Vida médica de Anchieta
Cantídio de Moura Campos
Não menos afanosa e áspera fora a
atividade do Apóstolo no mister de aliviar sofrimentos temporais. A cabana de madeira e palha no planalto de quatorze passos de
comprimento por dez de largura (N.E.: refere-se o autor à Escola de
Piratininga, no núcleo do que seria a futura cidade de São Paulo) não só era temlo, moradia,
escola, mas enfermaria e botica para os doentes aos cuidados dos irmãos missionários. Na recomendação de Loiola ao preparo dos
noviços para a vida religiosa figurava o estágio em enfermaria como instrução necessária aos cuidados temporais de seus próprios
estudantes. À Enfermaria se dava o mesmo prestígio concedido à Igreja na aplicação dos recursos que a pobreza da Companhia
conseguia acumular, conforme relato do Padre Luiz Gonzaga Cabral em sua obra sobre os jesuítas no Brasil. Nada se lhes deveria
negar, vendam-se cálices e custódias, se preciso, para elas.
Compreensiva comunhão entre a Igreja e a Enfermaria, entre o
espiritual e o temporal, pois a Medicina nasceu nos templos e a exerciam os sacerdotes em sua plenitude. Epidauro foi templo e
sanatório.
Nada estranhável, portanto, que na época da instalação dos
jesuítas no planalto piratiningano, mais destro se apresentasse um deles na função igualmente divina de amainar as dores,
divinus opus est sedare dolorem. Ao jovem irmão noviço recém-vindo, José de Anchieta, coubera revelar mais uma faceta de sua
polimorfa personalidade. O curador dos males físicos integrava o religioso, o catequista, o professor, o humanista em um
espírito universal. Em falta, na região, de médico licenciado, assumira ele este outro apostolado. "Neste tempo que estive em
Piratininga servi de médico e barbeiro, curando e sangrando muitos daqueles índios dos quais viveram alguns de que não se
esperava vida por serem mortos muitos daquelas enfermidades". O gentio o tivera em muito crédito.
O primeiro médico em função estabelecido em terras brasílicas,
Jorge Fernandes, fora por ato de D. João III designado em abril de 1553, seguido logo depois o ato de nomeação de Jorge
Valladares em 1553 (Lopes Rodrigues - Anchieta e a Medicina).
Em Anchieta, tiveram os habitantes de Piratininga e das povoações
circundantes o guia constante no exercício da arte hipocrática. A correspondência enviada, tri-quadrimestral, os relatos aos
companheiros da Ordem, aos padres da Companhia em Lisboa, ao geral de S. Vicente, são, em grande parte, verdadeiras memórias
médicas, comentários sobre doenças e doentes, condições do lugar, do clima. Exalta as "bondades da terra" com clima ameno
favorecendo a cura das doenças e onde o céu é puro, principalmente à noite. Atribui à lua influência nefasta sobre a saúde e
ação corruptora das coisas.
Descreve, com o espírito de um naturalista, as várias espécies
zoológicas, os animais não existentes no reino, com curiosas observações sobre sua biologia. Entre as cobras venenosas destaca a
jararaca, notando que os que por ela picados e da morte escapam, adquirem uma certa imunidade contra as novas agressões, não
sendo estas tão dolorosas nem de tão grave atoxicidade.
Menciona os escorpiões, aranhas, abelhas, macacos, aves, moscas,
mosquitos, veados, ouriços.
Dos animais não conhecidos no reino ressalta o tatu, o tamanduá, a
anta ou tapira, as onças, o saringué, marsupial comedor de galinha exalando forte odor, o que se ajusta ao nosso gambá.
Deixa de se referir a alguns, "encontram-se muitos outros de
diversos gêneros que entendi dever omitir por não serem dignos de saber-se nem de contar-se".
