Vergonha
Graciema foi para o quarto do Agenor.
Ele quis primeiro levá-la para a casa de uma tia, que Graciema nem sabia se tinha olhos empapuçados e fios de barba como a madrinha ou não: nunca
tinha visto a tia do Agenor.
Não quis. Sabia como era: ficava uns dias, a Terezinha chorava, a tia começava com indiretas: a
vida tá cara, não se pode ajudá os otros... Magine: o arroiz tá a mil e seiscento, e arroiz
canjiquinha!
Não! Mais cedo ou mais tarde, algum homem tomaria conta dela, mesmo. Que fosse logo o Agenor,
então. O preto era bom, gostava da Terezinha.
Ele queria casar. Graciema disse: não precisa, homem. Quem quiser falar que fale: eu vou morar com
você, sem casar nem nada.
Agenor pensou que ela queria viver no quarto dele de cama separada. Fora assim: estavam no bonde
19 e chovia a potes. Ela explicava que queria ficar mesmo com ele, de uma vez. Não desejava ir para a casa de uma desconhecida. O negro tinha
pigarreado, a voz tinha ficado dura como se fosse para um discurso no sindicato: - Garciema!
A Terezinha tinha começado a chorar. Agenor assustava a criança, com a voz de discurso. E o negro
precisou falar alto, para poder ser ouvido. Que vale que o bonde vinha quase vazio, e trovejava forte.
- Garciema! se você vai p'ro meu quarto... você compreende... eu sô home,
Garciema, não é por mal... sim, mais eu posso - eu sei que posso - perdê a cabeça, só cum você no meu quarto, Garciema!
Você sabe cumo é home... Tô le avisando; se quizé casá comigo, eu caso. Você... se você quizé, pode i p'ro
meu quarto hoji mêmo... Drumi comigo, que aminhã eu porvidencio os papés. Pode tê confiança, Garciema:
eu sô preto de palavra!
Graciema se lembrara: e depois? Casava com o negro, e ele poderia dizer desaforos... Resto dos
outros... Que vergonha!
- Qual nada, Agenor. Vou para o seu quarto e você não precisa pensar em casamento. Já faz até
muito por mim em me querer bem.
Agenor não entendia. Agenor não tem malícia.
- Garciema... Garciema! Oie que eu sô capaiz de perdê a cabeça e
pegá você. Você sabe que eu le amo!
Graciema reuniu toda a coragem na garganta, ficou muito corada, mas disse: você pode perder a
cabeça, Agenor, que eu não me importo!
Teve uma vergonha! Mas não sabia que Agenor tinha ficado também com o rosto pegando fogo: aquele
"eu te amo" que dissera, saíra à custa da voz de discurso, dura e grave, e à custa daquele fogaréu pela cabeça toda.
Depois que disse, Agenor ficou pensando: vergonha é coisa quente! E o mais ruim são aqueles nó
que dá na guéla da gente, que nem na hora de saudá o delegado do Trabaio, quando ele vai na sede do sindicato!
![](../santos/bondes/trilho76o.jpg)
Bonde 19 acidentado na Rua Xavier da
Silveira, defronte ao armazém 11, em 1956
Foto
pertencente aos arquivos policiais santistas, deles extraída pelo historiador Waldir Rueda |