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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (27)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Professor Jabaquara

Maria dos Anjos tem uma novidade de sensação:

- Sabe, cumadre Joaquina, o professô feiz otra adivinhação certinha! Disse tudinho que tinha acontecido na vida da dona Encarnação. Até parece que viveu com ela a vida toda! Que home, cumadre!

O professor Jabaquara (Adivinha o pensamento o passado e o futuro. Faz diagnóstico pela menina dos olhos. Lê na palma da mão. Interpreta os sonhos. Diz o número da loteria que dá sorte para os clientes. Longa prática na Índia com os faquires. Raschid. Vende as famosas pedras de cevar do Himalaia e do Chimborazo, que dão fortuna e filicidade. Tira feitiço e máo olhado. Sorte em amor - sorte em amor - sorte em amor. Consultas 10$. Aos pobres 5$000. - Rua Nabuco de Araújo, 538. Todos os dias, das 8 às 18 horas) o professor Jabaquara condensa todas as suas habilidades super-humanas nos seus enormes cartões, super-cartões.

Num dos ângulos, a bola de cristal resplandescente, na qual repousam duas mãos espalmadas, muito brancas e finas. No outro ângulo, em baixo, duas pedras de cevar, cheias de picos: macho e fêmea.

Aflui gente aos magotes à porta, para ver o professor. Entra gente graúda lá dentro, para ouvir o professor. Às vezes pára um automóvel caro na rua enlameada, o chofer abre a portinhola, desce uma moça perfumada, de véu no rosto, que vai conselhar o professor.

Na rua onde ele mora há valas sujas com águas podres, há matagais até em certos trechos do próprio leito da rua, há muito chalé de madeira pintado de azul, onde em cada quarto mora uma família de sete pessoas.

Aquela rua está vivendo a sua hora. Pela primeira vez, a lama que a reveste sente a borracha de um pneumático de Packard, pela vez primeira a molecada suja que a habita vê vestidos de seda e mulheres de véu no rosto.

O professor Jabaquara é um fator de progresso no bairro do Macuco. Nenhum prefeito fez tanto pela Rua Nabuco de Araújo, como ele o fez.

- Sabe, cumadre, ele falô o número do bicho p'ro Manoel João - aquele que é carvoeiro, sabe? - e ele ganhô na centena, no tercêro dia. Uma bolada: oitocentos mil réis!

- Eu quarqué dia, dona Maria. Pobre é cinco, não é?

***

A Lú quis ir consultar o professor. Quer saber se um dia fará a volta ao mundo de Zeppelin, e se verá a Indochina, o Tibete, Constantinopla, Nova York e Belém do Pará.

Praxedes faz-lhe a vontade: acompanha-a no automóvel que ela paga, compra dois bilhetes de consulta com o dinheiro dela. Ele também precisa saber como é que há de tirar o rabicho que aquela mulher pôs nele.

A casa do professor Jabaquara é um chalé de pau, igual, por fora, aos outros vizinhos. Mas Praxedes pensa naquela modinha do seu tempo de criança:

Esta casa está bem feita,

Por dentro, por fora não!

Por dentro, cravos e rosas;

Por fora, manjericão...

Por dentro, é aquela sala toda forrada de papel azul com pássaros dourados beliscando frutos vermelhos. Por dentro, é aquele terno de pano-couro azulado, aquela mesinha bem trabalhada com um aquário de vidro anilado em cima, e dentro do qual rabejam, lentos, peixes vermelhos de cauda igual a um véu branco de gaze. Por dentro, cravos e rosas, num vaso de porcelana com figuras de camponeses, pastores e um gadinho gordo no fundo.

A porta que dá para a sala de consultas tem um reposteiro de veludo vermelho, aberto ao meio, com largas fitas de seda azul, franjadas de dourado, prendendo cada porção do reposteiro, à direita e à esquerda.

Duas mulheres, vestidas de calças turcas amarradas por um cinto alto de cetim, com o torso nu e os seios aprisionados numa faixa de seda, estão imóveis a cada lado da porta, braços cruzados à frente do corpo.

Lú repara: parecem estátua! Olha, Praxedes: aquela da direita, de pernas altas, parece a Gafanhota, uma zinha que morava lá na pensão... Tu não conheceu?

- Não. Mais não é: deve turca legítima.

- Tu é bobo, Praxedes!

A porta se abriu, uma mulher passa por eles, de véu descido sobre o rosto, quase todo enfiado na gola alta de um manteau. Fica um rasto de perfume fino. Praxedes sabe que é fino: nunca a Lú usou coisa parecida!

Um auto ronca na rua - a mulher é graúda!... Lú cicia: arreparô nas peles? Pura zibelina!

- Zebra?

- Tu é burro, Praxedes! Raposa Zibelina! Bicho dos sertãos da Sibéria, Praxedes!

A mulher da esquerda chama Lú. Praxedes vai atrás. A mulher vestida de turca trava-lhe os passos:

- A consurta é individuar!

