Só Deus!
Range e ringe a corrente sobre a polia
do longo braço de ferro alçado para o céu. Sobe e desce, gira para a terra e gira sobre o mar e sobre o convés do cargueiro Valparaiso,
bandeira sueca.
Levanta das pedras do cais a lingada que sustenta quinze sacas de café, dá meia volta e vai
depositá-las junto à boca da escotilha. Um estivador desprende o estropo do gato, prende a lingada no guincho que desce ao porão, onde outros
estivadores empilham as sacas na última coberta.
Florêncio veste uma camisa de meia cor de abóbora, de mangas curtas, mostrando os braços onde a
musculatura pula em relevos bronzeados. Traz à cabeça um gorro redondo, modelando, na fazenda que já foi calças, o crânio de ressaltadas bossas
parietais. As calças estão sungadas a meia-perna, remendadas no joelho, nas coxas e nos fundilhos, com brim diferente.
Afunda os pés nus nos grãos de café que se escapam das sacas, e onde, em cada uma, está desenhada
em cores a bandeira brasileira, e em volta: "Santos. Café do Brasil. Estado de S. Paulo".
Agenor trabalha ao seu lado e sua em bica, porque sopra o noroeste, e a coluna do termômetro, no
posto do Monte Serrat, está marcando 33º à sombra.
- O Praxedes continua no pau, hein?
Agenor arfa sob a saca que pôs à cabeça para conduzir a um canto do porão:
- Nunca mais escutei falá nele.
- Por quê o sindicato não põe advogado p'ra ele, Agenor?
- Pois tu não sabe, Florenço? O Pedro Bispo e o Marimbondo foram na cadeia,
logo no princípio, vê ele. Não acharam mais; um otro preso - um que diz-que usa cabelo pelos ombros - falô que levaram o
Praxedes p'ra São Paulo. Não se pode fazê mais nada!
- O Praxedes não foi julgado; porque levaram ele p'ra São Paulo?
Agenor baixou a voz, pôs a borda da mão no canto da boca e falou, quase ao ouvido do Florêncio:
diz-que ele é comunista! Tão encanando até doutô! Não dianta o sindicato se metê, comprende, Florenço?
Florêncio acenou que sim, com a cabeça:
- Sei, sei. É o diabo! Ora o Praxedes... e nunca me disse nada.
- Diz-que era perigoso: queria inté pegá fogo ali... - e apontou com o dedo na
direção da margem oposta do estuário, querendo indicar, através do casco do cargueiro, a Ilha Barnabé. Na ilha, redondos, brilhantes ao sol,
revestidos de alumínio, estão dezoito tanques de inflamáveis.
- Fogo, ali, falam que rebenta a cidade inteirinha, hein? - e os olhos do Florêncio tiveram
um fuzilar mau.
- Não havéra de sê tanto assim, mais era um bruto prejuízo nos americano da
gasolina!
- Qué sabê duma coisa? Se não morresse estivador, nem criança, nem mulhé, eu
gostava. Estes americanos são uns ladrões - podres de ricos e explorando os operaios. Sabe quanto ganha o vigia da Standar? Duzentos e
cinqüenta, por meis! E um lugar arriscado daqueles! Eu não queria nem por dois contos: tenho mulhé e cinco filho, p'ra
sostentá!
Agenor pôs um dedo nos lábios: psiu! cuidado, Florenço! Tu tá falando muito
arto, podem pensá que tu é...
Depois, vendo os companheiros distantes, concordou:
- Eu também às veis penso assim, mas tu compreende, Florenço, a gente deve só
pensá!
- Magina, Agenor, se a polícia descobre um aparelhinho p'ra adivinhá pensamento!
Neste causo - e Florêncio moveu o braço num gesto largo da esquerda para a direita, querendo abarcar todo o cais, desde os quatro tanques
negros de óleo, junto ao ferry-boat que conduz os vagões e auto-tanques à Ilha Barnabé, até o armazém XXVII - neste causo, tudo isto
ficava vazio de gente!
- Não é tanto, Florenço, tu tá enganado.
