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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (22)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Vergonha

Graciema foi para o quarto do Agenor. Ele quis primeiro levá-la para a casa de uma tia, que Graciema nem sabia se tinha olhos empapuçados e fios de barba como a madrinha ou não: nunca tinha visto a tia do Agenor.

Não quis. Sabia como era: ficava uns dias, a Terezinha chorava, a tia começava com indiretas: a vida cara, não se pode ajudá os otros... Magine: o arroiz tá a mil e seiscento, e arroiz canjiquinha!

Não! Mais cedo ou mais tarde, algum homem tomaria conta dela, mesmo. Que fosse logo o Agenor, então. O preto era bom, gostava da Terezinha.

Ele queria casar. Graciema disse: não precisa, homem. Quem quiser falar que fale: eu vou morar com você, sem casar nem nada.

Agenor pensou que ela queria viver no quarto dele de cama separada. Fora assim: estavam no bonde 19 e chovia a potes. Ela explicava que queria ficar mesmo com ele, de uma vez. Não desejava ir para a casa de uma desconhecida. O negro tinha pigarreado, a voz tinha ficado dura como se fosse para um discurso no sindicato: - Garciema!

A Terezinha tinha começado a chorar. Agenor assustava a criança, com a voz de discurso. E o negro precisou falar alto, para poder ser ouvido. Que vale que o bonde vinha quase vazio, e trovejava forte.

- Garciema! se você vai p'ro meu quarto... você compreende... eu sô home, Garciema, não é por mal... sim, mais eu posso - eu sei que posso - perdê a cabeça, só cum você no meu quarto, Garciema! Você sabe cumo é home... Tô le avisando; se quizé casá comigo, eu caso. Você... se você quizé, pode i p'ro meu quarto hoji mêmo... Drumi comigo, que aminhã eu porvidencio os papés. Pode confiança, Garciema: eu preto de palavra!

Graciema se lembrara: e depois? Casava com o negro, e ele poderia dizer desaforos... Resto dos outros... Que vergonha!

- Qual nada, Agenor. Vou para o seu quarto e você não precisa pensar em casamento. Já faz até muito por mim em me querer bem.

Agenor não entendia. Agenor não tem malícia.

- Garciema... Garciema! Oie que eu sô capaiz de perdê a cabeça e pegá você. Você sabe que eu le amo!

Graciema reuniu toda a coragem na garganta, ficou muito corada, mas disse: você pode perder a cabeça, Agenor, que eu não me importo!

Teve uma vergonha! Mas não sabia que Agenor tinha ficado também com o rosto pegando fogo: aquele "eu te amo" que dissera, saíra à custa da voz de discurso, dura e grave, e à custa daquele fogaréu pela cabeça toda.

Depois que disse, Agenor ficou pensando: vergonha é coisa quente! E o mais ruim são aqueles que na guéla da gente, que nem na hora de saudá o delegado do Trabaio, quando ele vai na sede do sindicato!

Bonde 19 acidentado na Rua Xavier da Silveira, defronte ao armazém 11, em 1956

Foto pertencente aos arquivos policiais santistas, deles extraída pelo historiador Waldir Rueda