 1613, acometido de postemas no peito, foi mandado ao mar e "o Senhor usou dessa mézinha para o sarar".

Uma catecúmena veio ao encontro de Anchieta pedindo que a curasse de "calenturas" (febre, tuberculose?) de que sofria havia dois anos. "Como a febre já estava arraigada curamo-la mais da saúde da alma, instruímo-la na fé e logo se lhe mudou o rosto e se tornou mais alegre".

Era dessa forma sobrenatural que Anchieta se serviu em sua humildade para aliviar e curar. Essa, a sua arte de curar.

Em um livro de Aléxis Carrel, La Prière, encontramos a seguinte frase: "Les simples sentent Dieu aussi naturellement que la chaleur du soleil où lhe parfum d'une fleur". Assim, aproximava Anchieta os índios de Deus. Continua Carrel: "Tel qui demande d'être guéri d'une maladie organique reste malade, mais subit une profonde, et inexplicable transformation morale. En pratique las activités morales et religieuses sout liées les unes aux autres".

Anchieta sempre agiu assim.

Em carta ao Reino, o secretário do Padre Visitador Fernão Cardim, referindo-se ao Irmão José, dizia: "Estre Padre é um Santo, de grande exemplo e oração, cheio de toda a perfeição, desprezador de si e do mundo, tem feito grande cristandade".

O próprio historiador Robert Southey escreveu no seu livro: "Que Anchieta podia fazer milagres era artigo de fé entre portugueses e índios. Os primeiros mandaram volumes a Roma chamando-o de Taumaturgo do Novo Mundo, com o fim de obter a sua canonização" (nome que com todo o direito lhe é conferido até hoje).

O seu grande biógrafo, ainda seu contemporâneo, o padre Simão de Vasconcelos, diz que se contam aos milhões os milagres de Anchieta. Com a sua força espiritual dominava os quatro elementos da natureza. Vencia os trovões, os relâmpagos, as ventanias, por meio de orações.

Conta numa carta que, estando em Piratininga, o ar começou a turvar-se de repente, nublar-se o céu, amiudarem-se os raios e trovões e o vento Sul a envolver a terra. "A tempestade caiu com tanta violência que parecia ameaçar-nos e, na verdade, se o Senhor não tivesse abreviado a tormenta, tudo cairia por terra e nada resistiria, tamanha era a sua violência".

E o padre Simão refere também que, tendo secado a terra em Ibirapuera (hoje Santo Amaro), após o verão, viu árvores crestadas brotarem de novo, produzindo flores e frutas, depois de percorrida a terra pelo padre Anchieta.

"Os demônios e maus espíritos atacam os Brasis porque não conhecem a Deus. Dão açoites e matam, "do que são testemunhas nossos Irmãos". Conta Anchieta de um fantasma que morava na água e que matava os índios antes da vinda dos cristãos. Gandavo diz que esse monstro foi morto em São Vicente. Outro, porém, vive nas praias, é mortífero, castiga os índios e revela-se sob a forma de um facho de fogo.

Atribuía Vasconcelos poder milagroso à água benta por suas mãos e referia outros milagres com relíquias suas, com o toque de sua mão ou apenas com a invocação do seu nome. E por meio de sonhos, visões e revelações, "forças que não sabemos até hoje explicar", descobria segredos e fazia profecias admiráveis revelando os segredos do coração humano, dizia ainda o padre Simão de Vasconcelos.

A respeito de mordidas de cobras, que atacam nas matas, nos campos e até nas casas, afirma que matam no espaço de 24 horas, mas, aplicando remédio (que não diz qual é), escapam à morte.

Quando se trata de cascavel "paralisam-se todas as ações do corpo" e no fim de horas o caso é fatal. A mais venenosa de todas é a coral, mas menciona várias outras, todas mortíferas (jararaca, cobra chata, cobra fria, cobra pintada), às quais davam nomes os indígenas. Mas, "no meio de uma multidão tão freqüente o Senhor nos conserva incólumes e confiamos mais n'Ele do que em contraveneno ou em qualquer poder humano".

Um tigre resistia a quarenta homens que o atacavam e com a ajuda do Senhor uma flecha dirigida a outro deitou-o por terra.

Sempre a confiança no poder divino. O demônio e os maus espíritos atacam os brasis porque não conhecem a Deus.

Preocupado com a incapacidade dos índios de não saírem do materialismo da dificuldade que encontrava em fazê-los atingir o terreno abstrato, o sobrenatural, disse numa de suas cartas a Portugal: "Os índios hão de se converter por temor mais do que por amor". Temor de Deus, está claro, temor a Deus pelo seu poder supremo, o que procurava incutir no seu espírito, através desses exemplos.

Pelos sentidos, que são as janelas da alma, na voz popular, prosseguia no seu trabalho de levá-los para Deus.

