Como foi?
O relógio da sala bate oito pancadas.
Em torno à mesa estão nove pessoas, seis mulheres e três homens. À cabeceira, a doutrinadora, dona
Hermenegilda, madrinha de Graciema. Tem à sua direita o dono da casa e da sessão: o sr. Joaquim Pedrosa dos Reis, comerciante (secos e molhados), 53
anos, calvo, viúvo e espírita. É ele quem lê as rezas dedicadas aos irmãos sofredores do espaço.
Começou a sessão. Seu Pedrosa leu a lista dos desencarnados que devem descer do espaço àquela
noite. Leu o Evangelho que diz: onde duas ou mais pessoas estiverem reunidas em meu nome, aí eu estarei.
Leu o Creio-em-Deus e uma invocação aos espíritos.
Graciema veio à sessão, mas não pode sentar à mesa porque não tem licença ainda. Licença dos
espíritos, não dos humanos. A madrinha diz que ela é "mal acompanhada", nunca dará médium, e parece que tem raiva dela porque nunca nenhum espírito
baixou no seu corpo.
Graciema pensa que talvez a Terezinha esteja dando muito trabalho à vizinha que ficou tomando
conta dela. Terezinha também não está bem acompanhada - a vizinha é velha e dorme em qualquer lugar. Não vá a criança sair do caixote de Elixir de
Nogueira, que lhe serve de berço!
Na borda da mesa, as mãos brancas da médium começam a se contrair. Enroscam-se, arranham o
atoalhado da mesa, contorcem-se, ora com os dedos em garra, ora estendidos, hirtos, em tremores.
A mulher tem os olhos cerrados, as pálpebras batendo num ritmo acelerado, e arfa ruidosamente, a
boca contraída em esgares.
No princípio, Graciema se impressionava; agora, olha aquilo indiferente, e pensa em coisas
distantes.
De repente, a médium lança os braços ao ar, cruza-os sobre a cabeça, os punhos cerrados descem
sobre os seios, o corpo inteiro trepida, a respiração se faz mais alta, estertorada, e a fisionomia revela sofrimento.
Ao lado de Graciema, uma velha toda de preto, magra, de pelancas balouçando no pescoço, murmura:
foi espírito sofredô que baxô no apareio!
A doutrinadora pede: irmãozinho, estejes sossegado. Que a paz de Deus seje convosco!
A médium deixa cair as mãos sobre a mesa, e só se ouve a sua respiração ofegante, como se ela
viesse de subir um morro íngreme e alto.
- Para que me trouxeram aqui? Eu não queria vim, me truxeram! Me deixem!
É o espírito que está revoltado falando pela boca da médium. Dona Hermenegilda doutrina: em nome
de Deus, ficai! Viestes aqui para receber as orações destes irmãozinhos. Seu Pedrosa, reze a prece dos sofredores.
O português lê a prece. Graciema repara: se um trombone, em vez de notas, soltasse palavras, seria
igualzinho à voz do seu Pedrosa. O negro Agenor é que havia de gostar de ter uma voz assim, para os discursos no sindicato! Mas ia assustar a
Terezinha, ainda mais. Que é que importava? Não morava cada qual em sua casa? Que tinha ela de comum com o estivador? Nada! Só a Terezinha, que
estava registrada como filha deles dois. Bom coração tem seu Agenor!
Com a prece, o espírito se acalma, as mãos do "aparelho" se imobilizam. Cessam as contrações de
dor aparente.
- Estais melhorzinho agora, irmão?
- Ah! Graças a Deus estou! Mas porque eu estou aqui? Eu andava passeiando no
Gonzaga e me trouxeram para aqui. P'ra quê?
- Vós já desencarnastes, irmãozinho, e agora precisas de rezas.
- Ora, que bobage! Então eu estou aqui conversando, vendo esta gente toda que nem conheço e
estou morto?
- A morte não existe, irmãozinho. Vós estais só desencarnado. Vede, vede isto que está aí na vossa
frente... Que é que vedes?
