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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (26)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Pressentimento

Praxedes passeia pelo cais, de mãos nos bolsos. Faz quinze dias que deixou Lú, mas está com uma saudade louca!

Aquela mulher fizera algum feitiço, não podia deixar de ser... Parecia que se grudara na sua carne, como um pedaço novo do seu próprio corpo; afastá-la de si era arrancar aquele pedaço da sua carne, era uma tortura feita desejo, um desejo feito tortura.

Há quinze dias só! E já anda atrás dela, procurando-a em todas as pensões da Rua Xavier da Silveira, em cada alcouce da Rua Visconde do Rio Branco, nos bares da Rua João Octavio, nos porões onde moram as mulheres mais reles, e nada!

Praxedes não tem trabalhado, já gastou o último níquel naquela cerveja de há pouco, no bar Maneco, onde nenhuma garçonete lhe pôde informar sobre a companheira.

Ao longe, para os lados do cemitério, simulando torreões de castelo medieval, erguem-se os silos arredondados do Moinho Paulista, dentro da noite clara.

Praxedes sai do cais para a Rua Xavier da Silveira. Vai andando ao acaso. Aquela lanterna chinesa de vidro, toda iluminada, é a pensão onde encontrou a Lú, pela primeira vez em Santos. De certo ela a escolheu pelo nome: Pensão Pekim - terra distante, terra estranha, povoada de coisas bizarras e gente diferente: chins de rabicho, pagodes à beira dos lagos, juncos sobre águas amarelas e azuis.

Parece que está vendo a Lú, cerrando as pálpebras, fazendo um olhar distante para mentir como uma criança: nasci na bêra dum rio todo azur, num barco chinês de vela de junco, numa noite cheia de estrela...

Que tipa besta! Mas aquela mulher é pedaço da sua carne, desejo e tortura!

Praxedes para à porta. Tem certeza de que ela não está ali - a polaca ficou como uma bicha, quando ele levara a Lú: estas menina son assim. Quanto eston facendo carrêra, ganhando dinherra, von s'imborra. Um tiapo á tôa lefa elas! Fão p'ro inferno!

Pudera! A Lú era a melhor pensionista da pensão, a que mais ganhava e a que fazia os homens beberem mais...

Vai subindo a escadaria, empurra a meia porta de dois batentes, onde está a placa dourada - Pensão Pekim. Quer ver o lugar em que esteve com a Lú, onde viu a Lú pela primeira vez, em Santos. Sobe.

ficando besta cumo minino que logo que conhece mulhé da vida fica querendo bem a ela!

Em cima, na sala grande, as mesmas mesinhas de ferro, os mesmos homens do cais, as mesmas mulatas de cetim, as mesmas francesas falsificadas com água oxigenada.

Ao fundo do corredor, um clarão vermelho - lá era o quarto da Lú.

O mulatinho garçom, com a cabeleira alisada com meio pote de brilhantina e meia hora de pente, vem saber:

- Toma arguma coisa, moço?

- Não. esperando um amigo que devia de tá aqui.

O mulatinho sai, rebolando os quadris, com um muxoxo de desagrado, porque madame Polsaski já disse que quem não bebe, cai fora.

Praxedes examina as mulheres - são umas nove, e a Lú não está mesmo. Que bobagem, esperar por isto!

Resolve sair. Lança um último olhar para o corredor onde brilha o tênue clarão vermelho. O clarão se alastra pelo chão, jorra intenso, porque a porta do quarto se abriu.

O coração de Praxedes palpita forte - e se fosse... Vêm vindo pelo corredor duas pessoas: uma mulher à frente, um marinheiro de zuarte, claro e grande, atrás.

A cabeleira da mulher é loira, de um amarelo de canário belga, e Praxedes tem raiva daquela cabeleira porque a cabeça da Lú era negra, negra como carvão inglês.

Agora ela entrou na sala, e por baixo da lâmpada elétrica parece que os seus cabelos despedem chispas, pegam fogo, incendeiam-na e ofuscam os olhos de Praxedes.

O marinheiro passa por ele, desce a escada. A mulher loira, ao lado de Praxedes, convida-o: vamo tomá uma cervejinha, meu nêgo?

Um estremeção percorre o corpo de Praxedes, e ele encara, bem de frente, aquela mulher: você, Lú?

- bem, de ox-xigenê?

O olhar do homem vai do fundo dos olhos de Lú ao fundo do corredor onde brilha a luz encarnada.

- Vamo, negra, que morrendo de saudade.

- Carma, seu Praxedes Lloyd, vamo bebê uma cervejinha premero, depois conversamo...

Praxedes senta-se à mesinha, pede duas Antarticas, geladas. Fica devorando a Lú com os olhos.

- Pois é: aqui otra veis. A madama ficô toda contente quando eu vim. Diz-que morá com estivadô não é futuro p'r'uma mulhé como eu.

