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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (28)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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A viagem de Lú

A bordo do Boré VII, o trabalho de descarga vai intenso. O sal de Mossoró enche os porões, e os homens que cavam naquela montanha branca têm os olhos ardendo e a boca salgada das finas pulverizações que se levantam ao choque das pás.

As caçambas de ferro descem, rangendo, dos guindastes, devagar, para dar tempo aos homens, dentro do buraco já feito na montanha salina, de se afastarem para os lados, como puderem, se não quiserem ser esmagados por elas.

A linhaça que desaba bruscamente e asfixia os estivadores; o enxofre que sufoca e que explode - como no Britt-Marie que foi pelos ares; o sal em bruto, que pode desabar as suas paredes alvas sobre os homens, são os maiores perigos da estiva. Piores que a dinamite e que os ácidos, porque são mais traiçoeiros no golpe e inesperados quando querem matar. Têm o mesmo perigo manso dos carregamentos de trigo a granel; o estivador pode trabalhar sentado, se quiser - o chupa vai sugando os grãos, carregando para ele a carga. De repente, enquanto o homem ajeita o bico de pato para colher uns grãos perdidos nos ângulos, o trigo corre, desaba sobre ele, e quando o tiram traz quase sempre o rosto roxo dos asfixiados, e as mãos frias dos defuntos...

Quem não se lembra do Saturnino Lopes, que morreu numa descarga de sal de Areia Branca? O estivador estava lá em baixo, no buraco que abrira a poder de pá. Dava bem para ele fugir para um lado, quando a caçamba vinha descendo. Mas a caçamba bateu numa beirada daquela montanha branca, e um pedaço ruiu sobre o Saturnino, enterrando-o até a cintura. O motorneiro do guindaste não percebeu nada, os homens que estavam à beira da boca da escotilha não deram pela coisa. A caçamba de ferro continuou descendo... Quando o motorneiro estranhou a demora do serviço, manobrou o guindaste para o alto, e então se descobriu o Saturnino enterrado no sal, com a cabeça esmigalhada.

A caçamba vem descendo, devagar, sobre Praxedes e os companheiros que empurram pás, no buraco aberto no sal.

Os homens se desviam para os lados, e a caçamba bate no chão de cristais, rente com eles. Se for preciso subir por uma parede daquelas, lisa e branca, toda de cristaizinhos quase soltos, para fugir da morte, quem é que foge?

Os homens enchem o depósito. E quando está cheio, saltam para cima do sal amontoado ali, porque soou a hora do café.

No tombadilho se alinham os camarotes dos tripulantes: segundo piloto, primeiro maquinista, dispenseiro, terceiro maquinista... E que fará a sem-vergonha da Lú, sentada naquele beliche?

Praxedes pára e olha: está fumando, de perna cruzada, com pose de passageira de primeira classe, ali no cargueiro Boré VII, que carrega carvão do Sul e açúcar do Norte, sal em Mossoró e café em Santos.

- Que tu fazendo aqui, Lú?

Parece que não gostou de ver o Praxedes.

- fumando, não vendo?

- Tu metida cum argum foguista, Lú!

- Não é da tua conta. Eu dona deste nariz. Vô conhecê o mundo, viajá, visitá Montevidéu e Buenos Aires. É da tua conta, Praxedes Lloyd?

Praxedes entrou no camarote e fechou a porta. Lú continuou sentada, e pensou: lá vem o bruto, mais eu domo ele, já e já...

- Qué dizê que tu vai s'embora de Santos?

- Vô. Tarveis t'escreva!

- Tu vai me dexá, Lú?

- Ué! Nóis nem semo mais amigado! Porque este ciúme?

- Eu não tenho ciúme, Lú. Tu dorme cum todo mundo e eu não mi importo, porque às veiz tu dorme cumigo também. Mais não vai s'embora, porque eu sem ti não posso vivê, Lú. Tu feiz feitiço, eu não sei que coisa é esta, mais eu prefiro te morta que longe daqui.

Praxedes está louco. Tirou a navalha do bolso e vem sobre ela. Aquela é a navalha que ele já mostrou uma vez, na pensão da madama, só porque Lú estava custando a abrir a porta do quarto. É a mesma navalha que assustou o negro e que Lú viu brilhar em cima do seu baú prateado, com um filete de luz vermelha correndo pelo aço, com o sangue vivo, recém-derramado. É a navalha que deu pressentimentos a Lú...

- Praxedes, dêxa de besteira!

Faz um esforço enorme, finge que vence o medo e sorri, e abre os braços para Praxedes. Ele titubeia. Ele é fraco, diante daquela mulher.

Lú lhe passa a mão pela testa polvilhada de sal e prova: tu tá sargado, Praxedes! e eu tão doce p'ra ti!

Praxedes titubeia. Lú corre-lhe a mão pelo braço, alcança a navalha aberta. O frio da lâmina parece que lhe corre pela espinha, mas ela reúne as forças, tira devagar a arma da mão do estivador, joga-a longe, contra a porta do camarote.

Então Praxedes a enlaça, e cai com ela sobre o beliche estreito, apertando-a bem contra o peito, para senti-la toda.

Ama-a com a mesma fúria de sempre. E Lú sorri, porque venceu mais uma vez.

***

Um punho forte bate à porta. Deve ser o maquinista, com quem combinou a fuga no Boré VII.

Praxedes se desprende dela, olha para a porta. O maquinista grita: abre isto aí, Margot!

Lú sorri: o maquinista pensa mesmo que ela é francesa...

Praxedes se levanta.

Alguém martela a porta, com os punhos e com os pés, e a madeira estala, prestes a se romper.

Lú sorri: é capaiz de saí briga dos dois!

Praxedes sabe que Lú irá. O homem vai arrombar a porta, chamará os marinheiros, pô-lo-ão fora do vapor, nas pedras do cais. E a Lú irá conhecer o mundo, deixará Santos, deixará o mulato José Praxedes Lloyd, para sempre...

A navalha está no chão. Praxedes a levanta, salta sobre Lú e lhe golpeia o pescoço num gesto tão rápido e inesperado, que ela ainda sorri e já o sangue escachoa, encharcando o beliche do terceiro maquinista.

Lú ergue um momento as mãos ao pescoço, abre a boca, mas não fala porque o sangue vem, às golfadas. Cerra as pálpebras, fica imóvel sobre o leito do terceiro maquinista do Boré VII, que lhe mostraria o mundo.

Praxedes abre a porta, e diz para o homem sem camisa que está à sua frente: agora, pode levá ela p'ra vê o mundo...


Postal colorido à mão mostra o trecho mais antigo do porto santista, defronte à Praça da República, por volta de 1922

Foto cedida pelo Museu do Porto de Santos, no arquivo de Novo Milênio