A médium entra em esgares de horror, as mãos querem repelir para longe alguma coisa invisível.
- Que vedes, irmãozinho?
- Porque tem caxão de defunto aqui? Quem é este defunto?
- Sois vós mesmo.
- Eu? eu estou vivo!
- Vede as pessoas que estão aí em redor do caixão... Conheceis?
- Aqui... o meu pai! Ali... minha mãezinha! Estão chorando! E minha irmã também... Quem é este
defunto?
- Vede o nome que está escrito, vede o rosto dele se não é o vosso!
A médium se arrepia, a boca se entorta, as mãos se agitam em desespero, e a voz é rouca ao gritar:
sou eu, eu estou morto!
Sempre que chega o pedaço do caixão de defunto, Graciema arregala os olhos como se quisesse
enxergá-lo também, e sente um formigueiro pelo corpo, um friozinho de gota d'água de chuveiro pingando, pingando, espinha abaixo. Ela não acredita,
sabe que aquilo é bobagem - morto não volta - mas se impressiona sempre. Não gosta de vir às sessões, depois não dorme direito, pensando no caixão
de defunto.
- É um corpo emprestado, irmãozinho, com a graça de Deus. Vede - passai a mão por estes cabelos...
Não são os vossos, são?
A médium passa as mãos pela cabeça.
- Não são! Eu era home, e isto é cabelo de mulher.
- Estais convencido agora, irmãozinho?
- Estou, sim!
- Quereis alguma coisa mais?
- Uma reza, meus irmãos, que Deus lhes pagará.
Seu Pedrosa lê a prece de Charitas. Parece que o espírito está saindo pelos dedos da médium,
porque ela os sacode, no ar, sacode, e depois baixa as mãos e fica quieta.
Vem depois outro espírito sobre a negra Benedita, que é epilética, e é a melhor médium de todas.
Em geral são "espíritos sofredores" que descem sobre ela, e até lhe provocam a crise. Então dona Hermenegilda faz passes sobre a cabeça e junto às
faces da epilética, agitando as mãos espalmadas perto dela, ora como se a afagasse sem a tocar, ora como se a borrifasse, em flexões e extensões
rápidas dos dedos, com algum líquido invisível.
A preta Benedita se acalma, os estremeções do corpo diminuem, ela fica quieta, deitada a cabeça
sobre os braços apoiados à mesa, enquanto uma baba espumosa vai pingando no chão.
Uma espanhola papuda começa a balançar o papo, a retorcer a boca, a estremecer o corpo. Levanta os
braços, desce-os, agita-os, rápidos, ao lado do corpo. Tem qualquer coisa grotesca de um urubu batendo as asas, tentando um vôo que não sai nunca.
Respira com ruído, a mímica facial mobilíssima, os olhos cerrados sob as pálpebras trêmulas, como as das histéricas em crise.
Os braços revoluteiam; parece mesmo que vai sair voando.
Graciema sabe: é um "espírito de luz", é a Negra-Mina da Caridade que chega.
Negra-Mina da Caridade, velha escrava africana, espírito de luz, é a protetora da sessão. Chega
sempre às dez horas em ponto, porque às dez horas d. Hermenegilda acaba a sessão, e o espírito da africana tem uma estranha pontualidade inglesa.
Negra-Mina abençoa os irmãos presentes em nome de Deus, através da voz grossa da espanhola, uma
voz de timbre desagradável, como se aquele papo a alterasse, servindo de caixa de ressonância.
Negra-Mina da Caridade põe o "aparelho" de pé, e o "aparelho" se curva à direita e à esquerda, os
dedos fechando-se e abrindo-se rapidamente, as mãos agitando-se sobre as cabeças crentes, numa profusa distribuição de fluídos sobre todos.
Negra-Mina, a protetora da sessão, não faz economia de fluídos: por cinco minutos, fartamente,
generosamente, as mãos incansáveis da espanhola distribuem-nos pelos assistentes.
Uma bilha de barro está sobre a mesa, destapada. As mãos da médium se demoram sobre ela,
lançando-lhe os eflúvios benéficos.