Semi-cerrou os olhos, lembrando as correiadas que o mulato lhe dera, quando a pegara pela terceira vez com um homem na sua cama: de acordo com a madama!

Praxedes não diz nada. Já bebeu uma garrafa de cerveja gelada, e sente um calorão pelo corpo inteiro. O calorão que lhe dá o desejo louco que tem por aquela mulher.

Não se lembra que a enxotou de casa, numa noite de ventania e chuvisqueiro, porque ela estava de novo com um marinheiro loiro e grande.

Não se lembra dos desaforos que ela lhe disse, lá fora, no alpendre do chalé: tu é um home que não me serve, Praxedes. Tu é um pronto, tu não ganha p'r'um vestido de cetim, nem p'r'um pinhoar de contrabando. Eu perciso luxo, não sei vivê sem luxo. Tu pensava que eu ganhava no bicho quando tu me via com nota de deis na mão e um vestido de seda. Tu é burro, Praxedes! Des-que vim p'ra te corniando, tu pensa que é só agora. Tu é burro, tu é corno, Praxedes! Tu não tem dinhêro e qué sostentá mulhé da vida, acustumada no luxo. Eu...

Para acabar com aquela arenga no varandim do chalé do Macuco, fora preciso jogar-lhe um jarro d'água fria. Então a Lú descera a escada, toda molhada, dizendo nomes feios, e Praxedes ouvira a sua voz, conversando com o marinheiro que ele atirara pelos degraus. Decerto, combinando onde dormir com ele.

Praxedes pensara: livre desta cadela.

Mas agora não pensava senão naquele olho vermelho do fundo do corredor, que é o quarto onde está a cama da Lú, à espera de todos os homens do cais que a queiram e tenham 5$00 para ela e 2$500 para a cerveja que a madama vende:

- Vamo, Lú, que não posso mais!

Lú não tem pressa. Sunga o vestido de cetim até o meio da coxa, para endireitar a liga, porque o freguês que está com a Ruiva lança-lhe olhares quentes, a espaço. As manchas azuladas do mercúrio não aparecem: só um palmo de coxa morena e depilada. Ela olha o efeito na cara do homem que está com a Ruiva... A Ruiva vai ficar bufando!

Praxedes se levanta. Lú chama o mulatinho que rebola os quadris: paga isto, Praxedes.

Ele está sem tostão. Pagará amanhã, sem falta.

- Madama não fia - explica Lú.

- Então me empresta, depois te pago.

- Não empresto dinhêro p'ra fregueis. E se tu tá miquiado, Praxedes Lloyd, escusa de vim p'ro meu quarto, que eu não te arrecebo.

- Mais Lú... tu tem corage?

- Tu é um fregueis iguar aos otro. Tem dinhêro? contigo. Não tem? Não !

- Tu brincando, não , Lú?

Lú se levanta, ajeita os cabelos loiros com ambas as mãos, e pela cava das mangas largas as axilas surgem, com uma penugem loira, oxigenada também.

O olhar de Praxedes se intromete pela cava, devora a penugem loira. Fica pensando que a Lú, decerto, oxigenou tudo, tudo...

O olho vermelho do fundo do corredor parece que está mais longe. E o corpo do Praxedes arde, arde intensamente, porque a curiosidade de saber se a Lú oxigenou tudo, tudo, é o desejo disfarçado de a ver novamente nua, toda nua, sem penhoar de contrabando, rindo em cima da cama.

- Não brincando, nada. Se tu me qué, te exprica com os cobre.

A polaca se aproxima, porque o garçom foi contar que o freguês não tinha dinheiro. Lú explica:

- Madama, este sojeito aqui me convidô p'ra bebê cerveja e não tem dinhêro. É melhó chamá a polícia.

Madama Polsaski xinga Praxedes: sua fagabunda! e ordena ao garçom: chamar o bolícia!

O mulatinho sai, rumo à escada, gingando. Praxedes empurra a madama, derruba a mesa, desce a escadaria, correndo: eu vô buscá dinhêro e vorto, Lú! Nem que tenha de matá arguém, eu vórto!

Lú senta-se na outra mesa, sozinha, e acende um cigarro. A Ruiva discute com o homem que está com ela, segura-o pelo braço; mas o homem se levanta, empurra a Ruiva, vem sentar ao lado da Lú. A Ruiva põe a língua, o mais que pode.

Lú sorri e pergunta: vamo bebê liqueur-r?

- Ah! é francesa? Vi logo!

- Oui! De Lyon, savez-vous?

***

No cais, Praxedes procura um amigo que tenha dinheiro e vontade de emprestá-lo.

No armazém IV, em frente à Praça da República, estão trabalhando num vapor. Praxedes se aproxima. Se houvé trabaio, tô feito!

É um navio japonês, está carregando algodão e café.

- Moço, posso trabaiá?

