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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - J. LUSO
João Luso (8)

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Nascido em Lousã, em Portugal, em 12 de junho de 1875, Armando Erse de Figueiredo atuou como jornalista e escritor em Santos e na capital paulista usando, entre outros, o pseudônimo literário de João Luso. Faleceu no Rio de Janeiro em 6 de janeiro de 1950, deixando grande número de obras publicadas.

Em fevereiro de 1906, a revista Serões, publicada em Lisboa (Portugal), em seu número 8/páginas 38 a 44 da edição (117 a 123 da série), publicou reportagem de João Luso sobre as transformações urbanas que ocorriam na então capital brasileira, o Rio de Janeiro (acervo Hemeroteca Digital/Lisboa - ortografia atualizada nesta transcrição - acesso: 6/6/2014):

Imagem: capa da publicação

A nova Paris da América do Sul

Atuais transformações e embelezamentos do Rio de Janeiro - Uma das mais encantadoras cidades do mundo

O Rio de Janeiro passa neste momento por uma transformação assombrosa. Quem daqui saiu há um ano e agora volta,julgando encontrar ainda o "eixo" da grande avenida, inaugurado em novembro de 1904 e então resumido a uma aberta tortuosa e lúgubre, furando e alongando-se entre as ruínas do casario demolido, chega àquele ponto da Rua do Ouvidor em que a velha Rua dos Ourives vinha fazer esquina, e solta uma exclamação de deslumbrado, estarrecido espanto.

Por ali fora, dum lado e outro se estende uma larga calçada de paralelepípedos unidos, tão regularmente casados que formam uma lisura de soalho, por onde as carruagens rodam serenamente, sem ruído, e, à noite, os rapazes do antigo Rink vêm deslizar, bamboleantes e lânguidos, sobre os seus patins; uma fila de postes elétricos, de três focos, corre pelo meio, a perder-se de vista,num afastado revérbero cor de pérola; e, dos lados, há ainda, a curta distância uns dos outros e ardendo por cinco bicos Auer de rutilante energia, os combustores de gás, pesadões como trambolhos ao lado de toda aquela eletricidade, mas como se não sentissem, tal a alegria da sua luz dourada, o vexame do seu anacronismo.

E as casas, os soberbos e airosos palacetes, que à esquerda e à direita se levantam, já concluídos, já com a última demão nas fachadas, já ocupados por lojas de modas, armazéns de atacado, chapelarias, cafés, jornais, companhias de seguros!

Onde, há meses apenas, tudo eram destroços, traves e pilares pelo chão, pedaços de parede à espera do último golpe do camartelo, montões de tábuas velhas, montões de entulho - tal descalabro, enfim, e tão ruinoso aspecto, que houve viajante que perguntasse se aquilo estava assim desde os bombardeamentos da revolta de 93 (N. E.: Revolta da Armada, de 1893) - enfileiram-se agora duas idas de construções modernas, de alto cunho artístico, do mais belo gosto arquitetônico, da mais variada e encantadora propriedade de estilos e de tons, dando a quem de repente ali desemboque - ou tenha subido pela Rua Sete de Setembro, estreita como um beco e fedendo à cebola dos armazéns de secos e molhados, ou pela da Alfândega, com as suas tradições de respeitável via comercial, ou mesmo pela nobre e opulenta Rua do Ouvidor, a "grande artéria" da política e da moda - a impressão atordoante de outra terra, outro país, outra gente, outra civilização.

O Rio de Janeiro faz agora lembrar um taciturno velhote, escalavrado e tolhido, vergando ao peso dos trabalhos, entregando a face ao sulco fundo dos desenganos - e que, de repente, encontra no seu caminho, cascateando e toda se oferecendo ao desespero dos seus olhos, um farto manancial da água maravilhosa de Juventa.

Dá um passo, alonga os lábios, numa ânsia, para o líquido cristalino que o deslumbra, lhe promete a ressurreição das forças e a volta das ilusões; e sorve, sorve à pressa, com uma sofreguidão em que há o gozo do líquido restaurador e ao mesmo tempo o pavor de que ele subitamente deixe de derivar, por uma pirraça mitológica - ou política...