Depois, os braços se elevam para o teto, a fisionomia se transfigura em beatitude, a boca se abre
e deixa escorrer um fio claro de saliva.
A espanhola revira os olhos abertos, e diz, transfigurada: estoi a recibir los fluídos!
Então se deixa cair sobre a cadeira, tremendo toda, toda arrepiada.
Graciema pensa: parece uma galinha quando sai de debaixo do galo!
É o fim da sessão; Graciema, os homens e as mulheres que cochilavam em volta, chegam-se agora à
mesa, dão-se as mãos, fechando a corrente.
A espanhola se levanta de novo, fica em transe outra vez, e grita: "Jeçus-Marie y Jocé".
Cada vez que grita por um nome, levanta as mãos e todos acompanham o movimento, formando um círculo no ar, fechado sobre as cabeças. Por três vezes
se repete a invocação.
Que bom - lembra Graciema - já acabou!
D. Hermenegilda vai servindo, copo por copo, a água fluída da bilha de barro, água fortificante,
benéfica para os males do corpo e da alma...
***
Graciema está morando com a madrinha faz já quatro semanas. É um quartinho só, para as três. A
cama da madrinha, uma esteira no chão para ela, o caixote de Elixir de Nogueira para Terezinha.
A madrinha se chamava Joaquina, mas depois que ficou médium-doutrinadora trocou o nome para
Hermenegilda. Disse que foi um espírito protetor que aconselhou.
Graciema desconfia que é porque Joaquina não é nome que sirva para uma médium-doutrinadora: é
simples demais. "A média Joaquina" não soa bem, evidentemente, ao passo que "D. Hermenegilda. Média - vidente - poliglota-doutrinadora", num
cartãozinho de visita, foi um sucesso, e um chamariz. Começou logo a vir cliente! Ela disse que até os espíritos começaram a baixar com mais
facilidade. Joaquina era nome que espantava até o Vira-Mundo, espírito mistificador!
Pensemos em coisas deste mundo - diz consigo Graciema - a madrinha já está aborrecida comigo e com
a Terezinha. Eu não arranjo emprego, e a Terezinha chora de noite, incomoda a madrinha, não deixa ela dormir direito.
Por isto a madrinha disse outro dia que os espíritos não gostam da criança, estão fugindo da casa
dela... Aquilo foi indireta!
Um moleque descalço, de guarda-chuva aberto e com meias de barro negro coladas às pernas, bate à
porta do quarto: mamãe mandô buscá a garrafinha de água fruída!
D. Hermenegilda foi dar uns passes, em casa de gente rica, na Avenida Presidente Wilson.
Graciema procura o nome, nos rótulos das garrafas que estão sobre a mesa. Ainda há pouco pôs a
Terezinha ali para trocar uma fralda e o diabinho deu com o pé numa delas e entornou toda a água. Exatamente! A garrafa que virou traz o nome da mãe
do moleque: "dona Ruphina". E agora?
Para Graciema, o problema seria fácil se não fosse a chuva: ia ao tanque, enchia a garrafinha sem
o menino ver... estava pronta a água fluída. Mas com esta chuva! E ela sem outra roupa para trocar, sem um par de tamancos, sem guarda-chuva... O
tanque é lá no fundo do quintal! Senão era só abrir a torneira - os fluídos que descessem pelo cano...
O menino espera, do lado de fora, e a água canta no seu guarda-chuva. Graciema olha em volta:
aquela lata de banha Rosa, 2 ks., ali no chão, é o ourinol da Terezinha. De quando em quando ela senta a filha na latinha de bordas bem amassadas, e
fica esperando, esperando, porque molhar muita fralda em tempo de chuva é o diabo. Depois não secam, e são só cinco!
O menino não está vendo, e dentro da lata há uma aguazinha amarela... talvez chegue para encher a
garrafinha.
Com jeito, Graciema, com jeito! Se tivesse um funil, era bem fácil. Mas encheu, e foi a conta.