- Você é estivador?

- Sim sinhô.

- Cá dê a caderneta?

- Tá 'qui.

- Está bem, precisamos de gente. Pega o extraordinário?

- Só se me pagá quando termine o serviço, e cum dinhêro. Negóço de vale e de cheque, não aceito!

- Está certo. Pagamos. Vá falar com aquele senhor: é o feitor.

Praxedes começa a arrumar fardos no fundo do porão do Montevidéo-Marú, bandeira japonesa, em trânsito para Osaka, via Panamá.

À uma hora da madrugada, os homens estão com a camisa colada ao corpo, e uma coroa de gotas de suor na testa. Mas o Montevidéo-Marú está carregado, e fumega, as caldeiras sob pressão, o hélice fazendo referver a água do estuário, onde dançam os reflexos das lâmpadas do cais e das luzes do vapor.

Praxedes recebe os 27$000 do serviço. Do outro lado do gradil do cais, um rapazola oferece: quer comprá esta navalha, moço? É novinha - tirei ela de contrabando. Compra, sim? com fome! Só 10$000!

Praxedes recusa. O outro baixa o preço?

- Deixo por oito, porque tenho fome. Não comi nada, hoje...

Vai acompanhando Praxedes.

- Compra, sim? Tá-i - fechado! Dexo por sete! Leve ela.

E empurra a navalha no bolso do paletó de Praxedes. O mulato pensa: e se não deixarem eu entrá?

- bem, eu compro ela por seis mil réis.

- Tenho prejuízo, mas estô com fome. Leve ela.

Praxedes paga, e vai, quase correndo, rumo à Pensão Pekim.

À porta da casa, um freguês retardatário conversa com uma mulata. Praxedes empurra a mulher e passa.

- Ó bruto! Vá empurrá a mãe!

Sobe a escadaria de quatro em quatro degraus. Na sala deserta, madama Polsaski conta a féria. Vai gritar, quando vê Praxedes de volta. Mas ele lhe atira uma nota de cinco - as cervejas que eu tomei, madama! Não le disse que vortava p'ra pagá?

A mulher grunhe qualquer coisa, e Praxedes explica: vô vê a Lú.

A polaca encolhe os ombros enormes: parrece que esdá com uma home.

Praxedes entra pelo corredor. A porta do quarto está trancada, e pela bandeira passa uma luz vermelha, excitante e vaga.

Bate com os punhos na porta e a voz de Lú pergunta, zangada: quem é? por que não bate c'a cabeça?

- eu, Lú, Eu le disse que vinha!

- Agora tô dromindo.

- Óia que eu arrombo. Abre isto, Lú!

A cama rangeu, alguém cochichou: uma lição nele, espera aí!

Praxedes tirou a navalha do bolso e meteu os pés na porta. Alguém está se calçando sentado à beira da cama, porque uma botina já bateu no soalho, forte, como se houvesse escapado das mãos que a enfiam.

A fechadura range, afinal, e a luz vermelha clareia o rosto colérico do estivador. QUem abriu a porta não foi a Lú: foi um negro alto e corpulento, em mangas de camisa. O negro olha para aquele homem que finge aparar a unha com a navalha faiscante, e estremece.

- Eu amigo desta mulhé, seu moço - explica Praxedes -. Drumo com ela toda a noite. É bom você ir dando o fora daqui - seu horaro já acabou, e aqui não tem extraordenaro, não!

O negro olha a navalha e o rosto zangado do mulato: me adescurpe, então! Procura o paletó, apanha o relógio de níquel que ficou na cadeira, e sai sem dizer palavra. Praxedes pergunta, para que ele ouça:

- Ele te pagô, hein, Lú?

- Pagô pela noite toda! - E Lú solta uma gargalhada tão forte, que a vizinha do lado, a Gafanhota, que não arranjou companheiro para aquela noite, bate no tabique de madeira: porra! não se pode dormi nesta casa?

Praxedes tira as botinas e joga-as no tabique. A Gafanhota grita: filho da puta!

Lu, na cama, ri alto. Praxedes despe o paletó. Ela indaga:

- Já tem dinhêro? Dexa vê?

Ele lhe atira ao rosto a nota de dez, a nota de cinco e a prata de um.

- Eu cobro vintão pela noite intêra, e tu só tem dezasseis mil réis!

Mas Praxedes coloca a navalha sobre o baú prateado, com uma cara tão feia, que Lú explica logo: brincando, meu bem! P'ra ti dexo até de graça!

E enquanto o homem arfa e delira nos seus braços, Lú tem os olhos estranhamente fixos, magnetizados, na lâmina nua, onde a luz vermelha corre e faísca, como sangue vivo, derramado de pouco...


Quem chegava de navio ao porto de Santos, em 1932, logo via os silos do moinho Paulista
Foto: Revista Santista nº 8, de dezembro de 1985