Toma-lhe atenção uma espécie de lagarta "quase semelhante a uma
centopéia", a "tatarana", coberta de pelos de variado colorido, "feio de ver-se", e as de pelos pretos e de cabeça vermelha em
contato com o corpo humano, produzem fortes dores. Usam os índios aplicá-las sobre as partes genitais no intuito de provocar
desejos libidinosos. Em alguns casos surgem lesões irreparáveis dos órgãos genitais, infeccionando-se as mulheres quando por
eles tocadas.
Primitivo barracão de taipa que
serviu como origem da cidade de São Paulo, em 21/1/1554
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril,
S.Paulo/SP, 1969, vol. I
Mais restritamente descreve a flora, encarando principalmente as
plantas de efeito terapêutico. A mandioca, cuja raiz é usada como alimento após ter passado por processo depurador de sua
toxicidade, é das mais estimáveis substâncias nutritivas. Dela se faz uma farinha, a farinha-de-pau, e se extrai um caldo
servindo como veículo de remédios.
O yaticopé, semelhante ao rábano, tem a propriedade de acalmar a
tosse e suavizar o peito. Sua semente é violentíssimo veneno.
Espalhada por toda a parte a viva, que "parece ter sentimento",
porque quando tocada de leve com a mão, as suas folhas se fecham como se colando, e depois se abrem de novo. Retrata a
sensitiva.
Há uma árvore que, quando nela se praticam cortes, deixa transudar
um líquido semelhante à resina e em se coalhando, transforma-se em uma espécie de bálsamo curativo de feridas sem deixar
cicatrizes "ao que se dizia ter-se aqui provado". Trata-se da copaíba, a copaifera multijuga. Há pinheiros altos e
abundantes, de fruto comestível, o ibá.
De certas árvores escorre, quando cortadas as cascas com faca ou
machado, um líquido branco como leite, porém mais denso, que, tomado em pequenas doses, no que couber em uma unha e diluído em
muita água, relaxa o ventre e limpa o estômago por violentos vômitos. Em dose maior, mata. São as características do pinhão
paraguai, o pinus virginalis.
O mararaco de raiz de forma redonda, comestível após assada, e
deixada em maceração ao relento, é bebida para se tomar de manhã. Possivelmente a sisyriunchium fluminensis.
Com forte efeito vomitivo, mas sem perigo de vida, são as raspas
das raízes de uma planta muito encontradiça espalhada pelos campos. Esta descrição se ajusta certamente à ipeca, a cephalis
ipecuacanha.
A Medicina de Anchieta é a Medicina prática, popular dos
conhecimentos e costumes da época na península ibérica, com as restrições impostas pelo meio e auxiliada pela colaboração de
usos indígenas.
A patologia se resume em poucas moléstias: a influência maléfica
do elemento colonizador estava nos primeiros tempos de sua expansão. Em falta de dados mais extensos de sintomatologia das
moléstias, pelas descrições deixadas e da precariedade dos rudimentos semiológicos de que se poderia então dispor, não seria
possível identificá-las com maior precisão e apresenta-se a maioria delas em designações genéricas: febres, febres agudas, dor
de peito, cólicas, dor de pedras, quenturas (queimação), coseduras (coceiras).
As priorizes são comuns e se manifestam de forma epidêmica
e mortífera "quando o Sol torna a declinar para o Norte", em dezembro, à entrada do verão, sendo os nativos mais sensíveis.
Seria provavelmente doença do aparelho respiratório. Talvez a mesma decsrita por Zacatus Luzitanus (Libro de los remedios,
1642), segundo nos relata o professor Fernando São Paulo (Linguagem médica popular no Brasil): "O Priorisis he hu'a
apostema quese faz no peito de sangue inflamado, conhecese pela tósse, dor e febre alta". Usa-se aqui no masculino a designação
da doença.
Há as boubas contagiantes, as anginas ou esquiniencias, as
pleurizes que atacavam os irmãos da Companhia, os tarbadilhos (febre alta e exantemas), traduzindo uma moléstia eruptiva.
A varíola é devastadora em suas formas graves com supuração
cutânea, a corrupção pestilente. A epidemia de 1563 sacrificou uma população já por si reduzida. Apresenta-se também com formas
brandas.