Enxuga os dedos molhados e chama:
- Menino!
- Sinhora?
- Pegue aí a água fluída. Diga à dona Rufina que esta é concentrada, ouviu? Por isto tem cor
diferente. Não esqueça: con-cen-tra-da!
- Sim sinhora!
O menino procura nos bolsos e tira um níquel: mamãe mandô. Diz-que não é p'ra pagá a
água, não; é só uma lembrancinha, sabe?
- Obrigada!
Quando o moleque já está no portãozinho de grades de madeira, Graciema se lembra: seria para
beber, aquela água?
- Oh! menino!
- Sinhora?
A água cantarola no telhado, nas folhas das árvores, no guarda-chuva do menino.
- Sua mãe quer esta água p'ra que, hein?
- É p'ra lavá o rosto dela: tem uns pano na cara dela, dona Hermenegilda diz-que
tira com água fruída.
- Ah! pode levar. Sai tudo, sim!
Olha o níquel na palma da mão: $400; dona Rufina como é pão-duro! Também, pela água fluída
que leva...
Enquanto Terezinha dorme, aproveita para fazer tricô. Ganhou duas meadas de lã, de dez tostões
cada uma. Foi o Agenor quem deu. Ela não queria, mas o negro disse: não é p'ra você - é p'ra nossa fia!
Nossa filha... Graciema pensa que preto é bom, preto é melhor que branco e que mulato. Praxedes é
mulato, fez mal a ela; madrinha é branca, quer pôr as duas na rua. Agenor é preto, registrou a Terezinha e quer casar-se com ela, Graciema.
Ela sabe que não merece: não é mais moça-donzela. Se casasse, depois o Agenor podia dizer assim -
você é uma ordinária, você é resto dos outros que eu de pena trouxe para minha casa.
Podia dizer quanto desaforo quisesse, e ela teria que se calar, porque tudo era verdade. Mesmo que
gostasse do Agenor, não se casaria com ele.
Este negócio de cor, é bobagem. Por isto, não. Ela é moça branca, filha de português, porém a mãe
era mulata.
Agenor tem carapinha, mas o coração dele deve ser branco. Que tolice! Já viu uma fita no cinema
Campo Grande que era assim: O preto que tinha a alma branca.
Se coração de gente tivesse cor, o do preto seria mesmo branco, e o do Praxedes negro, e o da
madrinha roxo (ela detesta o roxo: é cor de caixão de defunto!)
Se casasse com o Agenor, ele poderia dizer desaforos, e teria razão. Que vergonha! Peior do
que naquele dia, na Santa Casa, quando irmã Simplícia perguntou: quer que eu avise o seu marido que é para hoje?
Irmã boa, a irmã Simplícia! Parecia mesmo Nossa Senhora! Foi quem escolheu o nome de Terezinha. E
ela, Graciema, é uma ingrata; não voltou mais à Santa Casa para falar com o doutor, com a dona Maria, e beijar de novo as mãos de Nossa Senhora.
Precisa, e a Terezinha também!
Batem à porta. Deve ser outro freguês de água fluída.
- Pode entrar!
- Com licença, Garciema!
- Ah! Seu Agenor, com esta chuva?
O estivador entra, procurando em vão um capacho ou um saco velho para deixar nele ao menos metade
do barro que traz nas botinas.
- Vô sujá a casa!
- Não faz mal, a gente limpa. Não é tão grande assim...
O negro se aproxima do caixote de Elixir de Nogueira, apanha a mãozinha da criança: minha fia,
minha fia...
Depois tira do bolso um embrulhinho de papel cor de rosa. Graciema conhece o papel das Lojas
Brasileiras, nada além de 4$400 ou de 8$800, conforme a seção. Abre o embrulhinho que o negro lhe entrega.
- Que bonita! Uma figuinha!
- Diz-que tira o máu-oiado: é vermeia!
Graciema procura um fio de linha na caixa de costura - linha azul, serve. Enfia a figuinha e passa
o colar improvisado no pescoço da filha. Terezinha sorri.
