A viagem de Lú
A bordo do Boré VII, o trabalho
de descarga vai intenso. O sal de Mossoró enche os porões, e os homens que cavam naquela montanha branca têm os
olhos ardendo e a boca salgada das finas pulverizações que se levantam ao choque das pás.
As caçambas de ferro descem, rangendo, dos guindastes, devagar, para dar tempo aos homens, dentro
do buraco já feito na montanha salina, de se afastarem para os lados, como puderem, se não quiserem ser esmagados por elas.
A linhaça que desaba bruscamente e asfixia os estivadores; o enxofre que sufoca e que explode -
como no Britt-Marie que foi pelos ares; o sal em bruto, que pode desabar as suas paredes alvas sobre os homens, são os maiores perigos da
estiva. Piores que a dinamite e que os ácidos, porque são mais traiçoeiros no golpe e inesperados quando querem matar. Têm o mesmo perigo manso dos
carregamentos de trigo a granel; o estivador pode trabalhar sentado, se quiser - o chupa vai sugando os grãos, carregando para ele a carga. De
repente, enquanto o homem ajeita o bico de pato para colher uns grãos perdidos nos ângulos, o trigo corre, desaba sobre ele, e quando o tiram traz
quase sempre o rosto roxo dos asfixiados, e as mãos frias dos defuntos...
Quem não se lembra do Saturnino Lopes, que morreu numa descarga de sal de Areia Branca? O
estivador estava lá em baixo, no buraco que abrira a poder de pá. Dava bem para ele fugir para um lado, quando a caçamba vinha descendo. Mas a
caçamba bateu numa beirada daquela montanha branca, e um pedaço ruiu sobre o Saturnino, enterrando-o até a cintura. O motorneiro do guindaste não
percebeu nada, os homens que estavam à beira da boca da escotilha não deram pela coisa. A caçamba de ferro continuou descendo... Quando o motorneiro
estranhou a demora do serviço, manobrou o guindaste para o alto, e então se descobriu o Saturnino enterrado no sal, com a cabeça esmigalhada.
A caçamba vem descendo, devagar, sobre Praxedes e os companheiros que empurram pás, no buraco
aberto no sal.
Os homens se desviam para os lados, e a caçamba bate no chão de cristais, rente com eles. Se for
preciso subir por uma parede daquelas, lisa e branca, toda de cristaizinhos quase soltos, para fugir da morte, quem é que foge?
Os homens enchem o depósito. E quando está cheio, saltam para cima do sal amontoado ali, porque
soou a hora do café.
No tombadilho se alinham os camarotes dos tripulantes: segundo piloto, primeiro maquinista,
dispenseiro, terceiro maquinista... E que fará a sem-vergonha da Lú, sentada naquele beliche?
Praxedes pára e olha: está fumando, de perna cruzada, com pose de passageira de primeira classe,
ali no cargueiro Boré VII, que carrega carvão do Sul e açúcar do Norte, sal em Mossoró e café em Santos.
- Que tu tá fazendo aqui, Lú?
Parece que não gostou de ver o Praxedes.
- Tô fumando, não tá vendo?
- Tu tá metida cum argum foguista, Lú!
- Não é da tua conta. Eu sô dona deste nariz. Vô conhecê o mundo, viajá,
visitá Montevidéu e Buenos Aires. É da tua conta, Praxedes Lloyd?
Praxedes entrou no camarote e fechou a porta. Lú continuou sentada, e pensou: lá vem o bruto,
mais eu domo ele, já e já...
- Qué dizê que tu vai s'embora de Santos?
- Vô. Tarveis t'escreva!
- Tu vai me dexá, Lú?
- Ué! Nóis nem semo mais amigado! Porque este ciúme?
- Eu não tenho ciúme, Lú. Tu dorme cum todo mundo e eu não mi importo, porque às
veiz tu dorme cumigo também. Mais não vai s'embora, porque eu sem ti não posso vivê, Lú. Tu feiz feitiço, eu
não sei que coisa é esta, mais eu prefiro te vê morta que longe daqui.
Praxedes está louco. Tirou a navalha do bolso e vem sobre ela. Aquela é a navalha que ele já
mostrou uma vez, na pensão da madama, só porque Lú estava custando a abrir a porta do quarto. É a mesma navalha que assustou o negro e que Lú viu
brilhar em cima do seu baú prateado, com um filete de luz vermelha correndo pelo aço, com o sangue vivo, recém-derramado. É a navalha que deu
pressentimentos a Lú...
- Praxedes, dêxa de besteira!
Faz um esforço enorme, finge que vence o medo e sorri, e abre os braços para Praxedes. Ele
titubeia. Ele é fraco, diante daquela mulher.
Lú lhe passa a mão pela testa polvilhada de sal e prova: tu tá sargado, Praxedes! e eu
sô tão doce p'ra ti!
Praxedes titubeia. Lú corre-lhe a mão pelo braço, alcança a navalha aberta. O frio da lâmina
parece que lhe corre pela espinha, mas ela reúne as forças, tira devagar a arma da mão do estivador, joga-a longe, contra a porta do camarote.
Então Praxedes a enlaça, e cai com ela sobre o beliche estreito, apertando-a bem contra o peito,
para senti-la toda.
Ama-a com a mesma fúria de sempre. E Lú sorri, porque venceu mais uma vez.
***
Um punho forte bate à porta. Deve ser o maquinista, com quem combinou a fuga no Boré VII.
Praxedes se desprende dela, olha para a porta. O maquinista grita: abre isto aí, Margot!
Lú sorri: o maquinista pensa mesmo que ela é francesa...
Praxedes se levanta.
Alguém martela a porta, com os punhos e com os pés, e a madeira estala, prestes a se romper.
Lú sorri: é capaiz de saí briga dos dois!
Praxedes sabe que Lú irá. O homem vai arrombar a porta, chamará os marinheiros, pô-lo-ão fora do
vapor, nas pedras do cais. E a Lú irá conhecer o mundo, deixará Santos, deixará o mulato José Praxedes Lloyd, para sempre...
A navalha está no chão. Praxedes a levanta, salta sobre Lú e lhe golpeia o pescoço num gesto tão
rápido e inesperado, que ela ainda sorri e já o sangue escachoa, encharcando o beliche do terceiro maquinista.
Lú ergue um momento as mãos ao pescoço, abre a boca, mas não fala porque o sangue vem, às
golfadas. Cerra as pálpebras, fica imóvel sobre o leito do terceiro maquinista do Boré VII, que lhe mostraria o mundo.
Praxedes abre a porta, e diz para o homem sem camisa que está à sua frente: agora, pode levá
ela p'ra vê o mundo...
Postal colorido à mão mostra o trecho mais antigo do porto santista, defronte à Praça da
República, por volta de 1922
Foto
cedida pelo Museu do Porto de Santos, no arquivo de Novo Milênio |