Encontram-se as dores de cólicas, as de pedra fazendo crer-se em
litíase do aparelho urinário. As câmeras de sangue sempre com febre alta, configuram as disenterias e síndromes
disentéricos, manifestando-se em surtos epidêmicos como doença geral, assim denominada naquela época.
As apostemas ou postemas são encaradas com certa preocupação. De
volta a Piratininga, aportou certa vez Nóbrega, "muito doente e magro, as pernas cheias de apostemas com cara e pés inchados".
Aliviou-se logo ali de seus males pelas "bondades da terra" e poderia "andar os caminhos visitando a todos e com isto se faz
mais são que quando repousa, salvo se as águas tratam mal os corrimentos".
A "corrupção dos membros secretos, muito comum nas mulheres do
Brasil, ainda virgens", com exalação fétida, vitimou uma mulher de quarenta anos, amasiada com um português e ainda gerando
filhos. Neste caso poder-se-ia pensar em carcinomatose do colo uterino, mas "como é muito comum nas mulheres brasílicas (ainda
virgens)" e não se lhes registra desfavorável prognóstico nos demais casos observados, impõe-se admitir causas outras, talvez
corrimentos parasitários.
Refere-se a um cancro "que aí é de difícil cura", e aqui de
fácil tratamento pelos indígenas. Para tanto colocam barro amassado tão quente quanto possa a carne suportar sobre os braços ou
pernas do cancro, os quais morrem pouco a pouco. Repete-se este curativo quanto for necessário até, mortas as pernas ou braços,
o cancro se solta e cai. Prova este tratamento em uma escrava dos portugueses.
Fala também de uma doença contagiosa parecida com lepra que
existia entre os aborígines.
Não falta a descrição de doentes de espinhela caída, "dos quais eu
curava com levantar a espinhela". É doença considerada como uma anomalia do apêndice xifóide, de nome popular espinhela. Esta
doença, ou melhor, esta síndrome, é muito complexa, apresentando uma gama variada de sintomas, conhecida em Portugal e outros
países, à qual o povo emprestava grande significação. A espinhela não poderia cair, afirmavam muitos autores, mas relaxar-se ou
curvar-se, por várias causas como tosse violenta. Agindo sobre órgãos sotopostos - estômago, diafragma, pâncreas, fígado -,
causa gastralgias, vômitos, várias outras perturbações respiratórias, pancreáticas, hepáticas. Hoffmann diz ser a causa de uma
languidez de todo o corpo. Era, enfim, o despejo de muito daquilo que não se poderia enquadrar em outras formas nosológicas
correntes. Tratavam-na com emplastros, fumigações, beberragens, manipulações mecânicas e até mesmo benzeduras. Este conceito de
espinhela caída já existia entre os ameríndios antes da chegada da ação civilizadora.
Assinala o professor Fernando São Paulo a afirmativa de Chermont
de Miranda de que antes de Colombo ter aportado a uma das Antilhas, a espinhela caía - pissum hoá - e já os pajés e os
feiticeiros a levantavam - pissum upi.
O envenenamento produzido por mordedura de cobra ou de outro
animal peçonhento é tratado com caldo de mandioca, exposta ao fumo depois de podre e bebido em água ou vinho, "remédio
pressentíssimo contra peçonhas". A prática indígena, nestes casos, pelos pajés ou feiticeiros, consistia em chupar a ferida
produzida. Com o sangue aspirado viria o veneno introduzido antes de sua penetração no organismo. Por muitos longos anos fora
método presente na medicina rural destes últimos tempos.
Ação médica desempenhada em falta de outro que a praticasse, o
fizera clínico, cirurgião, obstetra, pediatra, higienista, artífice enfim, de todos os ramos da arte de curar. Até há bem pouco
assim se portava o médico, tratando de tudo e a tudo procurando curar, sem limite de especialidade. A clássica placa "médico,
operador e parteiro" é ainda dos nossos dias.