- Parece que gostô!
- Decerto! O senhor sabe os gostos dela: não viu o chocalho, outro dia?
De repente, Agenor fica sério. Pigarreia. Olha para a criança com medo de que ela chore, como da
outra vez.
- Garciema!
O tom é grave e duro. O nervoso parece que lhe inteiriça as cordas vocais. Quer dizer coisas doces
e a voz sai assim, áspera, funda, solene que nem discurso no sindicato.
- Garciema! Não vos fala Agenô Vianna da Anunçação!
Graciema arregala os olhos: é discurso, mesmo!
- Não vos fala, ripito, Agenô Vianna da Anunçação!
Tem uma dúvida: será que o Agenor está com bobagem de espiritismo? Mas não, ele prossegue:
- Quem vos fala é a imagem representativa dos sofrimento que Vossa Senhoria tem me causado
e porduzido. Olhai bem p'ra mim, olhai bem p'ra minha fisionomia, Garciema, e ela dizerá as hora de
tormento, de noites e noites horríveis de insonhas que sofro fisicamente.
- Está doente, seu Agenor? Quer água fluída?
Agenor treme, esbugalha os olhos, franze a testa, num esforço titânico para relembrar as frases
que escreveu naquelas últimas noites. O papel está com ele, no bolso de dentro do paletó... Ah! se ele pudesse pegá-lo!
- Não perciso nada, Garciema. Só que me escuite até o finar.
Terezinha começa a chorar, implicando com aquela fala. Decididamente, não suporta discurso! Agenor
ergue a voz, é o único remédio:
- Pois, cumo tava dizendo... Dona Garciema: é esta image sofredora de home
pobre mas trabaiadô, preto mas de morar honesta, que... que...
Sua o pobre Agenor e não se lembra do resto. É uma pena: a declaração está bem feita, ele tem a
certeza... Se pudesse dizer tudo, Graciema ficaria convencida... Um esforço mais...
- Cumo tava le dizendo: esta image sofredora...
(Que diabo, este pedaço eu já sortei... cumo é mêmo o finar?)
- Cum licença, Garciema: dêxe eu acabá de lê estes tróço...
(arranca o papel do bolso, procura a página e lê) que... (foi aqui que eu parei? foi!) que comparece perante Vossa Senhoria, aos pés de Vossa
Excelença...
- Levante-se, seu Agenor, por favor, não se ajoelhe!
-... de joeios, sim, para supricar-vos mais uma veis o que é do vosso
pubrico e notório conhecimento: Vossa Sinhoria deseja se reunir-vos nos sagrados laço do matrimônio cumigo, Agenô
Vianna da Anunçação?
A porta rangeu, e Dona Hermenegilda, média-vidente-poliglota e doutrinadora, entrou.
- Sua sem-vergonha! Eu logo vi! Na minha casa, sua peste!
O estivador se levanta, assustado como se visse um espírito materializado e não a invocadora
deles.
- Cachorra! De bandaiera c'o preto, hein! Não arrespeita os espírito
que tão nesta casa, não arrespeita o anjo da guarda da sua fia, hein, sua ordenara!
- Madrinha, não diga isto!
- Pensa que eu não vi, este negro de joeios, bejando as suas coxa? Sua porca!
Sai de uma sem-vergonhice e vem fazê otra na minha casa! Cachorra!
As lágrimas rolam dos olhos sofredores de Graciema. Ela não diz palavra, mas está ajuntando as
suas coisas.
Agenor quer explicar:
- Dona, eu não tava fazendo coisa de envergonhá a casa de ninguém, eu tava
era...
- Cala a boca, negro sujo! E bote-se na rua, senão chamo a poliça, seu ordenaro!
Agenor sai, grave, digno, como se acabasse de falar no sindicato, e vai ficar sob o beiral onde as
gotas d'água caem, tinem e salpicam o seu rosto, como uma poeirinha úmida.
- Bruaca! Vai p'ra zona, duma veis! Tu não é mulhé de respeito, mêmo.
