Fachadas dos blocos de edifícios que compõem o Parque das Hortênsias, na Avenida Angélica, em São
Paulo
Foto: Gegê Leme, publicada com o texto
Mais que arquiteto, Artacho
Gegê Leme e Paulo Matos
Pelo crime capital de não
seguir a tendência da época e não ser diplomado arquiteto, o cidadão Artacho Jurado foi bombardeado em sua época. Eram tempos de efervescência do
período modernista e ele ousava sugerir variantes no eixo da dita inovação. Como em todas as áreas do conhecimento humano, foi condenado.
Adornando, procedimento dito acadêmico, utiliza seu repertório derivado do mundo
moderno pra constituir, de maneira estridente, um mostruário de materiais, formas e cores, sobre uma estrutura a princípio modernista.
O escultor Luiz Garcia Jorge, espanhol radicado em Santos, ficou "estarrecido" com o
primor dos edifícios de João Artacho Jurado, que conceitua como "obras de arte". Assim tem sido com pessoas com ou sem formação na matéria, de
variadas gerações ou origens.
Edifício Cinderela, em São Paulo
Foto: Gegê Leme, publicada com o texto
A história pessoal de Jurado é controvertida. Filho de imigrantes espanhóis, vindos de
um vilarejo próximo a Málaga, seu pai anarquista o retirou da escola quando prestes a concluir o curso primário, aos 8 anos, por proibi-lo de jurar
bandeira.
Autodidata, com curso técnico de desenho e perspectiva, inicia suas atividades
construtivas em São Paulo com a fundação da Casa Jurado Decoração e Stands, nos anos 30. Aí adquire o know-how em marketing e técnicas
construtivas, que futuramente empregaria nos edifícios. Sempre em parceria com o irmão Aurélio Jurado Artacho, funda a Construtora Anhanguera.
Pequenas casas na Pompéia e na Água Branca são seus primeiros empreendimentos.
Desde os primeiros anos do século sopravam os ventos da "modernidade". Racionalismo,
funcionalismo, a era da máquina. No clima de crescimento e empreendimentos, Jurado tornava-se um macroempreendedor. Idealizava, incorporava,
realizava e comercializava. Tinha total controle de todas as etapas do processo. Desde a compra do terreno e a semente do projeto, à comercialização
e às festas de lançamento.
Edifício Planalto, em São Paulo
Foto: Gegê Leme, publicada com o texto
Embarcou no boom imobiliário paulistano nos anos 40 e 50, quando funda a
Monções Construtora e Imobiliária S/A, em 1946. Visionário, com grande talento criativo, dominava os recursos do marketing. Com a Cidade
Monções, 300 casas de 70 m² cada no bairro do Brooklin, em São Paulo, tem seu primeiro sucesso. Era dirigida a compradores com dificuldades em
adquirir imóveis, oferecendo opção mais barata. As casas vinham com telefone instalado e automóvel na garagem, para compensar a distância do centro.
Somava os elementos da modernidade, viabilizava caminhos. Seus métodos e estratégias despertavam iras e amores.
Pela primeira vez na cidade de São Paulo, Jurado trabalha com sistema de
financiamento, com entrada e parcelas fixas. Lucra cobrando taxas de administração. Quando inicia seus prédios, constrói primeiro a "casca",
deixando o interior por fazer. Vende os apartamentos na planta.
Com a vinda da inflação, esse sistema o levaria à bancarrota. Em finais dos anos 60 se
vê obrigado a fechar sua empresa. As parcelas antes fixas se elevam obrigatoriamente, com reclamações dos condôminos. Mas a memória dos donos dos
apartamentos por ele erigidos lhe é grata.
Edifício Saint Honoré, em São Paulo
Foto: Gegê Leme, publicada com o texto
Em 1949, ele inicia a fase mais característica de sua obra com o edifício Piauí, em
São Paulo. Sua linguagem é rica em ornamentos destoantes do modernismo da época. Tem fantasias hollywoodianas e elementos do passado.
SErve-se das imagens dos filmes que faziam sucesso nestes tempos de explosão da cinematografia americana. Mistura desenhos, cores, texturas e
materiais. Faz conjuntos de edifícios aparentemente independentes, mas compondo um corpo único. As costas dos edifícios são nuas, como próprio às
costas de um grande cenário.
O rigor na limpeza dos prédios modernistas, assépticos, é revertido em João Artacho
Jurado, em um universo fictício de extrema riqueza visual, cheio de surpresas e sempre pronto para desfilar em trajes glamourosos e abrigar
fantasias hollywoodianas. Estas características fazem de suas obras marcos na paisagem, deixando sua autoria clara. Gerava amor e ódio, um
drama passional tipo "ame-o ou deixe-o".