Os índios, em geral, nota o venerável, como também o fizeram
Jean de Lery, missionário calvinista aqui aportado, e o próprio Pero Vaz de Caminha, tinham uma sadia estrutura. Pouco se
notavam entre eles coxos, tortos, surdos, mudos, ou outras anormalidades. Os que as apresentavam ao nascer eram logo
sacrificados.
Os meios terapêuticos não eram variados. "Temos poucas medicinas",
queixa-se o Apóstolo, e "a botica é pobre". Milho cozido e mel e o caldo de mandioca seriam veículos das tisanas em vez do vinho
de mandioca, de milho ou de frutas que os indígenas preparavam para regalo.
As raízes de diversas plantas tinham efeito purgativo e vomitivo,
como acima se viu. São as feridas tratadas com aplicação de mel, azeite, bálsamo de certas árvores e se curam "com a proteção
divina".
Como cirurgião, pensa feridas das flechadas em combate ou por
qualquer outro acidente. Era a sangria a terapêutica heróica e a quase tudo tinha aplicação e em casos sem mais nada a fazer.
Aos doentes in extremis a flebotomia era a última terapêutica enquanto se lhes procurava a conversão cristã pela
confissão ou pelo batismo. O sangue derramado tinha aí o símbolo de um sacrifício purificador. "Curando-os e sangrando-os,
máxime no tempo de morrer". A sangria era a melhor terapêutica para as priorizes e para a varíola. O mesmo doente a
recebia, por vezes, repetidamente num tratamento.
Servira-se, a princípio, na falta de lanceta, de um bem afiado
canivete de cortar penas.
Vem tendo a sangria, pela evolução da Medicina, períodos de
esplendor e decadência, atingindo seu apogeu em França no século XVIII com Broussais, empregando-a como ação curativa e
profilática de uma maneira muito generalizada. É uma página vermelha na história da Medicina.
Proibida pela Igreja a efusão de sangue provocada, houve consulta
ao Superior Patriarca Inácio, em Roma. A resposta, segundo Simão de Vasconcelos, fora o seguinte: "Quanto a sangrias digo que a
tudo se estende o bojo da caridade".
A sua aplicação perde-se na história brumosa dos costumes médicos.
Teria sido uma imitação do instinto animal o uso desse processo pelo homem. Conta Plínio, o antigo, nas Origens da Medicina,
que o hipopótamo, ao sentir-se muito gordo e pesado, vai à procura de uma haste mais ou menos aguda em função de instrumento
cortante e aí se apóia, promovendo em ponto determinado da perna a ruptura de uma veia por onde se escoará certa porção de
sangue, aliviando-se logo em seguida.
Os primitivos do País já a praticavam, fazendo a flebotomia com
dentes de coelho ou de cobra, ou com cristal de rocha. (Lopes Rodrigues).
O cirurgião usa também a tesoura - Da varíola brava, a
"corrupção pestilente". Faz uma descrição de como se apresenta o doente: "Cobre-ser todo o corpo dos pés à cabeça de uma lepra
mortal que parece couro de cação e ocupa logo a garganta por dentro e a língua de maneira que com muita dificuldade se podem
confessar; em três, quatro dias, morrem; outros que vivem mas fendendo-se todos e quebra-se a carne pedaço a pedaço com tanta
podridão de matéria que sai dela terrível fedor de maneira que acodem-lhe as moscas como à carne morta e apodrecida sobre eles e
lhes põe gusamos que, se não lhes socorresse, vivos os comeriam". Intervém nesses casos cortando com tesoura as partes
apodrecidas "alimpando as bexigas", deixando-os em carne viva, "cousa lastimável de ver", lavando-os com água quente e os
salvando "pelas bondades do Senhor".
Com lanceta abre uma palma da mão abcedada "empolando-se até os
hombros de uma inflamação". Com pedaço rasgado de uma camisa envolve a ferida besuntada de azeite e salva o doente.
O obstetra cuida das parturientes na intenção de batizar-lhes o
filho e a elas de promover-lhes a conversão cristã se já não a tiverem realizado. Sobre elas colocam relíquias de santos e com
isso sentem melhoras e parem normalmente.