Praxedes volta à sua cadeira, perto do aquário: eu aqui, cum alfinetinho e miolo de pão, pegava um pêxe deste, brincando!

Um homem de cabelos grisalhos, bem vestido, entra e senta-se longe, timidamente. É a hora da consulta dos ricos - 10$000. O cartão de Praxedes é cartão de consulta de rico. Praxedes pensa nisto e cruza as pernas com desembaraço, puxa um toco de cigarro Moysés, bate o isqueiro onde se pendura a longa torcida amarela e fuma.

Levou meia hora a consulta da Lú. Ela sai de olhos brilhantes, toda feita sorriso. O professor garantiu: ela verá Roma e Yokohama, montará num elefante branco no Sião, será amada por um rajá na Índia e por um bonzo às margens do Yan-Tsé-Kiang. Viajará no Zeppelin e no Queen Mary...

- Que bicho, Praxedes, este professor! Tu vai vê, tu vai vê! Sabe tudo! Tudinho!

Praxedes se encaminha para a porta, a um aceno da mulher de calça turca que está à direita. Lú o acompanha, olha a mulher de perto, e diz: Gafanhota, tu virô dalisca?

A mulher finge que não entende, continua inteiriçada, como estátua.

Lú insiste: tu é a Gafanhota, sim. Óia aí o sinalzinho da estrela em cima do umbigo!

De fato, a mulher tem uma mancha cor de vinho no lugar indicado, e a mancha recorda vagamente a forma estelar.

A Gafanhota gostava de mostrar a marca às companheiras de pensão, quando bebia demais: vejem aí, o meu sinal de nascença! Quem tem sinal assim, diz-que vai ser arguma coisa na vida!

Então as outras diziam: tu já é coisa na vida, Gafanhota! Tu é mulher da vida! Que honra p'ra família, Gafanhota!

Lú insiste sempre: tu não te alembra mais de mim, hein? Bem que tu dizia que ia sê tróço na vida! Dalisca, hein? Que honra p'ra família, Gafanhota!

A gafanhota não se contém mais: ora, vá tomá banho, ouviu? Meta-se co'a sua vida e dêxe a dos otros, que é melhor!

O professor bateu palmas, lá dentro, e logo a Gafanhota se perfilou junto à porta, hirta como um soldado do sultão, os braços cruzados sobre o peito, a estrela de sangue aparecendo acima do umbigo. Lú volta ao seu lugar, e de lá põe a língua para ela.

Praxedes então entra, mas não sem beliscar primeiro a coxa da Gafanhota: belezinha!

Atrás dele cai o reposteiro que se afastou um momento, e fecha-se a porta.

Praxedes está num quarto escuro, onde, sobre a mesa redonda, brilha um globo branco, iluminado por dentro. Sobre o globo, só se vêm duas mãos longas ea brancas, de unhas bem tratadas, que parecem mais repousar sobre a luz que sobre a curva de vidro. Estas mãos surgem de mangas negras, e o corpo a que elas pertencem é invisível, dentro da sombra.

Uma voz de tonalidade tumular manda: aproxime-se!

Praxedes obedece.

- Sente-se! Que deseja saber?

Praxedes já ficou desconfiado com aquela história da Gafanhota fingir de oriental:

- O professô não adivinha o pensamento?

- Adivinho!

- Pois adivinhe o que eu tô maginando!

A voz perdeu o timbre sepulcral:

- Tu tá pensando, Praxedes, que eu mesmo professor das Índias.

Praxedes pula: conhece bem aquela voz. De onde?

- Quem é você, seu sacana?

O professor liga a lâmpada do teto, e a luz desce, aos jorros.

- É você, Cabelêra?

- Eu mesmo, Praxedes... meu amor!

- Péra aí. Vamo devagá... Cumo é que tu te meteu nesta pele de professô?

- Tu não te alembra do professô que tava com nóis no xadreis treis? Pois aprendi uns truques com ele. Andamo seis meis no interiô bancando os indiano e vendendo seixo dos rios perparados pelo professô: virava pedra de cevá. Nóis é que nos cevamo, Praxedes! te pijama de seda, meia de fio de Escossa, vidro de Obigan, lata de tâmara, tudinho que tu quisé, Praxedes Lloyd!

Praxedes o empurra, porque o Cabeleira aproxima dos seus os lábios carminados, e o rosto polvilhado, as sobrancelhas finas e arqueadas a poder de pinça, o perfume que usa, tudo, tudo lembra nele uma mulher fina, mulher do Monte Serrat, mulher cara, espécime que não está nos hábitos do Praxedes. Parece-lhe que se aquela mulher - o Cabeleira - o beijar, vai pedir-lhe logo cinqüenta mil réis. E Praxedes não tem senão mil e trezentos, no bolso da calça, junto ao lenção vermelho de chita.

- Tu fino, Cabeleira!