E então, enquanto por entre os seus lábios corre, generosa e inebriante, a linfa da energia e da graça, vai-se o seu corpo de gigante recompondo e embelezando, conquistando uma alma nova e chamando outra vez a si todas as forças perdidas...

E essa ressurreição esplêndida por toda a parte se manifesta: no viço e no perfume dos jardins que rebentam onde, há meses, o capim assolador afeiava as praças abandonadas; na soberbia dos altos edifícios que se levantam do terreno dos casebres arrasados; na magnificência dos cais que sufocaram o espreguiçamento moleirão das ondas sujas; e na garridice da Avenida à beira-mar, que já por toda a velha praia de Botafogo faz faiscar ao sol a areia dourada do seu macadame e ao longo da qual, por uma predileção de luxo e elegância só agora estabelecida, passam, nestas primeiras noites dum verão que tão áspero se anuncia, seletos ranchos em toilettes claras, palrando e refrescando na vizinhança do mar, ciclistas esbaforidos e tesos cavalheiros, breaks, vitórias, automóveis.

E agora se trava a luta de rivalidade - fecunda, grandiosamente fecunda! como dizia o conde de Gouvarinho - entre as duas avenidas, a que atravessa a cidade e a que acompanha o litoral; a Avenida da União que tem por padrinho o ministro dr. Lauro Müller e a Avenida Municipal, a que o prefeito dr. Pereira Passos dá todo o cuidado e carinho dum extremoso pai, a se rever e a se enternecer na sua obra; a Avenida comércio, higiene, civilização e a Avenida passeio, luxo, embelezamento; a Avenida Central e a Avenida à Beira-Mar.

A esse combate glorioso assiste, sorrindo ora a este, ora àquele gladiador, o dr. Rodrigues Alves, presidente da República; e, à volta, o povo entusiasmado, o povo maravilhado de ver que tanta coisa se fez em tão pouco tempo e já convencido - porque ao princípio desconfiava, torcia o nariz, abanava a cabeça no mais sombrio dos ceticismos - finalmente convencido de que a sua cidade vai ficar um brinco e disputar a Buenos Aires o cetro e o trono de rainha da América do Sul, aplaude e levanta vivas, cai em contemplação, de novo se arrebata, esfrega os olhos com medo de estar sonhando e torna a berrar de júbilo, e só se sacode do seu êxtase para recomeçar as suas aclamações.

Quando a primeira vez lhe disseram que ia ver o Pão de Açúcar da Rua do Ouvidor (os brasileiros daí compreenderão este cúmulo), o bom povo, que não gosta de caçoadas, se escandalizou seriamente e quase levou os dedos à boca, para vaiar tão inverossímil carapetão. Pois viu-o, lá ao longe, de sentinela à Barra e não apenas da Rua do Ouvidor, muito mais de traz, da estação de barcos da Prainha - porque a Avenida Central, rasgando a cidade pelo meio, estendeu essa reta de mar a mar! Viu-o tão distintamente como eu estou vendo estas tiras de papel; e, desde então, acreditou em tudo, teve confiança em tudo, esperou tudo e não mais cessou de embasbacar e de se manifestar.

Agora, anda dum lado para o outro, curioso e frenético, a observar a faina colossal, a acompanhar todas as inovações que vão surgindo; acode a todas as inaugurações, comparece a todas as pedras fundamentais, reúne-se em magotes entusiastas, diante de cada prédio que se vai libertando do seu andaime.

E compara-os, analisa-os, faz crítica: o edifício do Paiz, imponente e majestoso, no qual o arquiteto Morales de los Rios esgotou todo o seu saber técnico e toda a sua imaginação de artista; a casa de flores Rosenvald, graciosa como um jardim de luxo, trabalhada como uma renda; o Bastidor de bordar, decorado pelo magistral pincel de Henrique Bernardelli; e outros prédios monumentais ou simplesmente belos que se levantam, um a um, na nova cidade cheia de esplendores...

