Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult082z13.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 01/31/09 20:17:09
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (13)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

Leva para a página anterior

Cais de Santos

Alberto Leal

Leva para a página seguinte da série

Ainda Wu-Pei-Ho!

Carta aérea: Dr. Camillo Novaes. Utopian Club, Santos.

E dentro: Biografia - Wu-Pei-Ho, sócio número 15.320. Utopian Club Chinês, província Kuang-Si, vila Chan-Sa-Ling. Divisão A.P.

Dr. Camillo pensa: A.P. - amor ao próximo.

Fundador do clube na sua aldeia natal, grande benemérito da Pátria e da Humanidade, dedicava-se à indústria de armamentos e explosivos. Era fornecedor dos generais da sua terra, patriotas que se vêm empenhando, nestes últimos tempos, para a salvação da China, num sagrado afã que os atira muitas vezes uns contra os outros.

Especialista em obuses com cacos de garrafa e pregos enferrujados, o grande Wu-Pei-Ho manteve sempre em vida uma linha de austera neutralidade, fornecendo os artigos da sua modelar indústria tanto aos generais do Norte como aos do Sul, aos do Leste como aos de Oeste, sem olhar antagonismos e favorecendo igualmente a todas as partes.

Wu-Pei-Ho foi o inventor de uma granada com reservatório para culturas de bacilos de tétano, de ótimos resultados na China, como se verificou na recente batalha entre as tropas dos generais Chu-Liang e Liang-Chu. Wu-Pei-Ho era o fornecedor do governo de Nan-Cham dos célebres tanques Pei-Ho cujas rodas em lagarta, de feitio especial, amassam cientificamente os soldados derribados, reduzindo-os a uma pasta chata, de maneira que se dispensa o enterro e se fornece bom adubo às terras para futuras sementeiras. Wu-Pei-Ho deu cem libras para o fundo de propagação das idéias utopianas.

Wu-Pei-Ho, querendo amparar a velhice da sua terra, fundou um asilo para macróbios de mais de noventa anos, que provassem: ser naturais de Chao-Sa-Ling, não ter passagem pela polícia, não sofrer de artero-esclerose. (Nota confidencial nº 1 - Infelizmente o asilo, feito de palha e bambu, incendiou-se no décimo quinto dia, matando o único macróbio internado. Mas é forçoso reconhecer que Wu-Pei-Ho não teve culpa desta fatalidade, e prometeu mesmo a reconstrução do asilo).

Wu-Pei-Ho morreu aos sessenta e três anos, deixando uma enorme fortuna. (Nota confidencial nº 2 - Consta do seu testamento, ao que parece, um legado importante para os Utopian Clubs de todo o mundo).

Wu-Pei-Ho, utopiano da seção Amor ao Próximo, morreu! Homenageemos a sua excelsa memória, confrades de todo o universo, e sigamos, se possível, os seus exemplos luminosos! Tudo pelo próximo e fraternidade!

Traduzido e transcrito do documento original, vindo de Teheran, e assinado pelo secretário do Oriente: .............. (ininteligível).

Retransmitido pelo Utopian do Rio. - Alvaralhão, secretário.

***

Na reunião daquela noite, o dr. Camillo leu a carta aérea.

O dr. Guedes ficou vermelho e disse: se quiserem, nós devolveremos o dinheiro gasto na ida ao Rio.

Todos disseram: não, senhor! O dr. Camillo tomou a palavra: os srs. foram representar o Utopian nos funerais de Wu-Pei-ho. Infelizmente ele morreu longe demais. Os srs. não têm culta disto. O clube se responsabiliza pelas despesas feitas.

- Muito obrigado, disse o dr. Guedes.

O dr. Camillo prosseguiu: mesmo porque, segundo um jornal do Rio, os srs. estiveram presentes aos funerais.

Abriu a folha e mostrou a fotografia: "O comendador Pereira, ao descer do avião, ao lado da artística coroa de musgo e dálias amarelas trazida de Santos a mandado do Utopian club, que assim se fez representar, condignamente, no enterro do grande Wu-Pei-Ho".

Lopes Gomes cutucou o comendador: - como é que os jornais souberam?

O comendador enfiou o queixo no colarinho e disse, baixinho: fui eu que t'legrafei abisando.

Lopes Gomes não se conteve: pois fez besteira, comendador, fez besteira!

Sir Watson, presidente do Club, propôs que a bandeira do Utopian fosse içada a meio pau durante três dias. O dr. Guedes chamou:

- Benedito!

- Sinhô?

- Põe a bandeira na sacada, a meio pau, e deixa três dias.

- Mêmo que chova?

- Mesmo. Só tira de noite.

- Sim, sinhô.

Enquanto a bandeira era içada, o comendador Pereira propôs cinco minutos (errou: era para dizer um, mas o costume de pedir sempre mais uns tantos por cento fê-lo dizer cinco) de silêncio, de pé, em homenagem ao grande morto. Todos se entreolharam, achando cinco demais, mas a idéia não podia deixar de ser aceita. Então os clubmen se levantaram, e o presidente pôs o seu relógio pulseira em cima da mesa, para marcar, britanicamente, os cinco minutos aprovados.

O porteiro do clube entrou e disse: um telegrama do Rio!

Ninguém respondeu. Ele disse mais alto: um telegrama do Rio!

Todos fizeram: psiu!

O porteiro se assustou, ficou quieto também, homenageando, sem o saber, o chinês morto em Chan-Sa-ling.

- All right! já acabou! anunciou sir Watson.

O secretário leu o telegrama: "Lamentável equívoco ponto Wu-Pei-Ho não morreu ponto morreu seu secretário japonês ponto enganou-se pedido remessa bombas bacilo cólera ponto mandou bombas bacilo tifo ponto fez harakiri ponto Wu-Pei-Ho vivo ponto Amor ao Próximo e Fraternidade ponto Alvaralhão secretário."

Sem ninguém propor, houve mais um minuto de profundo silêncio. Depois o dr. Camillo disse:

- Benedito, recolhe a bandeira!

- Ué!


Rua Senador Feijó, em detalhe de foto de 1920 feita por José Marques Pereira

Imagem cedida a Novo Milênio por Ary O. Céllio