Cabeleira exulta, exibe o smoking num volteio, como vê fazerem as artistas no cinema. Depois encosta a manga no nariz do Praxedes:

- Chêra isto! Tem chêro de naftalina?

- Não tem.

- Tu sabe que quando estes doutores e ricaços por aí vão num baile, vão tudo cherando a naftalina? Pois vão - eles dexam a rôpa guardada muito tempo, só usam ela uma ou otra veiz, e quando vão vesti esquecem até as bolinha de naftalina nos bolsos. Chêra otra veiz, Praxedes: tem chêro de naftalina?

- Não tem, seu!

- Isto é que é sabê andá chique, Praxedes! chique é uma ciença! Não é p'ra quarqué um, não!

- Tu anda orgulhoso porque poiz rôpa de garçom! Até na Lioneza já vi garçom servindo café com rôpa assim, Cabelêra!

- Mais chêra a naftalina, Praxedes! Garanto que chêra! E p'ra andá chique é perciso não usá este chêro!

- Cabelêra, quem foi que te quebrô a cabeça, hein?

- Ninguém. Tu não sabe que eu sô professô das Índias? Professô das Índias usa trubante, tu não logo?

- Quanta bestêra. Eu vô s'embora. Já vi coisas boas p'ra hoje!

- Praxedes, tu vorta, sim, Praxedes? Olha: eu te espero hoje de noite, depois das consurtas, sim?

- besta, seu. Nem na cadeia.

- Na cadeia eu fui teu, Praxedes! Porque tu esquece aquela noite em que nos amemos?

- Me devórve os cobre do cartão que é meió. Não no teu embruio. Mulhé de dotô que vá!

Cabeleira abre a gaveta de um móvel, onde um jarrão japonês sustenta um ramalhete de rosas rubras. Tira uma nota da caixa de xarão e tira uma flor do vaso: Praxedes, uma sincera lembrança do teu amiguinho Maneco. Tu vorta hoje de noite, não vorta?

Praxedes abre a nota: 50$000.

- Tarveis, Cabelêra, tarveis!

O "professor Jabaquara" o acompanha até a porta:

- Tu não conta p'ra ninguém, não?

- Eu não sô traidô, Cabelêra.

Praxedes sai. O reposteiro vermelho abre-se e fecha-se logo. O professor apaga a lâmpada do teto põe as mãos sobre o globo iluminado. A Gafanhota convida o homem tímido a enatrar.

- Ué, p'ra que esta flô? - indaga Lú.

Praxedes vai descendo a escadinha, e como não tem imaginação para contar uma história de mentira, como a Lú, só pode dizer: é mêmo, esta flô!

Então Lú se ri dele, e explica: decerto o professor te himpinotisô e te pois ela na mão!

-  Que home, o professor, hein, Praxedes? Conta o que ele te disse.

Praxedes esmigalha nos dedos as pétalas da flor, e as vai atirando pelo barro da rua.

- Disse que... que...

Mas Lú não se interessa pelo que o professor diz aos outros, perguntou por perguntar. O que a absorve, o que a emociona, o que a entusiasma, é tudo quanto o professor Jabaquara disse a seu próprio respeito: duas viagens à volta do mundo, passagem de primeira nos maiores vapores da Mala Real, romances com príncipes hindus, visitas aos jardins zoológicos de todas as grandes cidades que possuem jardins zoológicos...

Que maravilhoso, o poder divinatório do professor Jabaquara! Ela ia só perguntando: vô viajá muito, ? Vô sê amada por príncipes, ? Vô viajá no Zeppelin, ? E o professor respondendo, com uma certeza, com uma segurança, que ninguém podia duvidar que ele estava mesmo vendo tudo na bola iluminada!

Praxedes a despertou dos sonhos, empurrando-a: vamo, Lú! Óia que nóis inda vamo perdê aquele dezanove!

Lú corre, sobe no reboque cheio, espreme-se no banco, entre quatro passageiros, dois de cada lado.

Puxa! Tão doendo os calo! Sapato de verniz novo, p'ra vê professor, nunca mais!

O pensamento volta à viagem em torno da terra: ela está sendo batizada, porque passou o Equador.

Mas o bruto do Praxedes, seguro no balaústre, espremido no estribo, grita-lhe: viemo de automóver e voltemo no reboque de tostão!

Os passageiros se riem, e Lú fica encarnada, cheia de vergonha, porque está ali, no meio de operários, num bonde de cem réis, ela, a futura passageira do Zeppelin!

Dirigível Graf Zeppelin visita Santos, em novembro de 1935. Na imagem, sobrevoa as obras do futuro hospital da Santa Casa de Misericórdia, tendo ao fundo os bairros do Marapé e Campo Grande e o Morro de Santa Teerezinha

Foto reproduzida do livro Episódios e Narrativas da Aviação na Baixada Santista, de J. Muniz Jr., edição comemorativa da Semana da Asa de 1982, gráfica A Tribuna, Santos/SP, em que é citada como pertencente à coleção do sr. Adolfo Garcia Bonilha