Neste momento ouviu-se uma algazarra lá em cima: os estivadores gritavam, o guindaste guinchou
mais forte, o navio tremeu até o fundo do cavername. Uma sombra comprida e esquisita se fez, subitamente, sobre os homens no porão. Florêncio,
Agenor e os companheiros todos ergueram os olhos e logo procuraram fugir, atirando-se sobre as sacas de café que, empilhadas ao seu lado,
tolhiam-lhes a fuga.
o guindaste enganchara num dos vimes de aço que correm à volta da escotilha, o motorneiro nada
percebera, os parafusos saltaram, e o vime se erguera no gato do guindastes, balouçando-se num equilíbrio precário, entre o céu e o fundo do porão
onde trabalhavam os estivadores.
Antes que o motorneiro do guindaste tivesse tempo de qualquer manobra, a pesada viga escorregou
pelo gancho e desabou verticalmente sobre os homens.
Florêncio ficou imóvel, sobre os grãos de café, de repente vermelhos como se fossem
recém-colhidos, polpudos ainda, no cafezal nativo.
O vime colhera o estivador no meio da cabeça e os ossos estralaram como noz que se parte sob o
martelo.
Depois a barra pendeu para um lado e caiu sobre uma pilha de sacas, por cima das pernas de um dos
fugitivos, que ficou ali mesmo estatelado, muito branco, sem uivo de dor.
Agenor se amparou num dos "pés de carneiro", para não cair. Escapara por um triz, a dois passos do
Florêncio, e sentira zunir-lhe à orelha o estranho projétil que matara o amigo. Deixou-se ficar ali de olhos esgazeados, meio tonto.
- Ninguém mexe no cadávre! - ordenou o feitor aos estivadores que rodeavam o corpo do
Florêncio. Arrancaram o ferido de sob o vime, e na pasta sangrenta que eram as suas pernas esmigalhadas, vieram colados alguns grãos de café.
Corriam populares para junto do cargueiro Valparaiso e vozes comentavam, altas, o desastre
havido.
Na cabine do guindaste nº 7, um homem chorava, desesperado: eu fui o culpado! eu me descuidei! eu
matei eles! sou um desgraçado! - Segurou a mão do vigia que o vinha prender: minha mulher está morrendo, Sebastião! eu não durmo fazem três
noites, eu não devia trabalhar assim, eu sou o culpado! Me prenda! Eu quero morrer!
Pegava a mão do vigia, chorava como criança.
- Tenha calma, seu Quincas! Isto é desgraça que acontece!
- Eu fui o culpado, Sebastião! Eu não durmo fazem três noites! Mas eu precisava ganhar estes dias,
minha mulher está morrendo, eu preciso pagar o doutor e a farmácia! Sebastião, me leve daqui!
A campainha da ambulância tiniu, perto. De um auto desceram dois homens da polícia com o fotógrafo
da "técnica" e subiram a bordo.
Todos explicavam o desastre, todos falavam, e o fotógrafo batia chapas do corpo estendido. Só
Agenor estava quieto, olhando os miolos do companheiro, espalhados no chão, salpicando as sacas amontoadas.
Um dos homens da polícia levantou um pedaço grande, mole e branquicento, daquela massa cerebral, e
examinou-a entre as mãos.
Agenor teve uma idéia boba - ele sabia que era boba - mas que teimava em vir: e se o secreta
tivesse mesmo o tal aparelhinho, e procurasse ler o pensamento do Florêncio?
Agenor pensa: seria capais de levá p'ra cadeia, e ficava d. Augusta e os fios
no desamparo! A idéia continuava boba, mas não se ia embora: vão prendê o cadávre do Florenço!
Não deixaria! Arrancou-se da coluna do pé de carneiro e tirou das mãos do homem os miolos
ensangüentados: dêxa isto, seu!
E começou meter tudo aqui, enfiando com os dedos, no grande buraco que a barra de ferro abrira no
crânio do Florêncio.
- Ninguém tem nada c'o pensamento da gente, só Deus, ouviu?
O agente de polícia fitou-o, espantado, mas depois disse: levem este também para a ambulância - e
apontou para a cabeça do Agenor - decerto, com a pancada, ficou tam-tam!
Agenor passou a mão na cabeça, e sentiu na carapinha, junto da orelha, um calor úmido. A sua
própria mão, tinta de sangue, foi a última coisa que os seus olhos viram, até que se abrissem de novo na Santa Casa da Misericórdia.
Guindastes do porto de Santos, na primeira metade do século XX
Foto:
Museu do Porto de Santos |