Quem não concorda com o povo é o conselheiro Andrade Figueira, que pelos A Pedido do Jornal do Commercio vem de tempos a tempos resmungar a sua incondicional reprovação a tudo. O conselheiro Andrade Figueira é monarquista; e, já no tempo da monarquia, se salientava pelo seu intransigente amor a todas as tradições; pertencia ao partido conservador, guerreava as concessões ao liberalismo e ainda hoje conserva as suas opiniões militantes de escravocrata.

Os cidadãos moleques, como ele um dia os d[en]ominou, ficaram-lhe atravessados na garganta, para sempre. Agora, os artigos ineditoriais, em que desabafa o seu descontentamento, atacam ministros e prefeito, acusando-os do esfacelamento da cidade e ameaçando-os com tal descalabro financeiro que, no seu modo de ver, já a bancarrota se anuncia e já a Europa prepara os seus canhões, para vir às águas da Guanabara, cobrar a dívida do Brasil pelo mesmo sistema de violência e vexame infligido à pobre Venezuela.

- E, isto, para quê? pergunta o articulista implacável aos leitores do Jornal. As ruas do Rio de Janeiro devem ser estreitas, o mais estreitas possível; o saneamento é uma léria; dantes, não se pensava em nada disto e vivia-se perfeitamente; o Brasil prosperava; o câmbio se mantinha a 27; a nação era grande e respeitada pelas outras nações!

- Tão cerrada e irrespondível argumentação se tornou, na sua pena que a repete sempre, inesgotável; e não se julgue que passa dali para o cesto dos papéis, inteiramente despercebida e sem aplauso. Há quem concorde com o conselheiro Figueira, quem pense como ele na ruína do país, quem se doa de todo esse dinheiro esbanjado, como se ele lhe saísse das próprias algibeiras; quem chegue a odiar o ministro por esta febre de reformas e aperfeiçoamentos.

Os senhores proprietários, por exemplo. Os senhores proprietários andam desesperados. Acham os últimos impostos uma extorsão e um insulto - como se os aluguéis em que atualmente levam ao cidadão metade do seu ordenado não fossem também um insulto e uma extorsão - olham o dia de amanhã com um pavor de condenados à última miséria; o que, porém, inteiramente lhes faz perder a cabeça e arrancar desta os últimos cabelos, são as medidas de bota-abaixo do dr. Passos, o prefeito terrível.

Quando se trata de alargar uma rua, retirar de certo ponto um velho casarão, uma estalagem (nome que aqui se dá às ilhas do Porto), o nosso marquês de Pombal, como já um adulador lhe chamou, não olha à raiva nem atende aos prantos dos excelentíssimos donos dessas fealdades ou dessas podridões.

Uma intimação seca ordena a mudança, a demolição, a limpeza; e quando o intimado não obedece logo ou tenta pôr embargos à medida expedita, enquanto ele corre a requerer de um juiz o famoso "mandado de manutenção", o pessoal da Prefeitura arremete, com alviões e picaretas e, antes que o magistrado rabisque a sua firma, destelha, arromba, despeja, arrasa.

Arbitrariedade! prepotência! despotismo! bradam os abastados proprietários, levando as mãos aflitas à pança, como se contra ela se houvesse assestado o camartelo prefeitural. Mas é tarde, está feito. Nas seções livres dos jornais, os advogados dos senhores proprietários clamam e barafustam, apelando para o presidente da República; o dr. Rodrigues Alves sorri; e fiado nesse estado de coisas, já outro dia o ilustre escritor sr. Carlos de Laet anunciou para muito breve - o quê, meu Deus? - a restauração da monarquia!

Entretanto, o povo se regala de olhar para a sua nova cidade e revela uma satisfação sem limites. Ah, o povo, coitado, não possui prédios, não é dono dos casebres em que mal respira, nem dos cortiços onde se amontoa, anda positivamente num sino. E, como única apresentação e único programa deste novo colaborador dos Serões, limito-me à honra de declarar aos seus leitores que pertenço, de corpo e alma, a essa numerosa classe, obscura, paupérrima e contentíssima que se chama - o povo!

João Luso.

Imagens: páginas da revista Serão com a matéria de João Luso

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