Celebrando missa em uma cabana, ouve, vindas de fora, vozes e
ruídos de cavar a terra, e como os índios costumavam fazer louças, julga seriam para esse fim. Terminadas as orações, a uma
índia aí chegada, pergunta o que se teria passado. Conta-lhe que se fizera enterrar um menino mui formoso, parido sem dor por
uma índia, cerca de dez passos dali. A causa teria sido ser a criança um monstro, produto da mistura de "duas sementes", pois a
mãe, deixada pelo marido, e já prenhe, com outro se casara. A crença indígena não permitiria a sobrevivência nessas condições e
impunha ao recém-nascido o seu sepultamento.
Vai então, correndo, molhar um pano em água e cavando a terra sem
confiança na vida da criança por estar já enterrada por cerca de meia hora. Encontra-a com movimentos, mas a julgara já
expirando quando as mulheres que o cercavam lh'o afirmaram terem visto viver enterrados até por um dia. A um selvagem que ali
acorrera com uma espada de pau para quebrar a cabeça do menino, impediu que o fizesse, pois tomaria conta do recém-nascido como
filho.
Dera isso motivo de gracejo entre todos, o padre já tinha filho.
Ao pretender cortar o cordão umbilical muito junto da barriga, uma velha lhe tomara a mão dizendo que, ao cortar por ali, o
menino morreria, e o ensina como fazer. Entregue às amas que conseguira arranjar, viveria a criança mais do mês que durou, não
lhe viesse faltar teta pra alimentá-la.
Este episódio faz lembrar um outro passado com antigo professor de
nossa Faculdade de Medicina, por ele mesmo narrado. De recente formatura, com excelente cabedal clínico, mas sem nenhuma prática
obstétrica, fora chamado a acudir uma parturiente em cidade do interior onde iniciava clínica. Como todo o médico era de
atendimento geral, não lhe ficaria bem recusar. Ao ter de seccionar o cordão umbilical, surge-lhe grande embaraço sobre o ponto
onde fazer, e por via das dúvidas, deixa dele uma grande extensão. Perguntado pela "comadre ou aparadeira" que o auxiliava, se
não seria grande demais o coto deixado, respondeu sem hesitar para não deixar suspeita de sua inexperiência - é o novo processo
alemão.
Não descuida da dieta e da alimentação aos seus doentes. Para
estes, recomenda a carne de porco e depois a de galinha como melhores. A carne de vaca não fazia bem aos fracos e aos velhos.
Também a de peixe era útil, muito saudável nestas regiões, podendo ser comida o ano todo, pois a sarna que a pode estragar,
"aqui não existe". As raízes de mandioca, das quais se faz uma farinha, a farinha-de-pau, e se extrai suco servindo para veículo
de remédios, constituem a principal alimentação.
São também apreciáveis e de boa nutrição o aipim, a batata, o cará
e o manganã. Não seriam estes certamente que comiam os santos anacoretas do deserto, comenta Anchieta, pois são tão bons que os
sustentariam sem milagres.
Não bastasse o trabalho exaustivo da catequese e de atendimento
aos doentes, silvícolas e também portugueses, haveria de lutar contra obstáculos humanos que lhe antepunham duras dificuldades a
vencer. Tivera a enfrentar pajés e feiticeiros, de influência sobre o gentio, tidos por possuírem "a vida e a morte em seu
poder". Procurava desmascarar-lhes os embustes e mentiras, por vezes cara a cara com eles quando conseguia evitar-lhes a fuga de
sua presença, como geralmente acontecia. Nessa disposição pertinaz, cuidando e curando o indígena, fora dele recebendo confiança
e solidariedade. Mamelucos de povoações vizinhas, como os de Santo André, ajudados pelos pais portugueses, pretenderam ruir a
grande obra de catequese, induzindo os aborígines de Piratininga a eles se reunirem, voltando aos antigos costumes. Seriam os
jesuítas a causa de todos os males. Até oposição de sacerdotes, dos quais Nóbrega "ouvia coisas feias", não lhe faltara no
seguimento do grande ideal que vinha realizando.