Vai p'ro beco, anda! Lá é que é o teu lugar. Me desmoralizando a casa... Que vão pensá os espíritos de luis de mim? Vão
pensá que o Vira-Mundo e os otro espíritos sofredôs tomaram conta de minha casa!
Graciema faz uma trouxinha com as roupas, põe a filha ao colo.
- Tenho pena é da inocente, c'uma mãe desavergonhada assim!
No fundo da alma está contente: que bom, não chora mais de noite, posso dormir o meu soninho!
Graciema não tem guarda-chuva. Põe o velho saco de aniagem, que serve de cobertor à Terezinha,
sobre a sua cabeça e a filha.
Dona Hermenegilda a enxota, com gestos de mão, como se enxotasse uma galinha que lhe viesse sujar
dentro de casa.
- Vai t'embora c'o preto, vai! Amanhã tu tá na zona, na certa! Ordenara!
Agenor segura a criança, abriga Graciema sob o seu guarda-chuva. Dá-lhe o braço para descer a
escada de quatro degraus de madeira podre.
A madrinha espia da porta, e descompõe sempre.
- Me envergonhando a casa, afugentando os espíritos de luis, seus ordenaros!
O estivador está com raiva: ah! se fosse um homem! D. Hermenegilda tem uns fiapos de barba no
queixo e um buço de duas cores - ruivo e branco - sobre o lábio.
Agenor não pode bater nela... Abre a taramela do portão, Graciema passa.
- Seus semvergonhos!
Agenor não se contém. Vira-se e diz, bem alto:
- Oie aqui: proquê a sinhora não vai fazê a barba... sua fia da
puta?
Agenor soltou o palavrão porque ele já o estava engasgando: fazia dez minutos que o tinha
atravessado na garganta, querendo sair.
Disse, agora está satisfeito. Mas a moça também ouviu, o estivador fica envergonhado e pede:
descurpe, sim, Garciema?
Graciema se vira: a madrinha ainda está na porta da casa, congesta, murmurando decerto alguma reza
contra eles.
A moça, na chuva, sabe que agora vai começar uma vida bem diferente, talvez mais difícil ainda que
até agora. Precisa ir se preparando. Precisa... Grita para a megera:
- Sua filha da puta!
Que diabo! Ela tem que saber dizer nome feio, também... Faz falta, na vida! Quem não sabe dizer,
só ouve dos outros!
Agenor sorri satisfeito. Aconchega a Terezinha ao peito e diz:
- Oia! perdemo aquele dezanove!
***
Meia hora depois, d. Hermenegilda vai ver quem está batendo. Maria dos Anjos, de guarda-chuva
escorrendo água, está à porta do quarto, sobre o último degrau de madeira podre.
- Sô eu, cumadre. Vim vê se tem uma aguinha fruida p'ra mim.
- Pois olha: foi bom a senhora tê vindo. Sabe que a Graciema...
Maria dos Anjos sorri, orgulhosa. Que é que ela não sabe, desde a Rua Senador Dantas até a bacia
do Macuco, desde a Bacia até o ferry-boat do Guarujá? Sabe, sim!
- Já sei, cumadre: a Graciema fugiu c'o preto! Vi eles ainda não faiz
quinze minuto, no bonde dezenovi. Por isto vim p'ra le dizê...
- Fugiu nada! Eu é que enxotei aquela porca!
Sentada já na velha arca de pau onde a dona da casa guarda a rouparia, Maria dos Anjos sorri,
extasiada: que assunto!
Deixa de lado a vaidade de noticiarista emérita e pergunta, sem ocultar aquele demônio da
bisbilhotice que lhe anima as rugas do rosto e faz os olhinhos terem lampejamentos de ansiedade que sabe próxima a ser satisfeita: cumo foi,
hein?
Macuco, com o canal de navegação do
porto, vendo-se ainda à direita o antigo
gasômetro
Foto: Poliantéia Santista, de Fernando Martins Lichti,
3º vol., 1996, Gráfica Prodesan, Santos/SP
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