Edifício Bretagne, em São Paulo
Foto: Gegê Leme, publicada com o texto
A origem de Artacho Jurado é andaluz. E a cultura andaluz que conhecemos formou-se por
uma grande miscigenação de povos. Ao longo da história, muitos fogem para o Sul da Espanha através da Árica e vindos de outras partes, como judeus,
mouros ciganos milenarmente nômades e árabes. Estas culturas têm muito de cada um destes povos e religiões, forçados a viver sob um regime católico
de extrema rigidez. Inicialmente, viviam retirados em guetos nas montanhas de Andaluzia, e aos poucos surgiu uma cultura mais homogênea.
Reintegrados posteriormente às cidades, para não deixar morrer suas tradições, dão vida à cultura andaluza, flamenca, trazendo em si força paixão e
dor.
As cores são exageradas, bem como o sentimento e a originalidade. Quem conhece o
repertório flamenco não estranha os "excessos" de Jurado. Vestes coloridas, floridas ou bolas. As mulheres se adornam com vários tipos de acessórios
de uma só vez. Tudo é visualmente rico e vivo. Os símbolos da cultura são extravagantes: o toureiro, que após sacrificar o touro, joga flores para a
amada.
Edifício Viadutos, em São Paulo
Foto: Gegê Leme, publicada com o texto
Efervescente como Andaluzia e também junto ao mar Mediterrâneo, está a Catalunha de
Gaudí, Miró, Picasso. Terra colorida, de liberdade de expressão e de luta por ela. Como em Gaudí e utilizando um repertório visual de formas
naturais, João Artacho Jurado adorna ostensivamente suas obras arquitetônicas, cujos projetos e estruturas são também nada ortodoxos.
Pautado na ideia da modernidade, independente, exerce sua sensibilidade. Assim, suas
obras atingem resultados, realizando seus usuários, no sentido mais supremo da arquitetura. A de atender necessidades humanas e não se pautar em
dogmas.
Edifício Parque das Hortênsias, em São Paulo
Foto: Gegê Leme, publicada com o texto
Era difícil para os arquitetos da época de Artacho engolir uma obra tão divergente e
com tamanho sucesso. E ainda mais, de um arquiteto sem diploma.
A corporação, através do Instituto dos Arquitetos do Brasil, o proíbe de assinar
projetos, concebidos do alto de seus prédios, ao som de um dos seus 3 mil discos de ópera, como gostava de fazer. Os cenários são a essência de sua
construção. Traz Roy Rogers e Miss América para inaugurar o Bretagne, em São Paulo, em 1959. Dá show de marketing, vende um prédio em
24 horas.
Transforma os moradores em personagens.
Adiante de seu tempo, conceitua o conforto psicológico do usuário, para além da
perspectiva do racionalismo modernista. Seu estilo é marcado também por uma herança catalã, da Barcelona libertária, anarquista, que incorpora a
liberdade como uma essência humana, inseparável de sua natureza. Artacho Jurado traz a cultura andaluz, expansiva, cigana, e assim são seus prédios.
No sentido da evolução constante, do espírito do moderno, da revolução permanente do ecletismo e da pluralidade.
E assim é João Artacho Jurado: livre dos pensamentos escravizados pelos dogmas.
"Há qualquer coisa de Xanadu (o palácio monumental construído por Kane, o personagem
do filme de Orson Welles) nesses edifícios desvairados, radicalmente ecléticos. Há qualquer coisa de rosebud (o enigma que revela as raízes
de Kane no filme) por trás da figura deste homem fascinado pelo mundo moderno", escreve o jornalista Bernardo Carvalho na Folha de São Paulo,
referindo-se ao império que desabou para Jurado. Seus prédios são visitados por excursões de turistas e estão mais inteiros do que quaisquer outros
da época. Décadas depois, redescobrimos um Artacho Jurado comprometido com o usuário, com o tempo e com a memória, delineado no rastro genial de
suas pastilhas. Aplicadas com todas as cores do arco-íris nos edifícios Piauí, Parque das Hortênsias, Saint Honoré, Viadutos, Planalto, Cinderela,
Louvre e Bretagne, na cidade de São Paulo. E o Verde Mar e o Enseada, na orla da praia de Santos.
Visão noturna do Conjunto Paisagístico do Boqueirão
Foto: Ernesto Papa Leme, publicada com o texto
Visão noturna do Conjunto Paisagístico do Boqueirão
Foto: Ernesto Papa Leme, publicada com o texto |