Com as músicas, os versos, o canto, penetravam os índios num mundo desconhecido, num mundo misterioso que os arrancava da monotonia em que viviam, rodeados da suntuosidade de uma natureza que não sabiam ver e nem compreender.

Para eles tudo era material, tudo era palpável, as florestas que penetravam, as feras que dominavam, os inimigos que atacavam, os pássaros que matavam, numa vida rude, puramente vegetativa, animalesca.

O padre Simão de Vasconcelos atribui a Deus até a graça de "ter mantido escondido este novo mundo da América por seis mil anos para depois transplantar para aqui este ser sobrenatural que foi o Padre Joseph de Anchieta".

De tudo ele lançou mão para atraí-los: da magnificência do rito católico, das ricas alfaias, das procissões, das luzes, dos estandartes, dos paramentos coloridos, das cerimônias religiosas, do badalar dos sinos. Tudo deslumbrava esses olhos e esses ouvidos habituados à monotonia de uma natureza exuberante, mas imutável.

O sol, no seu esplendor, iluminando o mundo, a lua misteriosa nas suas mutações, eram as únicas forças que reconheciam e não podiam dominar, chegando a adorá-las como divindades. Mas qualquer cousa de novo vinha agora tirá-los do marasmo em que viviam.

Eram novas impressões, sensações novas que os levavam, que os arrastavam para esse mundo abstrato, para o desconhecido. Era o cérebro iluminado de Anchieta criando uma arte de curar nova, uma "psicoterapia", por assim dizer, que vinha abrir os olhos desses cérebros rudimentares.

Só o espírito genial de um Anchieta poderia criar essa arte de curar que catequizou, que ensinou, que educou, que livrou dos males físicos, dos maus espíritos, os povos primitivos que habitavam o Brasil, trazendo-os para a civilização e incutindo neles noções de amor ao próximo, de sociabilidade, de dignidade humana, de consciência, de elevação moral e espiritual, de temor divino.

Joaquim Nabuco, o grande estadista, na sua memorável conferência do seu tricentenário, assim se exprimiu: "A glorificação de Anchieta é o reconhecimento de nossas origens cristãs, é a renovação do batismo nacional".

Com a sua formação cultural, com o seu espírito iluminado, começou o Irmão José por se ambientar no novo meio para que fora transplantado; aprender com seus habitantes o modo de ali viver; conquistá-los pela língua; familiarizar-se com os seus costumes para educá-los; usar os recursos naturais da terra para curar o seu corpo e a sua alma, para alimentá-los espiritualmente.

Como Irmão da Companhia de Jesus desempenhou a sua tarefa levando também a palavra do Evangelho a essa gente primitiva, que ainda vivia à margem da religião. Ao restituir-lhe a saúde, dava também a graça da Fé.

Essa força do apostolado católico, de que ele lançou mão para conquistar as almas, é a mesma força da Igreja Católica que subsiste cada vez mais poderosa e fortalecida, congregando os povos do universo.

Ha mais de meio século, na conferência inaugural do Tricentenário do Venerável Padre Joseph de Anchieta, como o chama o arcedíago Francisco de Paula Rodrigues, o nosso culto e ilustrado Padre Chico, proferiu as seguintes palavras, surpreendentes de atualidade: "Nesta hora em que vos falo assistimos a um poderoso movimento das Igrejas heterodoxas para se aproximarem da Igreja Católica. Pelo lado religioso é antes um movimento de expansão e de concentração ao mesmo tempo, assinalando a vitalidade do apostolado católico. Pelo lado social e pelo lado político, não há, talvez, um só governo, uma só nação que não deite os olhos suplicantes para o Vaticano, a fim de procurar a palavra que vai resolver todos os problemas".

É a continuidade, a imortalidade da Igreja, dominando, através dos tempos, bárbaros, selvagens e até o mundo atual.

Em 1626, há mais de três séculos, falando do papel que o Padre Anchieta através dos seus milagres operou no mundo, o Padre Antônio Vieira dizia: "Sua canonização se espera e deseja com grande alvoroço de toda esta Província, assim dos de casa como dos de fora; não duvidamos ser um grande meio para uns se emendarem e outros melhorarem".

E nesta expectativa vivemos nós até hoje.

Bem o sentiu o nosso atual presidente, o Marechal Castelo Branco, que, ao instituir neste ano de 1965 o dia 9 de junho, como um preito de homenagem, o dia de Anchieta, teve a seguinte frase: "Nunca o Brasil precisou tanto de proteção!"

Esperamos que a canonização de Anchieta traga para este imenso Brasil, pelo qual ele já tanto fez, a sua proteção, afastando da Pátria Brasileira os perigos que nos ameaçam.

[*] Dra. Carlota Pereira de Queiroz, presidente da Associação Brasileira de Mulheres Médicas.

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