Greve
O corpo de Lú foi para o necrotério do
Saboó. Já foi examinado pelo médico-legista, e as companheiras podem velá-lo, agora.
Vieram todas as mulheres da pensão Pekim, e até de outras pensões vizinhas ou distantes. Todas
atraídas pela comunhão de um destino igual, talvez igual até na morte.
Vieram a Ruiva, a Pintada, a Gafanhota (pediu licença ao professor), a Baiana e as outras mulatas
todas.
Só a madama Polsaski não veio.
A Ruiva trouxe flores, a Gafanhota pagou as velas, a Pintada rezou um pai-nosso.
Lú tinha economias. Quem as herdou foi o armador, com a conta do enterro de segunda.
A Baiana garantiu, porém, que a madama herdou mais que o armador.
***
À noite, em sinal de pesar, as mulheres combinaram não trabalhar.
Madama Polsaski disse que era bobagem, e que ela não podia ter prejuízo, deixando de vender
bebidas uma noite inteira.
As mulheres teimaram e a polaca ameaçou? poria a Aurora no olho da rua, porque já lhe devia quinze
dias de pensão; tomaria o quarto da Negrinha, que devia dez dias; confiscaria o baú da Baiana, que não pagara a última semana.
A Ruiva reuniu o mulherio no seu quarto e disse que lançava um empréstimo interno. Todas as
mulheres que tivessem dinheiro se cotizavam e emprestavam às três companheiras ameaçadas de despejo e do seqüestro dos trastes.
A idéia foi aceita: uma emprestou 2$000, outras 10$000, outras 5$000. Mesmo assim, não chegou.
Então a Ruiva mandou o mulatinho garçom por no prego o broche de turmalina, o anel de ouro, um
relógio de níquel.
A Rosalina empenhou uma correntinha de 14 quilates, presente de um marujo do Minas, e a
Mariazinha entregou um crucifixo de prata, que nunca saía da sua cabeceira. Madama Polsaski foi paga, mas continuou rosnando e xingando as
mulheres, porque queriam pôr luto uma noite pela companheira morta.
Às oito horas chegou o primeiro freguês, reclamou as mulheres. A polaca bateu de porta em porta,
ameaçando e prometendo abatimento na diária. Nenhuma furou a greve.
Então o freguês desceu as escadas, zangado, dizendo que nunca mais voltaria ali.
Para evitar novos descontentamentos, madama Polsaski mandou fechar a porta da rua, e num
fundo de caixa de sapatos a Ruiva escreveu: Esta noite a pensão Pekim não Funciona. Tá de luto porque morreu... - como era o nome dela,
afinal?
- Bote o que saiu no jornar - sugeriu a Negrinha.
E a Ruiva aceitou a idéia, continuou escrevendo: Conchita-Margot, tambem conhessida por Lú,
nossa companhêra.
Mariazinha entrou no quarto da Baiana:
- Você m'empresta um santo, Baiana? É p'ra rezá p'ra ela.
A mulata abriu o baú, escolheu uma imagem na coleção e disse:
- Leva Santo Onofre. Ele gosta de credo e tu só sabe rezá o credo, Mariazinha.
Na rua, um marinheiro parou à porta, leu o papelão de caixa de sapatos, descobriu-se e foi
andando, de cabeça baixa.
Bonde com reboque na linha 8, defronte ao
Mercado Municipal, no bairro do Paquetá
Foto:
Museu do Bonde - Santos/SP |