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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (30)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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O bamba

O estivador Argamódio é um mulato forte e alto. Tem fama de valente, é o bamba do cais. Desde aquele fato: certa vez, alta noite, vinha de volta de um serviço extraordinário a bordo. No cais, dois marujos estrangeiros o cercaram: have you a match - pediu um deles.

Argamódio entendeu mais pelo gesto que pela frase e passou ao marinheiro o cigarro recém-aceso. O marujo pô-lo na boca e saiu, rindo.

O segundo marinheiro pediu-lhe, por sua vez: have you a match?

Argamódio, aborrecido com a brincadeira, empurrou-o. O homem levou a mão ao bolso traseiro da calça, e o estivador viu o cabo de um revólver, saindo-lhe do bolso. Louco de medo, atirou-se sobre o marinheiro e o derrubou. Pôs-lhe os joelhos no peito e martelou-lhe a cara com socos frenéticos.

O companheiro do derribado veio em seu socorro, tirando-lhe Argamódio de cima, mas o mulato, prevendo outro revólver, alucinado de susto, esmurrou o novo contendor com tal violência, que este foi também ao chão com o nariz sangrando.

Companheiros de Argamódio que vinha mais atrás correram em seu auxílio, mas nadas lhes havia sobrado: os marujos estavam a levantar-se, ensangüentados e gementes. No chão, junto de um deles, estava um cachimbo escuro partido pelo meio - o revólver que Argamódio havia visto...

Mas o mulato passou a ser um herói, no porto. O fato foi transmitido através de toda a estiva, do armazém I ao XXVII, e não houve embarcadiço em trânsito por Santos, nos dias imediatos, que não ouvisse o caso daquele combate do Argamódio, o valente, que fizera dormir quatro - sim, senhores, quatro! - marinheiros lituanos.

- Isto é que é macho!

- Que home, o Argamódio!

- É bamba, mesmo! Esse sim!

Passou a ser o bamba do cais. Qualquer briga que houvesse, em que alguém fosse surrado, logo se perguntava: foi o Argamódio que deu nele, não foi?

Para sustentar a sua fama e apreciar brigas bonitas, os amigos intrigavam Argamódio com outros companheiros de trabalho, pagavam-lhe morrão, açulavam-no, espicaçavam-lhe os brios, ora com lisonjas - tu é macho mesmo, Argamódio! - ora com depreciações: tu ficando froxo, tu não era assim! Pois o Zéca Neves anda falando que tu pelo nome só pode sê cabeça chata e tu não compreende que isto é impricança, Argamódio?

Argamódio era alto, forte e ingênuo. Atiçado, surrou outros mais fracos e lutou com alguns corpulentos como ele. Que diabo! Era mais homem que ninguém, no cais! Não batera nos lituanos, que eram muitos contra ele só? Pois então? Precisava de conservar a fama!

Argamódio passou a beber pinga a todo o momento, nas cantinas e botequins do cais, para que na hora de uma briga o susto não lhe amolecesse as pernas, como acontecia às vezes... Bêbado, atiçado, provocava brigas à toa. O seu prontuário na polícia começou a encher-se: preso por desordem - preso por desordem - preso por ferimentos leves...

Os companheiros aplaudiam os seus feitos, lisonjeavam: tu é o bamba número um da cidade inteira, Argamódio!

Um dia, ele implicou com Agenor. E o preto lhe disse: não te mete comigo, que eu não tenho medo de bamba!

Argamódio não havia bebido, nem havia companheiro nenhum perto - ele teve medo do Agenor. Disse um palavrão, entre-dentes, e foi saindo.

***

Àquela tarde, Argamódio sufocava, no porão do Avila Star.

- Tô c'uma sede horríver, sede de pinga, queimando a guéla, aqui. Vamo bebê, seu mano?

- Eu não, Argamódio. Não 'stá na hora do café, e o Genor não dêxa a gente saí.

- Agenô que vá mandá na mãe dele. Em mim ele não manda. Eu vô bebê um morrão e vorto.

O outro ficou olhando o mulato, que subia para o convés, equilibrado no gato do guindaste. Argamódio é mesmo bamba! Não respeita o feitor!

- A donde vai? - perguntou Agenor.

- Bebê um trago, seu moço.

- Inda não é hora do café, você não póde largá o serviço assim sem mais nem menos.

- Não seje besta, negro. Vá mandá noutro, seu veado!

Agenor segurou-o pela gola da camisa:

- Vórte p'ro porão, seu porquêra. Vórte já, ouviu?

Os estivadores ouviram a disputa, suspenderam o trabalho e ficaram olhando.

- Vai tê coisa, pessoar! - avisou um.

Argamódio, na frente dos companheiros, não podia fazer feio. A sede e o calor esquentam o sangue, mas, mesmo assim, Argamódio tem medo do Agenor. Por isto, quando o negro o larga, o bamba vacila e dá uns passos para voltar ao trabalho.

Mas lá no fundo, no porão, vinte pares de olhos o contemplam: vamo vê, Argamódio, Amassa ele!

Vacila. Agenor é forte e disposto, não tem medo de bamba, vai bater nele. Então Argamódio mete a mão na faixa larga que lhe prende as calças à cintura, puxa o punhal que começou a usar desde que é bamba.

Agenor está desprevenido, não lhe viu o gesto. É fácil virar-se de repente e enfiar a lâmina, todinha, na barriga do negro, assim...

Agenor põe as mãos no ventre e cai no convés sujo, enquanto o sangue escorre, aos borbotões.

Romualdo se precipita do guincho onde trabalha, os estivadores todos sobem do porão, os marinheiros do Avila Star vêm correndo da popa.

Um vigia da Docas, avisado, apita, chamando a polícia.

Argamódio contempla o negro estendido aos seus pés. Olha os amigos e parece dizer, orgulhoso: viram o bamba? Gostaram, hein? Está quase a esperar palmas.

Mas os estivadores ajudam o ferido, põem-lhe casacos sob a cabeça, perguntam como se está sentindo. Um pede: fica firme, Agenor. A ambulança já vem te buscá.

Súbito, alguém grita: lincha! E todos gritam: lincha! lincha!

É uma chuva de socos, de pontapés, de palavrões que desaba sobre Argamódio.

Ele rola pelo convés, machucado, aturdido, sem entender porque batem nele, o bamba do cais, o macho que não tem medo de nada...

A polícia chega, Argamódio é levado, quase carregado pelos soldados, porque parece que lhe quebraram as pernas, tanto elas doem.

Agenor pede a Romualdo: avisa a Garciema... mais com cuidado, Remualdo.

***

No Ceará, por muito tempo, a mãe de Argamódio não há de saber que o seu filho matou um homem. Mas fica às vezes pensando, assustada, naquele cais de Santos, tão longe, para onde ele foi há três anos. Disseram-lhe que é um cais perigoso, cheio de desastres e de gente má. Aquilo não é vida para o Argamódio, que sempre foi um meninozinho tímido, e que, mesmo depois de rapaz feito, corria para as suas saias quando havia trovoada.


Porto de Santos, visto do Forte do Itapema, cerca de 1910, em foto do pintor Benedito Calixto

Imagem: acervo de Gilberto Calixto Rios, de São Paulo/SP