Desdobra-se assim ao nosso julgamento a obra ingente do apostolado
médico de Anchieta, ao lado da missão evangelizadora.
Tão árdua tarefa, e continuada sem esmorecimento tempos afora, não
se diria a de um ser humano de ar doentio, de físico franzino, selado pela giba que uma disposição orgânica lhe imprimira na
postura.
Perambulava com alpargatas de cardos bravos por ele mesmo feitas,
pelas povoações vizinhas, com calmas e chuvas, até mesmo de casa em casa nos períodos de temporais calamitosos e de epidemias,
exposto aos perigos dos caminhos ínvios e às ameaças de contínuas provações para curar o corpo e poder salvar a alma. Os doentes
são muitos nessas oportunidades e os Irmãos que o auxiliavam são poucos, queixa o taumaturgo. "Em nós têm médicos, boticários e
enfermeiros, nossa casa é a botica de todos". Além do planalto, percorrera o Brasil, catequizando, pacificando, ensinando,
curando e criando hospitais. Atribui-se-lhe a fundação do Hospital da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, por volta de
1582, quando ali recebera e tratara os homens da frota de Valdez.
O trabalho o excitava no cumprimento dos deveres e, quando chamado
à noite, logo se levanta e se reanima, como restaurado das muitas canseiras sentidas ao deitar. Sem esperar gratidão humana ou
outra qualquer retribuição terrena, no iluminado ascetismo do seu sacrifício, fez obra tão grande no exercício da Medicina para
ser cognominado por Lopes Rodrigues, em sua erudita e magnífica obra - Anchieta e a Medicina -, o Galeno Jesuítice do
Brasil.
Fôra sem dúvida apóstolo também na Medicina. Exerceu-a como faria
um licenciado adaptado às condições do meio e da época, até mesmo porque muitos daqueles que aqui se deram à profissão não se
impunham por melhores conhecimentos, o que valeu do bispo do Pará, Frei Caetano Brandão, causticante conceito: "É melhor
tratar-se a gente com um tapuia do sertão, que observa com mais desembaraçado instinto, que com médicos de Lisboa". (Alcântara
Machado - Vida e Morte do Bandeirante).
Se tivera êxitos curando muitos com moléstia da qual
costumadamente outros morriam, os insucessos da salvação temporal forneceram-lhe as recompensas da conversão cristã. Em alguns
casos, entretanto, não conseguira vencer-lhes a resistência pagã, como o daquele rapaz, em condenação à morte, cingido pela
cintura por cordas estiradas por três ou quatro mancebos, recusara o batismo oferecido dizendo que os que o aceitavam não
morreriam como valentes de morte-formosa.
Seria a moléstia castigo ou galhardão do Senhor. "Este ano nos
castigou a Divina Justiça com muitas enfermidades". Ao amigo e protetor, Martim Afonso, o assim batizado cacique Tibiriçá
refere: "Quis Deus dar-lhe o galhardão de suas obras, dando-lhe uma doença de câmeras de sangue", o que lhe permitiu confessar e
reconciliar-se de seus passados pecados.
Quando nada mais poderia fazer com a Medicina corporal, valia-se
então somente da Medicina espiritual, tão rica ao consolo e às angústias do moribundo.
Curar unicamente os males físicos é fazer uma Medicina parcial e
unilateral sem integrá-la na sua verdadeira finalidade. Também tem ela de ser ao mesmo tempo espiritual e social para
conceituar-se como filosofia da mais alta expressão para a felicidade humana.
Sem invocação de predestinação taumatúrtica, praticou uma Medicina
racional e humana, menos por ela própria do que para o preparo a se proceder para a recuperação da alma com a conversão cristã,
objetivo precípuo de sua vocação missionária. "E fazemos isto na intenção de preparar para o recebimento do batismo". Neste
propósito, a evangelização se fazia em função da Medicina.
Este é o sentido da Medicina do evangelizador das selvas, em plena
floração de seu misticismo criador. |